Quatro movimentos entre os públicos e os não públicos de museus
Quando tudo é questão de disposição e de predisposições – já que
não existe nenhum ensino racional para o que não se pode aprender –,
será possível fazer outra coisa senão criar as condições favoráveis para
que despertem as virtualidades adormecidas em algumas pessoas?
Pierre Bourdieu, O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público
Voltada à sondagem das motivações e formas de interagir, ou não, da população brasileira com as instituições museológicas do país, a pesquisa Desafios em tempos de Covid-19 procurou retratar, em seu bloco dedicado aos públicos de museus, como esses aspectos foram vivenciados no contexto pandêmico, buscando, além disso, refletir as demandas e desejos das pessoas para o futuro pós-pandemia, no que tange à experiência museal. Realizada pelo ICOM Brasil – Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, a pesquisa foi coordenada por uma organização parceira do Comitê, a Tomara Educação & Cultura, que por sua vez contou com a colaboração de uma pesquisadora associada, responsável pela análise e interpretação dos dados gerados pelas consultas – efetuadas exclusivamente via internet.
O 11º Encontro Paulista de Museus – EPM 2020, intitulado “Museus, sociedade e crise: do luto à luta”, foi realizado em modalidade virtual, entre os dias 23 e 27 de novembro de 2020, ensejando a exposição pública da pesquisa do ICOM Brasil (2020). Esta manteve-se disponível, em sua etapa aberta aos respondentes que se voluntariaram a participar da consulta, no período de 17 a 30 de agosto de 2020, portanto, há dois meses da exposição de seus resultados no EPM 2020.
Mediada por Maria Cristina Bruno, Professora Titular em Museologia no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – MAE-USP, a mesa de debate “Papel dos públicos no futuro dos museus: uma cocriação necessária – apresentação dos resultados da pesquisa do ICOM Brasil com públicos de museus” foi composta pela historiadora especializada em museologia Roberta Saraiva Coutinho, membro da diretoria do ICOM Brasil, pela cientista social Júlia Picchioni, sócia diretora da Tomara, e pela gestora cultural Beth Ponte, pesquisadora associada à investigação em tela. Para comentar a natureza desse tipo de pesquisa, em formato de survey, e seus desdobramentos possíveis, foi convidado o professor William Alfonso López Rosas, coordenador do Mestrado em Museologia e Gestão Patrimonial da Universidade Nacional da Colômbia.
Disponível no site do ICOM Brasil,[2] a pesquisa e seus respectivos dados, análises, interpretações e proposições dão conta de se apresentarem por si – dada a clareza da metodologia e dos modos de apuração e extroversão das informações –, o que nos libera de repassá-los um a um, para, em lugar disso, comentar aquelas que julgamos ser as principais questões emergidas da investigação. Estas foram apontadas durante a mesa, ocorrida em 26 de novembro, abrindo espaço para a discussão das formas como foram abordadas. Nosso relato não se aterá, assim, à sequência das falas, e nem ao encadeamento adotado pela pesquisa. Tampouco se comprometerá com qualquer síntese de seus procedimentos e resultados. Em lugar disso, optará por destacar e discutir determinados problemas com os quais a pesquisa teve de se haver, principalmente no que diz respeito aos descompassos vigentes entre as condições de “públicos” e “não públicos” de museus. Mas antes de introduzi-los, chamamos atenção para o que o professor López Rosas identificou, em sua intervenção, como “cartografia temporal” dos estudos direcionados aos públicos de museus.
Já na epígrafe do presente relato jogamos luz para uma das “pedras fundamentais” desse ramo de pesquisa: o estudo dirigido por Pierre Bourdieu (2003, p. 08, 18) em colaboração com Alain Darbel e Dominique Schnapper, originalmente publicado em 1966, destinado a verificar uma série de dinâmicas e marcadores relativos aos visitantes de museus, no caso, instituições de arte situadas na França, Espanha, Grécia, Itália, Holanda e Polônia, mediante questionários aplicados entre 1964 e 65. Mas é à vertente latino-americana dessa linha de estudos que López Rosas se refere quando aponta o protagonismo do México em tal seara. É nessa direção que o professor menciona o antropólogo Néstor García Canclini, com seus reconhecidos trabalhos sobre as práticas de “consumo cultural”, como nome incontornável da “cartografia” aludida, conjugando-o com o da também antropóloga Ana Rosas Mantecón.
Embora López Rosas não se aprofunde, em seu tempo de fala, nas origens das sondagens e reflexões acerca dos hábitos culturais das populações latino-americanas, bem como nas preocupações em jogo nessas pesquisas, parece-nos oportuno pontuar sua gênese deste lado do Atlântico. Como um dos intelectuais responsáveis pela manobra epistemológica do “giro ao receptor”, Canclini (2016, p. 213, 215) está ligado a uma geração de pesquisadores comprometida com a “reorientação da teoria da arte e da crítica cultural”. Constituída na transição dos períodos ditatoriais para as reaberturas democráticas, nos anos 1980, essa linhagem abrange, além de Canclini e Mantecón, figuras como Jesús Martín-Barbero, José Joaquin Brunner e, também, o brasileiro Silviano Santiago. O tal “giro em direção aos receptores” é parte determinante de uma mudança de ênfase: da dimensão propositiva da arte e da museologia para a sua face receptiva, o que exige deslocamentos de distintas ordens e magnitudes.
A disposição para deslocamentos dessa natureza encontra-se, em certa medida, presente na pesquisa de que nos ocupamos neste relato. Contudo, ao se implicar nesse “giro”, Desafios em tempos de Covid-19, especificamente em seu bloco direcionado aos públicos de museus, depara-se com um conjunto de problemas e limitações. Evitando entradas exaustivas nessas problemáticas – que exigem, sem dúvida, abordagens pormenorizadas e verticalizadas –, vamos nos ater a apontá-las, procurando articulá-las a contribuições externas à mesa “Papel dos públicos no futuro dos museus” e à própria pesquisa. Para isso, discriminaremos questões, a nosso ver, nevrálgicas das falas de Coutinho, Picchioni e Ponte, para comentá-las à luz de aportes exógenos à publicização da investigação no âmbito do EPM 2020.
Nesse sentido, apontamos como problemáticas emergidas com a pesquisa: 1) a pouca diversidade nos perfis dos participantes, que refletem o universo dos públicos frequentadores de museus, acrescida da ambivalência do fenômeno pandêmico, que tanto solicita mudanças quanto concorre para o aprofundamento dos quadros de exclusão; 2) os usos intensivos e extensivos dos meios digitais remotos durante a pandemia, tanto pela pesquisa como pelos museus; 3) as acepções de “públicos” e “não públicos”, seus engajamentos discursivos e digitais e, ainda, os desafios da diversificação; e 4) a escuta dos públicos de museus e o uso de novas lentes para considerá-los como “cocriadores” das políticas institucionais. Estas são as balizas para os nossos movimentos entre os “públicos” e os “não públicos” de museus trazidos à tona pela sondagem do ICOM Brasil.
1. A questão da diversidade
Foi em função de seu papel estratégico e de sua decisão de contribuir com informações relevantes para os museus brasileiros que o ICOM Brasil promoveu a realização da pesquisa Desafios em tempos de Covid-19. Focada inicialmente nos profissionais do setor,[3] a pesquisa dedicou sua segunda etapa à face complementar do cenário institucional, aquela para quem os profissionais de museus, em última instância, trabalham: os públicos. Contudo, além destes a pesquisa não pôde deixar de constatar a ampla existência dos chamados “não públicos”, aqueles que não se relacionam com os museus, no âmbito nacional.
Embora a pesquisa tenha obtido alcance visto como “bastante abrangente”, computando 4.210 participações, sendo estas oriundas de vinte e cinco estados brasileiros, ainda assim o seu abarcamento precisa ser colocado em questão, algo que as três agentes envolvidas na investigação reconhecem e fazem. Se nos quesitos do volume de respondentes e do alcance regional a pesquisa parece ter logrado certo êxito, o mesmo não pode ser dito a respeito das representatividades de classe, cor e escolaridade presentes em seus tableaus. Padecendo de pouca diversidade em seu universo de respostas – preocupação elencada pelo trio entre as principais dificuldades trazidas pela sondagem –, a pesquisa se vê limitada por um viés homogeneizante, o qual não pode ser negligenciado ou relativizado.
Mesmo a representatividade regional mostra-se problemática, uma vez que, do total de respondentes, três quartos (75,5%) das participações provêm da região Sudeste do Brasil, conhecida por concentrar maior riqueza e, também, quantidades mais expressivas de equipamentos museológicos: 1.524, contra apenas 183 na região Norte, a menos provida do país nesse aspecto. O estado de São Paulo eleva ainda mais o grau de concentração retratado pela pesquisa, reunindo 57,2% das respostas.
Ao acompanhar esses números, notamos que as desigualdades se inter-relacionam em diversos níveis, convergindo para “fotografias” a um só tempo, parciais e reveladoras de exclusões. É o que se observa quando, às dimensões regionais e infraestruturais, juntam-se os marcadores de gênero, idade, cor e escolaridade: i) as mulheres representam 70,6% do conjunto de respondentes; ii) deste, a maioria é adulta, com 64,2% dos participantes em idade entre 30 a 59 anos; iii) no que toca à cor dos que responderam à pesquisa, 73,5% declaram-se brancos, diante de 14,5% que se autodesignam pardos, enquanto somente 6,6% identificam-se como pretos; iv) quanto ao grau de escolaridade, 84,1% indicam ter ensino superior completo, sendo destes, 52,3% pós-graduados.
Logo, a despeito da considerável adesão ao survey, os perfis dos participantes não refletem a diversidade da população do país, ao contrário, trazendo as “vozes” de parcelas restritas. Se, por um lado, a proeminência feminina no escopo de respondentes sugere, a nosso ver, a busca das mulheres por contrabalançar e intervir no estado de prerrogativas masculinas no que tange à participação e ao protagonismo nos domínios da formação cultural, da inserção e reconhecimento profissionais e da atuação na esfera pública, por outro, são os segmentos mais privilegiados destas que conseguem fazer da experiência museal um recurso favorável, entre outras, à agenda da equidade de direitos e oportunidades.
Com incidência majoritária do perfil feminino branco e com alto grau de escolaridade, a pesquisa, que fora realizada em sua totalidade por meios on-line, dá a ver outra camada de exclusão, sendo esta acirrada pela pandemia. No contexto emergencial em que a pesquisa Desafios em tempos de Covid-19 se situa, o uso da virtualidade digital para a consulta aos públicos também influenciou na pouca diversidade de seus perfis. Tentar explicar os motivos desse fenômeno passa por considerar que tanto o acesso à internet como a prática do home office não condizem a circunstâncias e garantias igualmente compartilhadas, longe disso. Se a abordagem virtual se mostrou como “a única forma possível” de realizá-la em caráter de urgência, dado a necessidade de isolamento social, essa aparente alternativa acabou carreando o ônus da sobreposição de exclusões.
Com isso, a pesquisa vê limitado o seu propósito de escutar os públicos em sentido amplo, uma vez que em tal categoria, consideradas as condições que a sustentaram no contexto da sondagem, ficam esmaecidas as participações das pessoas menos assíduas no cenário museal, como os “públicos eventuais”, os “públicos por acaso” e os “contrapúblicos”, além daqueles que, dado o seu distanciamento dos ambientes e ofertas museais, não são públicos. Em compensação, como compreendem as proponentes da pesquisa, as ausências insinuadas pelo negativo dessa “fotografia” não podem ser ignoradas ou tergiversadas, representando desafio incontornável para a área museal brasileira. Como diversificar? Esta é a questão que se impõe.
Sem querer dar conta de sua complexidade, vale deixar registrado, enquanto um de seus aspectos, a questão dos capitais simbólicos que calçam a experiência de frequentação de museus. Desdobrado de O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público, o estudo A Distinção: crítica social do julgamento, também de Bourdieu (2013), coloca-nos a par de como os capitais educacional e cultural – cultivados nos ambientes familiar, social e escolar – são decisivos para o desenvolvimento do interesse e da disposição para se relacionar com esses equipamentos e seus acervos. O usufruto de tais ambientes e a fruição dos bens por eles preservados e exibidos exigem, de acordo com o sociólogo, capacidades e instrumentos desigualmente distribuídos entre os atuais e potenciais públicos frequentadores, conforme suas condições de classe – que envolvem, entre outros, hábitos relativos à quantidade e à forma de utilização do tempo livre, à assiduidade no acesso aos bens culturais, ao grau de iniciação aos códigos e rituais solicitados na apreensão desses bens e, ainda, à experiência com estados de atenção e concentração.
Por não serem comuns a toda a população, os atributos que estimulam e autorizam a fruição dos patrimônios culturais representam, na teoria bourdiana, faculdades socialmente “raras”, oriundas do amálgama de um conjunto de capitais (inclusive econômico) acessível a parcelas restritas da população, destacadas por suas capacidades sensíveis, cognitivas, linguísticas e sociais – tidas como “propriedades” reservadas àqueles que integram classes e frações mais bem providas culturalmente. Vale pontuar que, inclusive na pesquisa Desafios em tempos de Covid-19, são elas que ratificam a legitimidade dos museus e sugerem como devem ser as suas dinâmicas.
Num país como o Brasil, onde essa “raridade” é drasticamente intensificada e circunscrita, entre outros mecanismos de exclusão, pelo racismo institucional, as oportunidades educacionais, materiais e profissionais de mais da metade da população brasileira são sistematicamente corroídas a ponto de alijar essa maioria (minorizada) dos ambientes de formação cultural e cidadã, como no caso dos museus – e, por conseguinte, de seus respectivos instrumentos de consulta pública. Logo, realizar ações voltadas a diversificar os públicos de museus, ou “colori-los”, para usar a expressão de Ponte, requer enfrentar injustiças e assimetrias estruturais como essas, que garantem o direito de acesso aos capitais mencionados a certos perfis populacionais e não a outros.
2. Os meios digitais remotos como alternativa parcial
Para levar a efeito o propósito de ouvir e conhecer os públicos de museus, reunindo dados e ideias úteis aos profissionais da área, subsidiando-os assim num momento de crise, a pesquisa em questão apostou suas fichas nos meios digitais on-line. Aplicada exclusivamente por vias remotas – por computador ou celular – a sondagem se valeu tanto do mailing do ICOM Brasil, e também de seus parceiros e apoiadores,[4] como da difusão do formulário de consulta pelas redes sociais digitais, nas páginas de instituições do setor museal. Sua multiplicação também fora promovida pelos próprios respondentes, de modo espontâneo, através de suas contas pessoais.
Em circulação durante a segunda quinzena de agosto, o formulário se estruturou em três blocos temáticos: a) Como você tem se distraído na pandemia? B) O que você pensa sobre os museus? C) Como você acha que os museus podem melhorar? Entre as premissas que orientaram a consulta nessas direções, vigorou a necessidade de uma “resposta rápida” em meio às premências suscitadas pela pandemia de Covid-19. Daí que a internet tenha se mostrado o meio mais ágil e aparentemente eficaz, além de sanitariamente seguro, de obter respostas acerca de como os públicos de museus vêm usando o seu tempo livre, assim como vislumbrar de que formas essas instituições podem responder ao atual estado de coisas.
Na atenção àquilo que os museus têm feito para se reposicionar frente ao quadro pandêmico, apresenta-se uma possibilidade de ramificação do problema. Se o tronco principal da pesquisa sustenta a necessidade de se escutar e compreender, através de meios virtuais, as motivações e os modos como os públicos se relacionam com os museus, inclusive durante a pandemia, outro ramo que se anuncia nessa abordagem refere-se às maneiras como os museus têm lidado com a necessidade de se “reinventarem”, no sentido de se expandirem para os ambiente virtuais, atraindo o interesse das pessoas em participar remotamente de suas plataformas, programas e ofertas, no período do isolamento social, e possivelmente para além dele.
“A pandemia gerou uma diáspora digital”. Este é o diagnóstico verbalizado por Ponte para iluminar a extensão e intensificação das interfaces entre o digital e o real, num período histórico em que não é mais possível distinguir entre uma coisa e outra: o digital é o real, e vice-versa. Entretanto, mais da metade dos respondentes da pesquisa, em sua maioria visitantes frequentes de museus, não participou de nenhuma atividade promovida remotamente por instituições museológicas. Há, nesse dado, a oportunidade de nos perguntarmos sobre a atratividade e a efetividade das ações virtuais realizadas pelos museus brasileiros durante a pandemia.
Escrito no início do período de isolamento social no país, o artigo de Giselle Beiguelman publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, em 17 de abril de 2020, vai diretamente ao ponto: “Atropelados pela pandemia, museus rastejam na internet”, eis o título do texto. Em tom provocativo, a artista e professora afirma que os museus se encontram “na idade da pedra da internet”. Circunstância que ela detalha apontando para a falta de conteúdos culturais e artísticos desenvolvidos para a web, em linguagem própria, o que acaba levando boa parte dessas instituições a se limitar às mídias sociais e ao Google Arts & Culture. É nessa linha que Beiguelman, especialista em web-art, convoca os museus e seus responsáveis a compreenderem a internet “para além de um repositório de links”, destacando que os investimentos em pesquisa e criação são determinantes para a construção de plataformas virtuais específicas, que façam jus a essas instituições e a seus públicos potencialmente ampliados. Seu texto termina com um apelo: “instituições, por favor, despendurem-se das redes sociais...”.
Quem sabe a provocação de Beiguelman também sirva para problematizarmos parte da metodologia adotada pela pesquisa Desafios em tempos de Covid-19, em seu bloco dedicado aos públicos de museus, através de consultas remotas. Observar a sondagem do ICOM Brasil pela ótica crítica proporcionada pela web-artista, em sua intervenção pública claramente decidida a “sacodir o coreto”, passa por colocar em questão o uso de algum modo naturalizado da internet pela pesquisa, como se esta fosse um meio neutro e de alcance irrestrito. Ao lançar mão de mailings e redes sociais de instituições especializadas, talvez a investigação não tenha se precavido o suficiente diante dos vieses produzidos pelas “bolhas” e “câmaras de eco” do sistema interativo e informacional digital, caracterizado por hiper-segmentações.
Prevenir-se disso, e lidar de forma propositiva com os desafios colocados por ambientes de interação virtual notadamente setorizados, pressupõe aportes científicos e tecnológicos e, a partir deles, o delineamento de estratégias capazes de furar “bolhas” e transpor “câmaras” ensimesmadas. Mesmo porque, se a sondagem em discussão afirma os públicos no plural, ela poderia ter se ocupado de arquitetar modos de tentar garantir a presença real (mesmo digitalmente) dessa pluralidade, alavancando maior participação tanto das modulações “eventual”, “por acaso” e “contra” dos públicos de museus como também de pessoas que sequer são públicos desses equipamentos.
3. Os públicos e seus engajamentos discursivos e digitais
Nas visões dos públicos que responderam à pesquisa, os museus são lugares de “conhecimento” (29,1%), de “reflexão sobre o passado, presente e futuro” (27,9%), de “inspiração” (26,3%), de “educação” (12,9%), de “divertimento” (1,3%) e de “turismo” (1,2%). Somadas essas porcentagens, chega-se a 98,7% do total de respondentes. Na franja residual da sondagem, ausente desse cômputo ligado às percepções positivas sobre os museus, estão, entre outras, as dos participantes para quem estes são lugares “chatos, entediantes e de coisas velhas”. Porém, enquanto a publicação do ICOM Brasil (2020) comemora o que chama de “boas notícias para os museus”, devidas ao fato de que “o senso comum que imaginava o museu como lugar de coisa antiga parece estar mudando”, não devemos nos esquecer de que, como apontado acima, mais de quatro quintos dos respondentes (84,1%) declararam possuir graduação completa.
Quando considerado que a porção majoritária dos participantes da pesquisa cursou e concluiu o ensino superior, somos levados a crer que estes tiveram, ao longo de suas trajetórias formativas, mais ou menos oportunidades de conhecer museus e seus atrativos e possibilidades, o que os habilita, em diferentes medidas, para entendimentos melhor informados e mais procedentes em relação ao que possam representar os museus da perspectiva de seu usufruto. Em contrapartida, a compreensão tachada de “senso comum”, que enxerga o museu como depósito de coisa velha, deturpando o sentido dessa instituição, esteve reservada a apenas 16 dos mais de quatro mil respondentes, o que representa 0,38% do universo de respostas. Algo que nos faz pensar que a pesquisa praticamente não chegou aos públicos que temos chamado de “eventuais”, “por acaso” e “contrapúblicos”. Para não falar dos “não públicos”.
Note-se que a dificuldade em distinguir entre “públicos” e “não públicos”, e de contemplar ambos com a pesquisa, deve-se à própria natureza do que seja um público. Na concepção de matriz discursiva do teórico Michael Warner (2005), o conceito de “público” se refere a uma condição performativa, e não substantiva, que se constitui contingencialmente na relação com os meios e discursos, neste caso, com os museus e seus acervos, curadorias, programas, sites, publicações etc. Nessa acepção, só podem ser considerados “públicos de museus” aqueles que se relacionam com os museus e suas ofertas (independentemente dos níveis de assiduidade e diligência) e que, consequentemente, tendem a ser aqueles que se dispõem a responder pesquisas sobre esses equipamentos, que os interessam enquanto dispositivos de conhecimento, reflexão sobre presente/passado/futuro, inspiração, educação, divertimento e turismo. Os chamados “não públicos”, por não performarem esse elo discursivo com os museus e seus bens simbólicos, dificilmente se engajarão (ao menos espontaneamente) na participação de consultas sobre aspectos alheios às suas atuais práticas culturais.
Sensível a isso, a publicação do ICOM Brasil (2020) alerta para o fato de que, enquanto os museus forem pouco diversos do ponto de vista de sua frequentação, “será sempre alta a probabilidade de as pesquisas com públicos serem marcadas por vieses de classe social, cor e escolaridade”. Mas isso não encerra o problema da pouca representatividade da pesquisa e, também, das iniciativas museais nos ambientes virtuais. Ainda na linha de Warner (2005, p. 67), deve-se ter em conta que o problema do público é análogo à “circularidade [do dilema] do ovo e da galinha”. Por essa ótica, nem os discursos (i.e., as ofertas dos museus) e nem os públicos têm precedência um sobre o outro, ao passo que eles se constituem concomitantemente: surgem públicos porque, com eles, surgem os discursos, da mesma forma que emergem discursos porque, com eles, emergem os públicos.
Depreende-se dessa equação circular e performativa que os públicos de museus poderão ser tão mais diversos quanto mais múltiplos forem os discursos, programas, ofertas e formas de abordagem que os imaginam como seus fruidores e possíveis beneficiários – e “cocriadores”, na acepção defendida pelo ICOM Brasil.
Uma iniciativa ainda em vigor, desenvolvida pelo Museu de Arte de São Paulo – MASP em resposta à pandemia de Covid-19, é ilustrativa dessa compreensão, apesar de repisar fórmulas superadas nos âmbitos da arte/educação e da participação. Concebido pela Curadoria do museu em colaboração com as áreas de Mediação e Comunicação, o programa “masp [desenhos] em casa” procura aproximar públicos mais diversificados (em termos etários, sociais e geográficos) de seu acervo de obras.[5] Nele, o museu apresenta remotamente, através de suas mídias digitais e site, reproduções de obras da coleção que funcionam como objetos de releitura para os públicos produzirem seus próprios desenhos, com eles participando de concursos promovidos pelo museu nas redes sociais. A avaliação do MASP, verbalizada por seu diretor artístico, Adriano Pedrosa, é de que o programa “tem tido engajamento extremamente positivo de milhares de seguidores, bastando ler algumas das centenas de comentários destes nos posts que anunciam os resultados [dos concursos]”.[6]
Não cabendo, aqui, uma discussão detida do programa, importa salientar sua tentativa de diversificar os públicos, através do modo como mobiliza as obras da coleção. Nesse caso, chama atenção que elas funcionem como convites para os “públicos-seguidores” se relacionarem com suas formas e conteúdos da perspectiva da (re)criação, embora deva-se problematizar tanto os limites da noção de “seguidor” como o recurso à “releitura”, expediente que deixou de ser reconhecido pela arte/educação há algum tempo. Ecoando o apelo de Beiguelman para que as instituições abram mão dos automatismos e da onipresença das redes sociais, perguntamo-nos em que medida “os milhares de seguidores” podem vir a se relacionar com o MASP para além dos cliques e do compartilhamento de imagens.
Outra dimensão que aparece é a oportunidade de os públicos virtuais (em sentido duplo, tanto digital como potencial), ao realizarem suas “releituras” e compartilhá-las nas redes do museu, agregarem às obras elementos de seus próprios repertórios, além de conferir-lhes circulação e visibilidade. Há que se indagar, no entanto, se o MASP está disposto a produzir consequências para as respostas que lhe são confiadas, para além da mera autoafirmação e marketing institucionais, como indaga Cayo Honorato em comentário no post do museu. Vale testemunhar, por fim, os perfis dos públicos engajados no programa. Reportagem do portal G1 destaca participações que não coincidem com aquelas hegemonicamente refletidas pela pesquisa do ICOM Brasil com públicos de museus.[7]
4. As diferentes formas de escutar e observar os públicos
Talvez por prever, desde o início de seu planejamento, a incidência de tendências concentradoras de classe, cor e escolaridade na investigação junto aos públicos de museus, Desafios em tempos de Covid-19 inverteu, em seu questionário estruturado, a posição da seção dedicada aos perfis dos participantes. Normalmente situada no início dos instrumentos de consulta, tal seção fora deslocada para a parte final do questionário em questão. Como argumento para essa inversão, Ponte afirma que se tratava de atentar, não tanto para os perfis dos públicos, mas, principalmente, para aquilo que eles pensam e esperam dos museus. Ou seja, a pesquisa teve como mote menos a investigação acerca de quem usa os museus e mais sobre o que se entende e espera desses equipamentos, embora as respostas a isso provenham de respondentes mais assíduos na frequentação dessas instituições.
Imbuída da premissa de que, entre os papéis assumíveis pelos públicos de museus, está o de contribuírem para a definição das linhas e políticas institucionais – o que o ICOM Brasil chama de “cocriação” –, a pesquisa demonstrou que estes “querem ser ouvidos e, assim, assumir papel ativo na construção dos museus do futuro”, segundo Coutinho. O trabalho de “escuta” através da sondagem remota vem, em tese, contribuir para a elaboração de instrumentos de ações propositivas e afirmativas e, como acrescenta a museóloga, “para o não aprofundamento da exclusão social pós-pandemia”. É nessa mesma direção que Picchioni afirma ser necessário “usar novas lentes para enxergar os públicos dos museus”.
Se, como sustenta a pesquisa, os impactos da pandemia de Covid-19 exigem tanto a consulta aos públicos, e o consequente levantamento de suas demandas, como uma nova mirada para as necessidades apontadas por eles, então devemos nos perguntar sobre o que fundamenta essa “escuta” e “observação” ressignificadas. As respostas a tal questão aparecem, nas falas das responsáveis pela pesquisa, de diferentes modos: “por que escutar e incluir os públicos? porque é fundamental”; “trata-se de conhecer e dar voz aos públicos e não públicos”; “escutá-los é uma ação essencial para qualquer instituição museal disposta a refletir sobre seu papel na sociedade”; “a escuta contribui para a constituição de ferramentas de ação”; “é preciso dialogar para superar conjuntamente os desafios”; “cumpre apontar para o futuro dos museus, levando em conta o papel dos públicos nessa construção”; “deve-se inspirar a reflexão e o engajamento, acelerando o percurso dos museus rumo a um futuro com mais empatia, diversidade e relevância social”.
A generalidade dessas inquestionáveis formulações, e o risco de repercutirem apenas em termos retóricos, leva-nos de volta ao “giro ao receptor” de que fala Canclini. Entendemos que essa manobra – testada a seu modo pela pesquisa do ICOM Brasil – exige mais do que as legítimas intenções de “ouvir” os públicos e de “olhar” para as suas demandas por outros ângulos e filtros. Exige, a nosso ver, a constituição de marcos, ferramentas e compromissos derivados da dimensão performativa dos públicos de museus enquanto tais (sejam eles “assíduos”, “eventuais”, “por acaso” ou “contrapúblicos”), nas situações em que eles interagem com as ofertas institicionais – presenciais ou remotas –, quando seus gestos atualizam, endossam, modulam, deslocam, desafiam ou refutam os museus e seus programas, algo que os questionários e seus direcionamentos nem sempre alcançam.
Em outros termos, aquilo que urge ser “ouvido” e “observado” no tocante aos públicos de museus é frequentemente pautado por eles mesmos, em ato – como sugere tanto a perspectiva da recepção ativa da abordagem cancliniana, como a performatividade própria à concepção warneriana de público. Nesses casos, aquilo que embasa a “escuta” e o “olhar” voltados aos os públicos não deve estar restrito aos nossos critérios e pressupostos como pesquisadores, vertidos em questionários e consultas formalizadas, por mais cuidadosas que possam ser a construção e aplicação das questões. Há algo que escapa das sondagens baseadas em surveys quando se busca conhecer “aquilo que os públicos desejam”, para usar expressão trazida pela própria pesquisa. No caso de Desafios em tempos de Covid-19 esse “excedente” é ampliado pelo fato de que parte significativa dos respondentes que demandam maior diversidade, acessibilidade, inclusão e abertura às comunidades – dada as suas condições privilegiadas de classe, raça e escolaridade – falam em nome de outros.
Para sermos mais claros em nossa ponderação, vemos a necessidade de confrontar resultados obtidos por sondagens baseadas em surveys, como é o caso da pesquisa do ICOM Brasil, com relatos de base etnográfica, capazes de reportar situações concretas, emergentes, imprevistas, singulares e, não raro, complicadoras das percepções acerca das relações entre museus e públicos. Inclusive porque, se “os impactos da pandemia de Covid-19 exigem novo olhar dos museus para as necessidades dos públicos”, como propõe a pesquisa em discussão, precisamos contar com lastros vivenciais desafiadores tanto das perspectivas dos museus como das de seus habitués.
É nesse sentido que trazemos para cá um trecho da exposição oral de Anne Krebs, por ocasião do Encontro Internacional Públicos da Cultura, realizado em 2013, no Sesc Vila Mariana. Então coordenadora do departamento de estudos e pesquisas do Museu do Louvre, Krebs teve oportunidade de narrar uma situação envolvendo a comunidade carcerária da Prison de la Santé, penitenciária parisiense com que o Louvre mantinha um programa de parceria, e que previa a realização de uma exposição no interior do presídio, com reproduções de obras-primas do acervo do museu. A organização e a montagem da mostra couberam aos detentos, dinâmica que lhes conferia um rol de oportunidades culturais, artísticas e, em última análise, simbólicas.
Um dos detentos, ao ser consultado sobre o seu interesse em se envolver com a iniciativa, apresentou aos proponentes do Louvre a seguinte condição: a de que pudesse usar parte do tempo de construção da exposição para plantar os seus tomates no canteiro do pátio da prisão – plantio que lhe era proibido pela administração do presídio. Em que pese o caráter anedótico do relato, ele é hábil em refletir as condições relacional e contingente de público comentadas por nós. Alegórico, o caso dá a ver as diferentes disposições e agendas em negociação quando museus e públicos interagem: enquanto o Louvre facultava acesso a bens e práticas “raras”, um dos detentos, no papel de público, enxergou no programa ofertado pelo museu – ligado à promoção do acesso a práticas e bens culturais – a chance de cultivar seu fruto preferido.
Se alguma contribuição pode advir do cotejo entre esse ínfimo ato de recepção e o abrangente quadro de informações propiciado pela pesquisa Desafios em tempos de Covid-19 ela tem a ver com o alerta de que os substratos da “cocriação” de que fala o ICOM provêm não somente de consultas públicas e formulações de intenções, mas também dos precedentes produzidos em ato pelos públicos, sejam eles “assíduos”, “eventuais”, ou, como no caso do detento plantador de tomates, “por acaso”. Já os “contrapúblicos” ficarão para outro relato, que, aliás, estamos produzindo noutro contexto a propósito dos ataques dirigidos à exposição “Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira” (2017), entre outras.
Quanto às “novas lentes para enxergar os públicos”, estas não são automaticamente fornecidas pelos dados oriundos dos surveys, ainda que eles possam contribuir para o processo, devendo resultar de esforços analíticos e conceituais que nos permitam divisar fenômenos e dinâmicas concernentes às especificidades das formas de atuação dos públicos. Seu reconhecimento requer o desenvolvimento de ferramentas e tipologias derivadas da miríade de atos protagonizados por aqueles que se relacionam (com maior ou menor assiduidade e propriedade) com os museus e seus bens culturais, exigindo experimentações metodológicas e torções epistemológicas. Até porque, tanto quanto os equipamentos museológicos e seus acervos, os públicos e seus gestos, eles mesmos, também ensejam recepções de nossa parte, enquanto pesquisadores. Façamo-nos públicos dos públicos, aprendendo com cada um deles aquilo que lhes diz respeito.
Referências bibliográficas
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[1] Pesquisador, mediador cultural e artista visual. Atua como assistente técnico no Sesc São Paulo, na Gerência de Estudos e Desenvolvimento. É doutorando no programa Interunidades em Estética e História da Arte, na Universidade de São Paulo (PGEHA-USP); mestre em Artes, na linha de Poéticas Visuais, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); e licenciado em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. E-mail: [email protected]
[2] <http://www.icom.org.br/wp-content/uploads/2020/11/20201119_Tomara_ICOM_Ciclo2_FINAL.pdf>. Acesso em: 26 nov. 2020.
[3] <http://www.icom.org.br/wp-content/uploads/2020/11/20201119_Tomara_ICOM_Ciclo1_FINAL.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2020.
[4] Os parceiros da pesquisa do ICOM Brasil são a Tomara Educação & Cultura e a Compedium, enquanto seus apoiadores são o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-RJ e a Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura – ABRAOSC.
[5] Disponível em: <https://masp.org.br/eventos/emcasa>. Acesso em: 01 dez. 2020.
[6] Em resposta no Facebook a Cayo Honorato, que questionou a metodologia adotada pelo programa.
[7] Cf. “Masp incentiva o público a desenhar suas obras”. Disponível em: <https://g1.globo.com/globonews/jornal-das-dez/video/masp-incentiva-o-publico-a-desenhar-suas-obras-8713710.ghtml?fbclid=IwAR3vPuGFLiWz1pfVEtJc_DmGIoKbqLwI8yRq_TmfKRLF66xmRv9bWo4phPY>. Acesso em: 01 dez. 2020.