O Desafio do Novo: plataformas digitais e novos mercados
Por: Felipe Martinez
O presente relato trata das mesas ocorridas no Dia 9 de abril de 2018. As duas apresentam novas maneiras de produzir e vender arte e por meio delas é possível entender alguns dos problemas enfrentados por agentes do meio artístico no Brasil.
Mesa 1 – Plataformas Digitais
Com Lívia Benedetti e Vivian Gandelsman
A primeira mesa conta com Lívia Benedetti, responsável pelo site Aarea, e Vivian Gandelsman, responsável pela plataforma virtual Artload. O auditório, ainda em construção, está cheio e as palestrantes iniciam suas falas.
Lívia Benedetti e sua sócia Marcela Vieira produzem a plataforma online Aarea desde o começo de 2017. O site mostra projetos inéditos concebidos por artistas convidados. Cada projeto dura um tempo determinado para depois ceder lugar a um novo. Ao acessar o site, o publico encontra somente a obra feita pelo artista exposto no período, sem texto curatorial nem informações adicionais. É o caso da obra presente no site na data da palestra: o “Quilômetro quadrado preto (one square kilometer)” do americano Kenneth Goldsmith, que apresenta um uma superfície virtual preta de um quilômetro quadrado. O internauta pode utilizar as barras de rolagem para percorrer toda a extensão da área. Outros interessantes trabalhos, como os realizados pelos artistas Mayana Redin e Fábio Morais, também foram citados.
Merece destaque a obra “Lígia”, que Nuno Ramos concebeu para o Aarea a partir de duas edições do Jornal Nacional. A primeira é a edição em que se noticia o vazamento de uma conversa gravada entre os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. A segunda é a edição na qual o impeachment de Dilma Rousseff é anunciado. Contando com uma equipe de editores de vídeo, Nuno rearranjou as silabadas das frases ditas pelos apresentadores do jornal, de modo que eles cantassem a canção “Lígia” de Tom Jobim. O trabalho era exibido no site somente no horário do Jornal Nacional, respeitando os intervalos comerciais. Uma espécie de Jornal paralelo, simultâneo ao noticiário da Rede Globo. A obra foi veiculada exatamente um ano após o impeachment e chegou a ser compartilhada pela senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT.
Vivian Ganldesman trabalhou por oito anos em galerias e há quatro anos mantém o projeto Artload com sua sócia Flávia Soares. Trata-se de uma plataforma virtual com vídeos de conversas com personalidades do meio artístico comentando suas trajetórias e experiências profissionais. Em um dos vídeos, Glenn Lowry, diretor geral do MoMA, revela que a maior parte de seu trabalho no museu ocorre na área de captação de recursos. Segundo Vivian, declarações como essa contribuem para uma visão mais realista do trabalho no meio. A ideia é que os vídeos sejam mais longos do que a média disponível no Youtube e sirvam como um grande arquivo de conteúdo sobre o meio artístico, algo especialmente importante em um momento no qual o mercado de arte tenta se tornar mais democrático.
Lívia e Vivian mencionam o potencial inclusivo da internet como um fator que contribui para sua opção por plataformas digitais. Somam-se a isso os custos reduzidos em produzir um site quando comparados aos de uma galeria física. Também destacam as dificuldades técnicas que profissionais da arte e da cultura encontram ao lidar com um site, o que demanda o trabalho de profissionais de outras áreas. Do ponto de vista financeiro, nos dois casos, há dificuldades de captação de recursos. Livia menciona que o Aarea vai começar um plano de captação em breve e Vivian relata os problemas no financiamento de sua plataforma, hoje custeada pelo anúncio de galerias e por escassas doações.
Ao longo das falas, fica claro que as redes sociais são fundamentais para divulgar as plataformas. Isso não é necessariamente algo bom, segundo Lívia, pois sites como o Facebook têm alcance pouco claro e são cada vez mais controversos. Ela lembra a polêmica envolvendo o Facebook nas últimas eleições americanas. Em relação às iniciativas que as inspiraram na criação das plataformas, Livia menciona o site Ubuweb, criado por Kenneth Goldsmith, que reúne o maior arquivo online de obras de arte de vanguarda. Por exemplo, o site disponibiliza desde curtas-metragens de Agnès Varda até obras icônicas como a Caixa Verde de Marcel Duchamp. Também recomenda o site Vdrome, que mensalmente exibe produções audiovisuais situadas entre a linguagem do cinema e da videoarte. Vivian, por sua vez, recomenda o site Talkinggaleries, que discute questões ligadas ao mercado e o futuro de galerias, com seus possíveis novos modelos. Além disso, também chama atenção para o Museum of non-visible art, que conta com um acervo de mais 750 entrevistas com curadores, galeristas, artistas e profissionais do meio.
As duas iniciativas exploram a internet como meio para fazer e divulgar arte. No Aarea, a proposta é expor obras de arte de natureza conceitual diretamente na internet, o que mostra o seu caráter experimental. Já o Artload é uma plataforma de discussão e divulgação de questões ligadas ao mercado de arte, composto por um amplo acervo de depoimentos entrevistas de atores do meio artístico. Ainda que louváveis, as duas iniciativas ainda lutam com dificuldades embrionárias, como financiamento e divulgação. Alguns desses problemas também surgem na mesa seguinte, sobre a criação de novos mercados.
Mesa 2 - Novos mercados
Com Jaqueline Martins e Nuno Centeno
Passado intervalo para o café, a segunda mesa apresentou as experiências da galerista brasileira Jaqueline Martins, responsável pela Galeria Jaqueline Martins e do português Nuno Centeno, fundador da Galeria Nuno Centeno. Os dois galeristas relatam as dificuldades de vender a arte que agenciam nos mercados do Brasil e de Portugal. Também demonstram pertencer a um mundo com referências compartilhadas, estruturado em torno de certos hábitos – como a utilização constante de termos em inglês - e concepções não puramente comerciais do mercado de arte.
A Galeria Jaqueline Martins existe há cerca de sete anos em São Paulo. De acordo com sua dona, dirigi-la envolve uma complexidade que não é fácil de transmitir para quem não é do ramo. Essa complexidade se agrava quando se leva em conta que galeria trabalha majoritariamente com arte conceitual. Nuno Centeno, por sua vez, destaca o caráter pessoal de sua atividade como galerista: para ele, não se trata só de “business”, mas também de “lifestyle”. Além disso, menciona as dificuldades de vender a colecionadores portugueses, o que desloca suas vendas para compradores estrangeiros. Para os dois galeristas, os mercados brasileiro e português ainda não têm uma concepção amadurecida sobre as obras vendidas em suas galerias. A fala de Nuno certa hesitação por parte dos galeristas em encarar o negócio de galerias a partir de uma racionalidade puramente capitalista, o que certamente é um entrave na expansão dos mercados.
Além de comercializar artistas contemporâneos, Jaqueline ressalta que sua galeria também trabalha com uma produção histórica. Para tanto, ela realizou pesquisas nos arquivos de instituições como o MAC-Usp e a Bienal de São Paulo. Assinala que o trabalho de pesquisa é fundamental para lidar com artistas como Hudinilson Júnior e Letícia Parente, não absorvidos pelo mercado brasileiro na época em que produziram. De fato, a arte experimental e conceitual esteve muitas vezes fora do mercado, quando não oposta a ele. Muitas vezes, criar mercado para a arte moderna e contemporânea acaba sendo uma função do galerista, algo que se verifica, pelo menos, desde o século XIX com o início dos movimentos ligados ao impressionismo.[1] Vender é também formar o gosto do público, de algum modo “educá-lo”, sobretudo quando se fala de novos mercados. Talvez por essa razão Nuno manifeste seu desejo de ver as galerias como locais que possam proporcionar experiências educativas ao público.
Os dois galeristas mencionam a centralidade do circuito de feiras para sobreviver no mercado, e os custos que esse circuito traz. Por exemplo, Nuno relata ter estado em uma feira internacional - que prefere não nomear – e afirma ter vendido quase 100 mil euros em obras. Mesmo assim, seu “liquid profit” foi de apenas 5.600 euros, dados os custos envolvidos no processo. Os dois galeristas apontam que em novos mercados nem sempre os colecionadores têm compromisso com a arte. Entretanto, ponderam que é impossível viver só do colecionador de elite em um mercado tão concorrido, descrito por Nuno como uma maratona em que é preciso estar sempre em movimento, correndo atrás dos que estão na liderança e se mantendo a frente dos que vêm atrás. Jacqueline revela que há museus internacionais que compraram obras de sua galeria, mas que demoram muito para pagar. Por razões como essa, é importante estar próximo de novos clientes.
Ao final do debate, Jacqueline dá uma visão honesta e bem humorada da situação ao dizer que o mercado de arte precisa de “gente entediada” que já dispõe de outros bens de consumo e busca algo a mais na arte. Sua sinceridade é didática: “Os entediados compram muito e pagam rápido, como clientes são os melhores”. Talvez a principal dificuldade para conquistar novos mercados em países como Brasil e Portugal seja a escassez de entediados esclarecidos.
Considerações finais
Apesar das dificuldades de financiamento, as plataformas digitais parecem caminhar bem em sua tarefa de expandir o conteúdo artístico por novos meios. Destaque para o ótimo Aarea que instiga tanto artistas jovens quanto nomes consagrados a saírem de sua zona de conforto e criar obras especificamente para a plataforma. Com isso a própria arte contemporânea deixa seus espaços usuais - normalmente frequentados pelas classes altas - e caminha em uma direção mais democrática. Ainda assim, o alcance das plataformas é restrito, dadas as dificuldades de divulgação e da falta de familiaridade do público com o conteúdo.
Um problema semelhante ocorre na segunda mesa, já que parte das dificuldades de expandir os mercados para arte conceitual no Brasil e em Portugal está relacionada à falta de intimidade de potenciais compradores com o produto vendido. A fala sincera de Jaqueline Martins sobre a ausência sobre os “entediados” é elucidativa. Desenvolver novos mercados de arte significa também expandir uma determinada visão de arte compartilhada pelas elites dos países ricos e por parte das elites dos países periféricos. Essa relação fica clara no excesso de termos em inglês e na relação reverencial a Londres presentes na fala de Nuno.
Por essa razão é necessário evitar a ideia colonizadora de considerar países como Brasil e Portugal “atrasados” em relação aos países centrais. O esforço deve ser no sentido de entender a complexidade e as especificidades das cenas locais. Para isso, é preciso sair dos lugares comuns do meio artístico e buscar maneiras de dialogar com o público, como parece ser o caso dos projetos de cunho educativo da galeria Jaqueline Martins; caso contrário, tanto as galerias quanto as plataformas digitais estarão fadadas a práticas autorreferenciais que passam ao largo das sociedades em que atuam.
[1] A esse respeito, recomendo a leitura Nicholas Green, "Dealing in Temperaments: Economic Transformation of the Artistic Field in France during the Second Half of the Nineteenth Century," Art History 10 (March 1987.