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Arte contemporânea para além da África

Relato crítico do primeiro encontro do Africa Africans

Por Diego de Kerchove

 

A primeira mesa de discussões do evento foi composta por três artistas de origem africana, mas que atualmente não residem no continente. São eles Nnenna Okore, que nasceu na Austrália mas passou a maior parte de sua juventude na Nigéria e atualmente vive nos Estados Unidos, onde leciona escultura na universidade de North Park em Chicago. Naomi Wanjiku Gakung que nasceu e cresceu no Quênia e agora reside em San Antônio, no Texas e, por último, Bright Ugochukwu que nasceu e estudou na Nigéria, mas hoje vive em Los Angeles, também nos Estados Unidos.

Nnenna Okore foi a primeira a apresentar o seu percurso e o trabalho que ela vem desenvolvendo. Com residências artísticas na China, Estados Unidos e França e uma extensa participação em exposições ao redor do mundo, dentre as quais a 29ª Bienal de São Paulo, Nnenna encontrou na escultura a forma ideal para se expressar. A variedade única de materiais com os quais ela poderia trabalhar foi um dos principais motivos que a levou a se aperfeiçoar nesta arte que ela julga mais libertadora. Focando-se inicialmente em produtos do descarte como revistas velhas e materiais recicláveis, Nnenna busca revitalizar todos esses objetos dando-lhes um novo significado de beleza, assim como de perenidade. A artista ressalta que essa cultura do rejeito é um produto do colonialismo no continente africano, no entanto trata-se de um problema mundial, do qual a África apenas faz parte.  Além de materiais recicláveis Nnenna também trabalha muito com juta, uma fibra têxtil muito comum ao redor do mundo. Assim, a universalidade parece ser um mote essencial em suas obras,  no entanto toda a sua bagagem cultural e suas origens nigerianas moldam o seu trabalho que busca entender o papel e a identidade africana dentro de um mundo cada vez mais globalizado.

Se por um lado Nnenna Okore tem um trabalho que nasce desde muito cedo de preocupações globais, a artista queniana Naomi Wanjiku Gakung enraíza a origem de suas obras em seu vilarejo de infância e nas construções de seus conterrâneos. Naomi atribui o seu despertar artístico a sua infância e as histórias que ela ouvia ao fim do dia de sua avó. Desde muito cedo a artista aprendeu a manipular o vime realizando tranças e bonecas. No entanto um dos materiais que mais atraiu sua atenção, enquanto artista já formada, foram as chapas de metal, que muitas lares quenianos empregam para aprimorar o teto das casas e aproveitam as águas das chuvas que são canalizadas por essas chapas. Naomi, interessou-se também pelas diferentes cores e aspectos que esse material foi adquirindo ao longo do tempo, exposto a todas as intempéries. As Mabati, como são conhecidas essas chapas em Suaíli, são de certa forma fruto da criatividade das mulheres quenianas que eram inteiramente responsáveis pelo lares, já que muitos de seus maridos estavam presos, por lutarem pela independência de seu país. Naomi ressalta que como as Mabatti essas mulheres envelheceram com o tempo, mas elas são tão essencial a sua arte, como o próprio material que emprega.

O último palestrante a se apresentar foi Bright Ugochukwu, formado em artes visuais na Nigéria, Bright menciona que a sua habilidade criativa com diversos materiais iniciou-se em sua infância,  mas o seu despertar artístico aconteceu muito mais tardiamente na universidade. Antes de entrar na faculdade Bright fez trabalhos manuais para empresas na cidade de Aba, um dos grandes centros industriais nigerianos, onde ele teve um primeiro contato entre o estreito elo que existe entre grandes indústrias e a água. Ao longo de seu percurso acadêmico o artista teve dificuldades para encontrar uma temática e materiais que o cativavassem, no entanto, ao sentir na própria pele os efeitos da chuva ácida, Bright decidiu focar os seus esforços artísticos nesta relação entre a água e a poluição de grandes indústrias, trabalhando diretamente com água e com o tema da chuva ácida. Assim como Nnenna e Naomi, Bright sempre buscou abordar temas e materiais que transcendam a África, e encontrou na água essa universalidade. Um material essencial para toda a vida e reverenciado por inúmeras culturas, mas desprezado pelas grandes indústrias.

Uma vez terminada as apresentações, aos componentes da mesa foram formuladas pela organização do evento e a partir de questões do público, duas perguntas. A primeira questão feita aos artistas tratava sobre o reconhecimento que eles recebiam ou não em seus países de origens. A segunda pergunta, indagava se havia uma diferença marcante na produção contemporânea de arte entre os artistas que ficaram em seus países de origens e aqueles que emigraram

Nnenna foi a primeira a responder, mas começando pela segunda pergunta, mencionando que existe uma diferença sensível entre as possibilidades de visibilidade para ela entre os Estados Unidos e a Nigéria. Em seu país de origem faltam recursos e aparelhos culturais, no entanto é um cenário que aos poucos está mudando com bienais, feiras de livro entre outros eventos que estão se tornando mais comum em seu país. Nnenna reforça que além da grande diferença de estrutura, existe no ocidente um interesse por artistas vindos da diáspora africana, no entanto ela ressalta que esse interesse não é sinônimo de projeção.

Em seguida Bright complementa que todo o seu trabalho começou na Nigéria e o movimento para os Estados Unidos se deu por uma série de convites que ele recebeu. O artista comenta que apesar de existir mais informação e estrutura em seu atual país de residência, não há grandes diferenças no seu trabalho propriamente dito e residir fora do continente africano o deixa mais longe de sua fonte de inspiração.

Naomi conclui a resposta apontando que a diferença essencial entre estar no Quênia e nos Estados Unidos se dá em um ponto de vista cultural. Em seu país natal existe um espírito de comunidade muito forte, o trabalho coletivo é essencial, por outro lado no ocidente o individualismo assume um papel preponderante o que oferece a solidão necessária para ouvir a sua voz interior.

Quanto a questão do reconhecimento todos concordam que esse não é tanto o objetivo de suas carreiras, mas sim buscam influenciar, motivar e ajudar outros artistas africanos a perseverar por este caminho, mostrando que existe um interesse legítimo por parte da comunidade artística em conhecer o que é feito fora dos grandes eixos culturais.

Ao fim do encontro responderam uma última pergunta, acompanhados pelo Prof. Glover, que fizera a abertura do evento. Perguntaram a eles qual era o maior desafio de artistas oriundos do continente africano. As respostas seguiram por dois caminhos, o primeiro é transpor as dificuldades estruturais de seus países de origem. Por exemplo, o Prof. Glover aponta que em seu país de origem, Gana, não há um museu ou galeria dedicado à arte contemporânea. O segundo desafio levantado pelos palestrantes é a necessidade de se quebrar o rótulo que é atribuído a artistas africanos pelos ocidentais.

Como os artistas apontaram ao longo de suas apresentações existe obviamente uma inspiração em suas origens que é visível em sua produção e permeia suas falas. No entanto as questões que buscam abordar em seus trabalhos são universais e transcendem as questões específicas do continente africano. Pensamentos que estão em sintonia com o momento político e econômico do continente que apesar do passado conturbado está cada vez mais em evidência no cenário mundial, deixando a alcunha de continente perdido para trás.