Resenha: Damián Bayón, "Prefácio " In: Arte Moderno en América Latina, 1984.
Por: Nadiesda Dimambro
In: Arte Moderno en América Latina, 1984.
Damián Bayón (1915 - 1995) foi um historiador, escritor, curador, crítico de arte e docente argentino que, junto com Jorge Romero Brest, funda a revista “Ver y estimar”. O texto de sua autoria aqui resenhado, prefácio do livro “Arte Moderno en América Latina”, divide-se em três partes: uma primeira discussão acerca da pertinência do uso do termo América Latina ou latino americano; seguida de um debate sobre como a arte produzida na América Latina tem se dedicado a pensar identidade; e, por último, as consequências que esses debates nos trazem a partir de exemplos como o renascimento do desenho, a aparição da abstração geométrica no México e o auge dos conceitualismos.
A discussão sobre a alcunha “América Latina” começa com um importante questionamento: quem nos nomeou assim? Denominação convencional, é advinda da Europa em época específica e que intenta englobar os extensos territórios de colonização espanhola e portuguesa, podemos expandir também essa noção para abarcar todo território não anglo-americano. Bayón refere-se ao historiador Charles Wagley, autor de The Latin American Tradition 1968, que discute a possibilidade ou não de denominar sob um mesmo nome uma grande diversidade territorial, climática e cultural. Será que apenas a religião católica como base e as línguas impostas nos aproximam? Wagley acaba por admitir que há sim aproximações significativas que nos permitem aproximar as culturas sob a alcunha de latino americanas, inclusive em oposição a uma abstrata noção de América anglo-saxã, calcada no protestantismo que acarreta em outro desenvolvimento econômico e ideia de mundo.
Enquanto latino americanos temos em comum o “comportamento de ilha”, ou seja, nos conhecemos muito pouco uns aos outros, sendo esse conhecimento mediado na maioria das vezes pelas antigas metrópoles ou atuais centros de poder imperialistas. Os vinte milhões de quilômetros quadrados permeados por diferentes zonas geográficas, climáticas e raciais que nos constituem, encontram uma maioria de centros de cultura alocados em regiões montanhosas, ou seja, os reducionismos “continente tropical” ou “cultura do calor” caem por terra a partir de um olhar mais atento que visa desestabilizar os estereótipos. Os estigmas continuam através de noções que delimitam os latino americanos como violentos, passionais e sensuais, ou seja, barrocos e surrealistas.
Essas categorias, que Bayón define como excludentes e exageradas, não são apenas advindas de longa e antiga produção estrangeira, mas também imaginadas e empregadas por famosos latino americanos que as aplicam a toda uma cultura de maneira generalista ou tomando seu próprio estilo como referência.
A mestiçagem de negros, índios e ibéricos se dá de múltiplas maneiras ao longo dos séculos. A partir dos processos de independência no século XIX, notamos também uma grande onda migratória em direção à América Latina. Dentro dessa confusão social, a arte começa a cumprir funções para além da religiosa e dos limites de classe a ela atrelados. Há a arquitetura neoclássica nas grandes cidades, em conjunto com a arquitetura doméstica e semipopular, acompanhada a toada da pintura barroca, rococó e romântica. Os chamados “costumbristas”, inclusive, são apontados como os primeiros a encarar o desafio de tentar representar a paisagem latino americana sem reminiscências europeias, o fazem a partir da ideia de devaneio acordado.
Com exceção do Brasil e do México que vivem experiências imperiais no pós independência, os países latino americanos tornam-se repúblicas, e são todos marcados por revoltas sociais, fruto das desigualdades que perpassam o continente. Ao final do século XIX vemos um intenso movimento em direção ao velho continente, principalmente em busca do ensino superior. O contato com a pintura e escultura, e mais tarde a arquitetura, impactarão esses jovens que voltarão para seu continente com as novidades: o academicismo, a arte Nouveau, o surrealismo, e a figuração da década de 30. A arquitetura, por sua vez, dependeu mais de esforços estrangeiros, que vão formar profissionais nativos. Os palácios legislativos, de justiça, de ministérios, universidades, teatros e casas de elite vão se multiplicando na cidade e no campo.
Este apanhado histórico serve para percebermos que os países latino americanos tem procurado saídas diversas para problemas similares, adaptando-se às condições colocadas pelo espaço e tempo. Aparece em quase todos os países em paralelo uma arte não acadêmica que vem sendo reabilitada: os gravadores Picheta e Posada no México, os pintores naifs no Haiti e no Brasil, os ilustradores populares, os caricaturistas peruanos, argentinos, uruguaios e colombianos. Hoje, quando essa produção já está decantada, podemos observar os maus, médios e bons artistas dessa época.
É preciso pensar os problemas teóricos da arte latino americana, a partir de uma crítica de origem latino americana ou não, sendo que por crítica o autor entende reflexão global e filosófica, não apenas artigos efêmeros de jornal. Os pensadores do século XIX e início do século XX, dentre eles o norteamericano Martin Stabb (In quest of identity, 1967) e a inglesa Jean Franco (The Modern Culture of Latin America, 1967), debruçaram-se sobre a temática das identidades nacionais. O argentino Ricardo Rojas chega a fundar o termo “argentinidad”, conceito que se espalhará para cada nação na busca e debate acerca de sua própria identidade.
Há, contudo, divergências. O ensaísta César Graña em seu livro “Fact and symbol” (1971) e em seus ensaios intitulados “La identitad cultural como invento intelectual” (1970) e “La metafísica de la frustración cultural” (1971), ataca essa noção de identidade como sendo uma ideia de intelectuais, que nem sempre corresponde a realidade da existencia latino americana, e que representa uma obsessão por autodefinir-se. O perigo está na associação entre busca por identidade e nacionalismo, que pode ser de direita ou de esquerda, mas que geralmente tende ao indigenismo que fatalmente preconiza a cultura indígena e uma “volta à terra”. Outro movimento que se manifesta e que de alguma maneira complementa o anterior no tom de
nostalgia é o neocolonialismo, onde arquitetos do século XX intentaram reviver a arte da colonia. Tanto o indigenismo quanto o neocolonialismo artístico apresentavam rastros de xenofobia, que buscava em todo e qualquer estrangeiro a justificativa para a perda de nossas raízes.
No Peru, o indigenismo praticado por José Sabogal (1888- 1956), considerado medíocre por Bayón, volta-se para uma receita que consiste em pintar apenas paisagens peruanas, incluindo a paisagem humana e, portanto, índios e mestiços. À sua volta, teóricos de esquerda como Haya de la Torre e Mariátegui contribuiram para tal pensamento nacionalista e de tom demagogo. Mariátegui assumirá, em 1928, um tom conservador com relação ao cubismo, futurismo e dadaísmo, o que marca a disputa em voga pela identidade peruana.
O México, por sua vez, conta com uma maior quantidade de artistas de destaque, como Diego Rivera (1886 - 1957) e David Siqueiros (1896 - 1975). Em seus grandes murais em edifícios públicos representavam simultaneamente o nacionalismo de esquerda, o indigenismo e o forte sentimento anti-hispânico, sempre de maneira didática e elementar.
Esse espírito nacionalista-populista-indigenista não foi totalmente perdido. Na obra de Tamayo e de Toledo percebemos os mitos ancestrais que, mesmo misturados a temas modernos, evocam temas históricos sensíveis. Alguns teóricos tem feito esforços para encontrar reminiscências indigenistas intelectualizadas até em obras abstratas, como as do peruano Szyszlo ou do colombiano Obregón. Ainda, para uma parte dos críticos vanguardistas existiria hoje uma espécie de indigenismo traduzido aos termos da land-art ou da body-art, que tem se constituído principalmente no Brasil a partir da marca de um sentimento de culpabilidade coletiva frente ao extermínio histórico de populações indígenas e suas culturas.
Para concluir a reflexão acerca da obsessão latino americana por sua identidade, o autor ressalta o perigo de tornar ideológico o debate sobre essa combinação entre nacionalismo, indigenismo, populismo, utopismo político social. Há uma quantidade significativa de livros que tentam mapear as divergentes vozes do debate, como por exemplo “América Latina en sus artes” (1975), “El artista latinoamericano y su identidad” (1977), “Panoramica de la arquitectura latinoamericana” (1977), todos textos do autor.
A partir deste ponto do texto, após discutir o termo América Latina, de fazer um apanhado histórico do continente, bem como do debate acerca das identidade nacionais, Bayón enumerará oito pontos relevantes para pensarmos a arte contemporânea latino americana. O primeiro ponto: o revival do desenho, que a primeira vista poderia representar uma nova mentalidade, tendo em vista que representa uma atividade mais íntima em comparação com a pintura e a escultura tradicionais. Além disso, permite-se o barateamento dos materiais, bem como inclusão de mulheres e provincianos, categorias anteriormente pouco representadas.
O segundo ponto consiste na identificação da grande promoção da arte colombiana nas últimas décadas, a partir de uma presença de valores originais. O terceiro ponto destaca o racha entre desenhistas argentinos nos últimos anos, racha pautado no fato de que parte deles encontrou-se no neo-surrealismo, fugindo de qualquer dogma. O quarto ponto também refere-se
à Argentina e à dissolução do círculo capitaneado por Brest, e que agora encontr-se disperso pelo europa e Estados Unidos, dedicados à moda e a manifestações conceituais.
O quinto ponto destaca o aparecimento da corrente de arte geométrica no México, que rompe com experiências anteriores, referenciadas na figuras de Carlos Mérida e Gunther Gerzso. O sexto ponto, também sobre o México, destaca o aparecimento, no âmbito da arquitetura, de esculturas monumentais. Destaca-se na capital o chamado “Espacio Escultórico” e o ambicioso projeto para Monterrey, onde diversas esculturas gigantes de metal transformaram a paisagem urbana da capital. O sétimo ponto salienta a presença de grandes mulheres escultoras nos últimos anos na américa latina, o que vem para quebrar qualquer preconceito com relação a materiais e suporte artístico. Por último, o oitavo ponto levanta a discussão sobre a arte conceitual que, apesar de não ser mais muito popular, tem-se divulgado através de meios elitistas como o Cayc de Buenos Aires e o Centro para Relações Inerameticanas em Nova Iorque. A arquitetura de vanguarda em nosso continente, segue Bayón, tem seguido caminhos próprios e às vezes cruzam ou não os caminho das artes plásticas. Não temos, recentemente, uma coesão de estilo que una um grupo de arquitetos.
Essa enumeração de novidades advém dos criadores, mas fica a questão: como reagem os críticos? De diversas maneiras a começar pelas diferenças políticas: temos uma esquerda mais ou menos moderna e uma grupo que escolhe por permanecer apolítico. Contudo, nem sempre as atitudes com relação aos tipos de arte condizem com seus posicionamentos políticos. A esquerda se divide entre aqueles que encaram a arte conceitual pequeno burguesa e aqueles que a entendem como prática de desalienação. Os apolíticos, por sua vez, dividem-se entre os que aprovam a arte experimental e até a justificam, enquanto outros fecham-se às formas analíticas referentes à qualidade e intensidade da proposta, sem considerações extra-estéticas.
Para concluir, Bayón faz uma leitura rápida da situação do mercado de arte latinoamericano. Enxerga oportunismos medíocres advindos da exploração do já mencionado indigenismo elementar, bem como da pobreza local como negócio. A chamada “arte de aeroporto”, que demanda muito pouco do espectador, tem dado um tom patético ao mercado de arte latino americano. Em sua época, analisa a situação de galerias de arte que estão fechando as portas, tendo em vista que os artistas de qualidade tem dispensado intermediários.
A situação da arquitetura e arte latinoamericanas é complexa e representa um problema permeado por contradições. Por fim, duas advertências se fazem necessárias: a primeira é a necessidade de desconfiar de alguns ensaístas que adquiriram notoriedade e afirmam que a arte latino americana sempre teve temática social. A segunda trata-se do cuidado com autores que buscam artistas de segunda ordem a fim de justificar suas teorias a qualquer preço. É preciso, então, ter rigor na seleção da nossa expressão latinoamericana, para não corrermos o risco de enganar a nós mesmos sobre nossa idiossincrasia e possível destino.
Discussão em sala de aula : Disciplina de pós graduação “Gosto, cânone e institucionalização” ECA USP - profa Julia Buenaventura
A discussão foi pautada nas duas advertências finais que Bayón coloca no texto: a primeira sobre não tomar obras medíocres como grandes ideias, ou seja, não fazer apologia de uma obra artisticamente ruim só pelo seu tema. A segunda, a respeito do estereótipo da arte latino americana ser sempre política, ou seja, de ter ou precisa ter sempre um cunho social, político e engajado (muralismo mexicano, portinari, indigenismos, etc). É preciso lembrar que Bayón tinha uma postura conservadora frente ao conceitualismo latino americano, o que pode nos ajudar a compreender suas advertências.
Mas afinal, há algum critério para decidir o que é boa arte ou não? Focando nessa primeira advertência que o autor nos coloca, debatemos sobre essa ideia de critérios para definir o que é uma boa obra de arte. Se não podemos sacrificar o gosto estético pelo tema, quais são as características que conformam a boa arte? Não seriam essas características tão inventadas e circunstanciais quanto o apelo ao tema social?
Esses critérios são construções de uma cânone que, independente da forma como se constitui (dentro ou fora da América Latina), opera através de escolhas e, portanto, de exclusões. Existe algo na arte que seja comum a todos os seres humanos? Há alguma arte, dentro dessa ideia de boa arte, que seja capaz de atingir a todos, que seja compreendida por todos? É possível falar em arte universal?
O texto de Bayón instigou ainda mais o debate transversal do curso a respeito de como escrever a história da arte latino americana e, também, como destrinchar os cânones e duas formas de construção.