Resenha: Marta Traba, "La Resistencia", In: Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericanas 1950/1970, 1973
Resenha por: Nicole Palucci Marziale
Marta Traba inicia o capítulo La Resistencia, escrito em 1973, apontando a falha da crítica de arte latino-americana em definir uma estética emergente das condições peculiares a seu contexto, de modo que, para a autora, aquela segue vagando entre a catalogação, a descrição de obras, a monografia enumerativa e a reverência servil aos fenômenos produzidos no estrangeiro.
Nesse sentido, Traba refere-se à afirmação de uma “colônia estética” por parte dos Estados Unidos, responsável por apagar, quase inteiramente, o quadro de áreas abertas e fechadas que se constituiu em 1958 (o qual a autora irá delinear ao fim do capítulo), criando uma unificação fictícia do âmbito latino-americano, considerada como motor de “progresso”, em detrimento de uma suposta “condição de província”.
Quanto ao referido quadro, a autora trata de situá-lo, de modo que o início de sua delineação data em torno de 1950, quando os artistas latino-americanos que chegam a seu apogeu ao fim dessa década livram-se das falácias do “mexicanismo” e do “nativismo”, e outras formas que Traba considera espúrias, como as adoções precárias do cubismo, pós-impressionismo, expressionismo e o abstracionismo geométrico europeu. Esses artistas rendem-se à ideia da arte moderna como uma “maneira distinta de ver”, que permite formular novos significados, de modo que essa nova visão se apresenta, para uma geração cuja obra era ainda indefinida, como uma ruptura com a visão imperante desde o Renascimento até o final do século XIX. Desse modo, os objetivos básicos que fundamentam os valores desse período, estabilidade, objetividade e permanência, são questionados e dão lugar às propostas de mudança, subjetividade e deterioração. Quanto à subjetividade, após a segunda guerra mundial, essa é substituída pela “subjetividade social”, dentro da qual “a liberdade absoluta que enuncia o espiritual na arte”, e a liberdade do fazer artístico proposta pelos nova-iorquinos de 48 a 50 dão lugar a uma visão do contexto no qual o artista está inserido. Ainda, o “estrelato” (divismo) do artista passa à obra de arte, de modo que esse, em um gesto de “humildade”, que para a autora é apenas uma nova maneira de atrair atenção, “se apaga”, e transmite sua identidade para a obra. Por fim, como característica dessa “subjetividade social”, verifica-se a preocupação com a participação do público.
Diante de todas essas mudanças, Marta Traba nota como os pintores dos anos 50, ou que surgem nos anos 50, passam a recapitular o problema da pintura a partir do zero. Tal recapitulação, para a autora, deve esclarecer questões importantes como as relações com a burguesia, com a história “passada, presente e futura” de suas comunidades, com o continente e com as invasões culturais exteriores, além das relações com a arte moderna e aparição da arte atual (à época). Diante disso, os artistas não se apoiam em figuras predecessoras e isoladas, pois lhes faltava uma estimação adequada de suas obras, que ainda não poderiam ser compreendidas em sua totalidade. A autora esclarece que não se refere aos artistas com talento natural e com uma vocação que lhes permite, lentamente, o acesso à arte moderna, mas sim a “gênios inesperados”, que conseguiram enxergar perfeitamente em que consistia a mudança radical da arte moderna mas que não eram reconhecidos em sua época e então tornaram-se excêntricos ou marginalizados. Como exemplos, a autora refere-se à “genialidade iluminada” do venezuelano Armando Reverón, até o “simples gênio original” do uruguaio Figari. Traba explica que, ao utilizar-se do desproporcional substantivo “genialidade”, refere-se a um “demônio favorável” que guia, nesses casos, os trabalhos pictóricos, de modo que esses fogem, para a autora, à rotina e ao empenho, ao progresso metódico e à laboriosa invenção do mundo. Ainda quanto a seus entendimentos de “gênio” e “demônio”, aponta suas influências sobre a obra de Rufino Tamayo, na primeira metade do século, de modo que cita como exemplos os trabalhos El hombre con sandía, de 1949, El pirulí, 1949, Hombre cantando, 1950 e La mujer que ríe, 1950, para ilustrar como o artista ultrapassa todas as “reduções neocubistas” para lançar-se à criação de personagens possuídos por “gulas quase cósmicas”, em referência a Octavio Paz.
A autora ainda faz uma ressalva para abarcar a importância e “surpreendente força” do maior conjunto de artistas surrealistas da América Latina, que conta com Leonora Carrington, Remedios Varo, Felipe Orlando, Frida Kahlo, Agustín Lazo, María Izquierdo e Rodríguez Lozano, que descobrem, não a forma da consagração, como Tamayo, mas as fórmulas múltiplas de sacralizações, consagrações, exorcismos, e levam a arte até “antigos altares de ritos duros e mistérios irrenunciáveis”. Para a autora, a pintura mexicana penetra, então, o “ambíguo” e o “possível”, embora não tenha sido celebrada à época, de modo que os artistas se viram em meio à desordem pósmuralista, o desagaste da arte oficial e o desejo de serem convertidos em realistas, socialistas e “revolucionários agraristas”, apesar de sua importância histórica.
Mais à frente, a autora trata de desmistificar a noção de precursores dada aos artistas europeus com relação aos latino-americanos, citando artistas como a cubana Amélia Peláez, que aproveita “a lição plana e decorativa de Matisse” e o supera, Alberto Dávila, que “faz pintura abstrata no Peru antes que ninguém”, ou Di Cavalcanti, que, no Brasil ensaia um “art noveau tropical”, de modo que, para Traba, são todos precursores. Ainda, nesse sentido, exalta a obra do venezuelano Armando Reverón, para a qual esse vai muito além dos “toques tímidos” dos impressionistas e ainda mais além dos “esvanecimentos finais e delirantes” de Turner. Para o artista, a luz já não é um problema a ser resolvido, mas sim, de acordo com a autora, “uma substância queimante e queimada”. Ainda, Reverón, como também o faz Lam em Cuba, converte em “experiência de vida e morte” o que, para os europeus, é “processo e desenvolvimento”. Assim, Traba nota a singularidade com que se destacam Matta (1911) e Lam (1902) em meio ao surrealismo dos trinta, um movimento originalmente europeu, de modo que, diante do empenho desses, a autora separa o gênio de pintores excelentes e também dos que desempenharam um papel valioso no ingresso do continente à modernidade. Como exemplo, mostra como, apesar da importância poética das luas de José Cúneo para a arte uruguaia, quando se alcançava um “expressionismo criollo”, Torres García, em 1934, ao retornar a Montevideo, obriga toda a arte moderna uruguaia a submete-se às dificuldades de seu idealismo que a autora caracteriza como “frio e dissecado” e de “símbolo construtivista sem saída”.
Traba passa então à obra do artista argentino cubista Petorutti, que considera excelente, mas que poderia qualificar como “arte previsível”: nela, a autora destaca a influência dos futuristas e cubistas sintéticos, sendo que, em quadros como os Soles pampeanos (41-42), evidencia-se a presença de elementos tipicamente argentinos, sendo que a autora os caracteriza como os únicos quadros em que o artista deixa de lado a “intenção de conjugar cores e planos em situações sempre neutras”. Desse modo, Traba nota como o percurso pelos gênios e pintores que precedem a geração emergente nos anos cinquenta ainda não possibilita a divisão por áreas abertas e fechadas, que depois vem a se tornar muito aparente. A autora pontua que é normal que Petorutti e Torres García deem, com ponderada reflexão, uma resposta de acordo com suas comunidades, sem que seja preciso cair em nenhuma “extorsão” das semelhanças entre artista e meio. Também é o caso de Peláez e Lam, que se encaixam bem ao contexto cubano. Já o surrealismo de Matta no Chile, o frenesi de Reverón, em seu exílio de Macuto, ou a “portentosa fantasia” de Figari não “jogam o jogo das homologações”.
Ainda, Traba trata de assinalar como, nesse contexto, os artistas não reconhecem a existência americana, de modo que há, no máximo, vislumbres entre uns e outros. Ademais, não apenas não há relação senão total desconhecimento, especialmente quando de trata de norte e sul da América Latina. Tampouco os ligam projetos ou intenções comuns, de modo que não existem, ainda, as ligações que surgirão posteriormente.
Ademais, verifica-se que o modo como cada um deles estabelece sua relação, dependência ou conivência com os modelos europeus é exclusivamente pessoal. A autora nota que, à medida que irrompe o gênio, a relação diminui até quase desaparecer, e, à medida que os artistas atuam como pintores sérios e responsáveis de um ofício ainda novo na América Latina, aumentam os “laços de parentesco”. Com exceção de Torres García, que tem um vínculo explícito com o “Circle et Carré”, de Paris, a relação dos artistas latino-americanos com a arte moderna europeia é intrincada, de modo que os movimentos como o impressionismo, cubismo e expressionismo ajudam-nos a libertar-se das regras impostas pelas academias provinciais, porém suas criações têm caráter individual. Se existe qualquer alusão à arte europeia, essa é mediatizada pela “paixão individual”, o que apaga a possibilidade de um compromisso.
A autora passa, então, a tratar das figuras de maior peso no panorama latino-americano antes dos anos 50, Rivera (1886-1957), Siqueiros (1898-1974) e Orozco (1883-1949), que, para ela, influíram mais sobre a consciência de outros artistas – como Pedro Nel Gómez, na Colômbia, Portinari no Brasil, Berni, na Argentina e Homar, em Porto Rico - que sobre seus resultados plásticos. Esses, por sua vez, representam, para a autora, referindo-se a Darcy Ribeiro, uma “mexicanização reflexa e degradação cultural”. Assim, um elemento seria consequência do outro, de modo que, inevitavelmente, a tentativa de transferência de um processo datado, referente à Revolução Mexicana, para outros contextos, seria incoerente, tendo como resultado a degradação cultural. Desse modo, a autora nota que nenhum dos “mexicanistas reflexos” alcançou a grandeza dos mexicanos, sendo que aqueles se marginalizaram voluntariamente do processo de mudanças que propunha a arte moderna, numa volta à formas realistas remetentes ao final do século XIX, sobreviventes do culto ao que a autora chama de “aparências cênicas”, iniciado no Renascimento. Assim, esses artistas apenas referendaram a atonia e o puritanismo artístico dos períodos iniciais das revoluções, de modo que, para a geração emergente nos anos 50, esse “mexicanismo reflexo” deixou de existir. Na prática, de acordo com a autora, ele desapareceu, deixando como desdobramento o indigenismo, glorificado nas manobras pictóricas do equatoriano Oswaldo Guayasamín. Traba passa a tratar, então, da “prática” indigenista desse artista, a qual chama de “pregação” (prédica), e que considera muito particular, sendo que não existiu, no Equador, uma forte corrente indigenista, diferentemente do Peru, onde os artistas se empenhavam em defender a figura do índio. Já na obra de Guayasamín, como El camino del llanto, são notórias as condições de baixa utilização do material indígena e a ambição pessoal, o que, para Traba, definirá permanentemente suas atitudes. Para a autora, tal obra pretende ser uma reivindicação tripla: do índio, do mestiço e do negro, apoiada sobre a “truculenta temática” do aproveitamento de alguns recursos modernistas devidamente cunhados por Picasso e seus seguidores, como a ampliação desmesurada das mãos e pés, os close-ups de punhos fechados, os rostos angulares, as lágrimas petrificadas, as bocas abertas em grito. Traba ainda acrescenta, numa evidente crítica, a presença do exotismo e do primitivo; do selvagem, em contraposição à civilização. Para a autora, Guayasamín faz com a pintura modernista equatoriana o que os três grandes muralistas fizeram à mexicana: impõe o “terror” e estabelece uma “ditadura estética”, fora da qual parece impossível sobreviver, e que, além disso, utiliza a seu serviço a Casa de la Cultura de Quito. O artista não perde, ainda, a oportunidade de retratar os presidentes “regressivos” da América Latina e até personagens norte-americanos nefastos. Em outra se suas séries, Los condenados de la tierra, volta a aplicar, para Traba, sua “demagogia rude” em uma intenção falida, uma vez que já não pode evitar o novo curso que a arte moderna tomou no Equador por meio da geração emergente dos anos 30, cuja primeira figura visível é Aníbal Villacís (1927).
Traba lamenta que esse episódio tenha desprestigiado o indigenismo, que considera uma corrente muito importante “em países nos quais a influência espiritual e estética de suas grandes populações indígenas pode e deve se manifestar sobre suas expressões artísticas”, corrente cuja dificuldade de canalização, no entanto, trata de atestar. Felizmente, para a autora, a série sobre o poema Apu Inca Atawallpaman, exposta pelo pintor peruano Fernando de Szyszlo (1925), produz uma conjunção positiva, conforme avaliado pelo crítico Emilio Adolfo Westphalen em seu opúsculo sobre Poesía quechua y pintura abstracta, de modo que, para ele, trata-se de uma obra que volta a prestigiar o grande tema indígena. Ainda sobre o artista, Traba considera-o “não apenas um pintor moderno, mas um pintor culto”, cuja “fixação pela instância emocional” e os “significados humanos” é, para a autora, uma réplica consciente à estética da deterioração. E, de acordo com Westphalen, Szyszlo foi um dos poucos artistas que não compartilhou a concepção da arte como simulacro de equilíbrios formais. Nota-se, ainda, a manutenção, por Szyszlo, de uma “cultura formal”, de modo que, para Traba, ele não abandonaria, em nenhum momento, a concepção de arte como “estrutura de sentido”, e de cujas relações internas, puramente formais, “cuida com extrema atenção”.
A autora se aproveita da “resistência” do peruano Szyszlo para voltar ao conceito de áreas abertas e fechadas. Assim, Peru, Colômbia, Equador, Bolívia e Paraguai são os países mais “claramente imersos” nessa área, e que operam, de acordo com Traba, em “condições endogâmicas de vida”. No caso da Colômbia, isso se dá devido à escassa cota imigratória; no Peru, pela “absorção de uma coletividade” entre Peru e os “chinos”; na Bolívia e no Paraguai, pela “irrealidade de uma vida mediterrânea sem saída para o mar”; para Colômbia e Equador, devido à “eficiência e caráter monolítico” de suas castas dirigentes; e, no caso da Bolívia, um constante regresso ao ponto inicial quando “se ha tratado de dar el salto”. Tais condições, marcadas por “desigualdades monstruosas” e “uma miséria sem esperanças”, são agravadas, de acordo com a autora, nos países da América Central, com exceção da Costa Rica, os quais, diferentemente de seus companheiros de áreas fechadas, não repousam sobre fortes tradições, com exceção da Guatemala. Quanto às ilhas do Caribe, Haiti e Cuba, são alinhadas também às áreas fechadas, ou, ainda, às suas margens, devido ao que Traba elenca como o clima, as “condições peculiares de existência” e o “arrasador e intemperante poder do trópico”. Excluem-se as demais ilhas por sua escassa ou nula produção artística, e Porto Rico está unido a esse setor pela “desventura de ser colônia” e o “furioso desejo de libertação” que parte de seus setores independentistas, ao qual se alinham todos os “artistas de valor”.
Em seguida, a autora passa a tratar das áreas abertas, de acordo com a qual são pautadas pelo progressismo, o afã civilizatório, a capacidade de absorver e receber o estrangeiro e a tendência à glorificação das capitais. Assim, Traba nota que, mais que por países, a periferia da área aberta é formada por capitais, estando, em primeiro lugar, Buenos Aires. Em segundo, Caracas, que teria “neutralizado” o fator étnico ligado à “forte cota negra” de sua costa com a admissão de uma enorme corrente imigratória e acreditava, de acordo com a autora, ter saído do subdesenvolvimento devido à riqueza artificial gerada pelo petróleo. Por fim, encontram-se Santiago de Chile e Montevideo, ao fim da lista, pela “visível decadência de suas forças culturais” à época. A autora ainda posiciona São Paulo em “um lugar à parte”, devido à sua conversão em meca da arte do continente, em parte graças às Bienais, e “por responder vigorosamente ao progressismo antes enunciado e às espetaculares fachadas do desenvolvimento superficial latino-americano”.
Finalmente, a autora nota que, estabelecidos estes parâmetros de trabalho, e, ao se estudar as obras importantes da geração emergente dos anos 50, verificam-se comportamentos de grupo e um mapa da arte moderna latino-americana começa a tomar corpo. E, mais uma vez com relação à resistência de Szyszlo no Peru, a autora acredita que esta conduz à outras resistências com ela emparelhadas, como a de Alejandro Obregón na Colômbia, Ricardo Martínez no México, Enrique Tábara no Equador e Abularach na Guatemala.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
TRABA, Marta. "La resistencia". In: Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericanas 1950/1970. Siglo XXI Editores, 1973.
Discussão do texto em sala
Ao discutirmos o texto em questão, alguns elementos chamaram a atenção dos alunos: em primeiro lugar, não se pôde deixar de notar o tom altamente crítico do discurso de Marta Traba, que evidencia, entre outros aspectos, sua oposição ao realismo social praticado pelos muralistas mexicanos. Um discurso enérgico, marcado por um sentimento romântico, perceptível no uso de expressões como “gênio” e “demônio”. A referida oposição, por sua vez, sinaliza uma divisão, dentro da própria esquerda crítica, quanto aos caminhos a serem seguidos pela arte. De qualquer forma, notou-se, mediante a crítica da autora, o embasamento para a construção de um cânone, o qual iria guiar, à época, a escolha de artistas convidados a expor nos museus de Arte Moderna latino-americanos.