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REVISITANDO UM PROJETO POLÍTICO

por Raquel Garbelotti

Revisitando um projeto político:

formas relacionais, projetos discursivos e campo sociológico



Diversos projetos em arte pautados em práticas sociológicas trazem os anos 60 e 70 para discussão na atualidade. São práticas que têm seus antecedentes nos gêneros instalação e performance. Nos trabalhos atuais, entretanto, algumas operações abrem novas sintaxes ao teor sociológico e político dos projetos de arte que os antecederam.

Em 1997 Nicolas Bourriaud apresenta um grupo de ensaios sobre as práticas contemporâneas daquela década, sob o título de Esthètique Relationelle. Termos como pós-produção ou laboratório fazem parte do vocabulário que se encaixa em sua idéia relacional de arte. Esses laboratórios experimentais revisavam as noções instalativas-museológicas e recontextualizavam o cubo-branco. Para Bourriaud a exposição é o lugar privilegiado onde se instauram tais coletividades instantâneas, regidas por diversos princípios: segundo o grau de participação que o artista exige do espectador, a natureza das obras, os modelos de sociabilidade propostos ou representados, uma exposição gerará ‘um domínio de intercâmbios’ particular.

A estética relacional baseia-se na idéia de ‘forma ou formações’, o que Bourriaud descreve como a possibilidade de encontro da arte com sua audiência. Para ele trata-se de uma arte que toma por horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social e que tem a propriedade de agregar sujeitos em ações momentâneas e participativas, por conexões espontâneas geradas no e pelo espaço da obra.

Tais conexões e ações participativas que marcaram também os fundamentos estético-sociológicos de projetos de Hélio Oiticica e Lygia Clark nos anos 70 têm sua continuação e revisões hoje em artistas como Ricardo Basbaum e Jorge Menna Barreto, que operam sintaxes textuais, discursivas e relacionais pelo questionamento à própria possibilidade do campo relacional em arte. É o caso do Projeto Matéria, em que Menna Barreto instala uma sala de aula no ambiente expositivo de uma instituição pública – o Centro Cultural São Paulo. Torna aparente, assim, o questionamento às capacidades que os projetos artísticos têm – ou não – de agregar sujeitos, tanto por questões físicas e estruturais de espaço, quanto por questões conceituais que o projeto propõe, ao expor problemáticas que aparentemente parecem resolvidas em práticas relacionais. Em jogos & exercícios eu-você, Basbaum apresenta dispositivos que tornam visíveis a própria problemática do campo relacional em arte. Separa em duas experiências o projeto: uma para os participantes e outra para a audiência, pensado assim em camadas de construção do trabalho. Cria jogos entre grupos de pessoas no qual se inclui como participador e ao mesmo tempo como provocador. Na proposição cada participante usa uma camiseta t-shirt com cores e pronomes pessoais diferentes estampados, alguns pronomes coincidentes entre si, vários eus e vocês. A própria atuação dos sujeitos e a forma como se ordenam espacialmente tornam aparentes a dinâmica do grupo, mas também de seus indivíduos. Segundo Basbaum podemos considerar as camisas como uniformes – elas dão visibilidade aos processos e experiências conduzidos coletivamente.

Em 2004 Claire Bishop publica um artigo em que acrescenta à forma relacional a necessidade de se pensar os antagonismos ou tensões no interior de práticas artísticas baseadas no campo sociológico. Para ela, formas relacionais correm o risco de realizar uma revisão ou atualização acrítica dos modos iniciados nos anos 60, à medida que instalam espaços de agenciamento ou intercâmbio entre os mesmos e iguais visitantes do espaço especializado da arte. Questiona também a noção de presença física do visitante que, se nos anos 60 era parte constitutiva das obras em sua performação, na atualidade, dependendo da forma como o mesmo é incluído no projeto, poderá tornar-se apenas uma parte instalativa dele. Para tanto, a autora problematiza, por exemplo, a instalação/performance/culinária de Rikrit Tiravanija, Untitled (Free), realizada na 303 Gallery de Nova Iorque, em 1992.

Para formular questões sobre os antagonismos implícitos nas operações de uma arte de teor sociológico, Bishop baseia-se no termo antagonismo, extraído de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, no Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. O antagonismo está condicionado à idéia de contexto. Laclau e Mouffe argumentam que para o contexto existir, para ser constituído e identificado como tal, deve demarcar certos limites: é das exclusões engendradas pela demarcação que ocorre o antagonismo. Segundo Bishop, embora contexto seja a palavra-chave dos projetos de Rikrit Tiravanija e Lian Gillick é precisamente este ato da exclusão, que é desaprovado pela arte relacional.

Para desenvolver seu pensamento, a autora utiliza como exemplo afirmativo de tais antagonismos, os projetos de Santiago Sierra, passíveis de fácil questionamento sob o ponto de vista ético, com relação ao uso que faz do outro em suas ações, como na obra 250 cm Line Tatooed on Six Paid People – Espacio Aglutinador, Havana/ 99. Sierra realiza usualmente ações documentadas em fotografia preto e branco, textos e vídeos. Na ação citada acima, pessoas de Havana se submetem ao procedimento de tatuagem em seus corpos, e são pagas por isso. A tatuagem é realizada nas costas de tais pessoas como linha contígua. Bishop afirma a literalidade do antagonismo, quando elege certos projetos de Sierra, que provocam a suspensão do juízo ético (ethica como ciência da conduta), como dado necessário para seus questionamentos com relação aos agenciamentos atuais.

As relações entre arte e esfera pública são potencializadas como imagem em si mesmas de tais relações em práticas estético-urbanas. Conforme Michel Hirsch, para o novo paradigma ‘arte pública’, trabalhos de arte são chamados a oferecer uma reflexão intelectual sobre o ambiente urbano. As instalações recorrem a três formas: avançada nova mídia (vídeo, internet, cyberespaço); a busca arqueológica ou errante apropriação nômade de uma área específica ou lugar (especialmente em formas de arquivos e deriva urbana); e a inclusão ‘participatória’ de usuários ou habitantes colaboradores.

Esses projetos que vêm se desenvolvendo sobre dialéticas de pertencimento e desarraigamento, comuns em práticas artísticas atuais têm seus antecedentes nas práticas site-specific e podem ser entendidos pelo que Miwon Kwon propôs como uma implantação da arte enquanto problemática político-espacial. Segundo Kwon, o site-specificity pode ser entendido como mediação cultural de amplos processos sociais, econômicos e políticos que organizam a vida urbana e o espaço urbano.

Artistas como Ana Maria Tavares, Andrea Fraser, Cristian Philip Müller e Rikrit Tiravanija vêm realizando projetos que revisam o site-specificity, para modos atuais permeados por um ambiente globalizado e multicultural. Termos cunhados por James Meyer para o site-specificity sob a condição atual, constituem duas noções de site: uma que ele chama de literal site e a outra de functional site. Explica o literal site como in situ, como locação atual, como lugar singular.

O functional site pode ou não incorporar um local físico. Não há privilégio deste, mas de uma operação entre lugares, um mapeamento [ou registro] institucional e textual de suas filiações nos corpos que movem-se entre eles, o do artista acima de tudo. Este[rg1] funcional site apreende o estar-em-trânsito ou aspecto nômade na figura do artista; segundo Meyer, por um palimpsesto do texto, fotografias e gravações em vídeo, locais físicos e coisas: um vetor discursivo da noção de lugar oposto ao modelo fenomenológico de [Richard] Serra.

No caso de Ana Maria Tavares, por exemplo, a sucessão de lugares mapeados pela artista é traduzido em ‘zonas de conforto cultural’. Tavares conforma espaços em que se experiencia a sensação de mobilidade e escolha pelo desapego à idéia de lugar. No espaço indiferenciado o sujeito-observador da obra, distraído, é tornado usuário. Ela utiliza materiais e objetos que nos colocam, quando no espaço da obra, sob a perspectiva auto-reflexiva, pela suspensão do lugar, como na instalação Relax’o’ Visions / Visiones Sedantes, em que uma sucessão de palavras que constituem o trabalho, como credit-card, lexotan e outras do vocabulário contemporâneo, são ironicamente apresentadas como senhas de um espaço comum que nos resta.

A diferença entre as primeiras práticas do site specific e as atuais é principalmente a recusa aos modos de comodificação que as primeiras apresentavam, em que o espaço especializado da arte aparecia como entidade material e não como espaço neutro, e pela reivindicação à presença, ou modo fenomenológico, como forma de acesso do público à obra.

O sentido de presença, a ênfase em ‘estar em determinado local’ de apreensão da obra como audiência ou, no caso do artista, da execução de obra in situ é problematizado nos projetos atuais, nos quais o deslocamento do próprio artista constitui o lugar informacional da obra.

Alguns dos projetos atuais não podem ser vividos como experiência física ou de experimentação mas, conforme Meyer, como um informational site localizado em sua própria entidade social e discursiva. Cita Simon Watney, Cindy Patton, Paula Treichlerem, que em seus projetos ativistas não separam o discurso sobre AIDS de sua representação. Podemos pensar em informational site também nos casos de plataformas que operam ou hospedam práticas, discursos e debates de diversos autores ou agentes, como Exo experimental org. e Projeto Capacete, que promovem as possíveis apresentações/representações atuais, fora dos modos tradicionais expositivos.

Podemos aqui finalmente considerar a função tautológica da arte proposta por Joseph Kosuth no Art after Philosoph, mesmo que as ambigüidades no interior dessas práticas aqui mapeadas devam-se às tensões e impasses existentes em conjugar as formas anteriores - que podem ser revisitadas e atualizadas, e o contexto (social, econômico e político) em que foram geradas - impossível de ser retomado na atualidade. A remissão a Kosuth, fala-nos de uma operação tautológica de formas coincidentes e de suas possíveis atualizações como projetos em curso.


Raquel Garbelotti


BISHOP, Claire. Antagonism and Relational Aesthetics. October 110, Fall 2004, pp. 51-79. © October Magazine, Ltd. and Massachusetts Institute of Tecnology.

BORRIAUD, Nicolas. Esthètic relationelle. Les presses du réel, Paris, 1998. Traducción Jordi Claramonte.

HIRSCH, Michael. Politics of Fiction. PARACHUTE 02. L’idée de communauté_The idea of comunity.

KWON, Miwon. One Place after another: Notes on Site Specificity. October 80, spring 1997. © October Magazine, Ltd. and Massachusetts Institute of Tecnology.

MEYER, James. The Functional Site; or The Transformation of Site Specificity. October 80, spring 1997. © October Magazine, Ltd. and Massachusets Institute of Tecnology.

Sobre as atualizações da performance e sobre o uso do termo performação ver MELIM, Regina. Formas Distendidas de Performance.

www.corpos.org/anpap/2004/textos/clv/regina_melim.pdf

Sobre as proposições jogos & exercícios eu-você e outros projetos de Ricardo Basbaum ver o texto Diferenças entre nós e eles in

www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ricardo.htm