Notas para uma arqueologia das exposições com referencia à documenta
Editorial | Expediente | Sumário | Recomendações editoriais | Dicas para redação dos relatos criticos | Edição Atual | Edições Anteriores | Sobre
Periódico Permanente, v. 9, n. 8, 2020
Publicado originalmente em https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/proa/article/view/2351
Legenda: Esculturas de Julio González apresentadas ao lado de fotografia que registra a apresentação da obra na segunda documenta de Kassel em 1959. Fotografia Vinicius Spricigo
1. e. g. Kassel
Desde 1997, quando a curadora francesa Catherine David dirigiu a documenta 10, os projetos curatoriais dessa mostra têm evocado, cada um a sua maneira, o significado do lugar da exposição na cidade de Kassel. Em sua contribuição para a conferência d documenta, Catherine David assinalou sua intenção inicial de realocar a exposição, ou seja, realizar alguns eventos em Kassel e outros ao redor do mundo. Contudo, após sofrer uma derrota e ter sua proposta recusada, a curadora decidiu abordar, a partir da própria localidade de Kassel, a crise que já se espalhava através da Europa após a unificação da Alemanha. Nos seus dizeres:
O contexto da abertura da documenta X em 1997 [...] era muito diferente daquele das documentas anteriores, pois Kassel não estava mais na borda da fronteira entre o Ocidente e o Oriente, mas no coração de uma Alemanha unificada. Estávamos nos aproximando do final do século, 1997, a última documenta do século XX, onde as condições sob as quais a documenta e todas as grandes manifestações ditas internacionais operavam, ou seja, um “ping-pong” entre as chamadas grandes capitais internacionais e um pequeno número de convidados daquilo que meu amigo Wilfredo Lam chamou de ‘a borda da mesa’, haviam mudado, e portanto a questão do dia era, o que significava realizar uma exposição que pretendia ser um evento internacional em Kassel, no centro da Alemanha e da Europa unificada? O que significava a ‘internacionalidade’ na Europa no final dos anos 1990? (DAVID, 2009)
Internacionalismo, essa questão premente, segundo Catherine David, demandava uma “retroperspectiva”: “a última documenta deste século dificilmente pode escapar a tarefa de elaborar um olhar histórico e crítico sobre sua própria história, sobre o passado recente do pós-guerra, e sobretudo a partir dessa era, agora desaparecida, que continua em efervescência dentro da arte e da cultura contemporânea”, afirmou a curadora em 1997. (DAVID, 1997)
Esse questionamento acerca do significado da mostra, cujo nome proveniente do termo latim documentum (derivação do verbo docere, ensinar) tornou-se sinônimo da maior exposição internacional de arte contemporânea, estava evidenciado na identidade visual da exposição que trazia a letra d em caixa baixa, marca registrada da mostra, sobreposta pelo algarismo romano X. Colocava-se em questão também o mito criado em torno da documenta, quando a exposição tornou-se um local de discussão, ou plataforma como se afirma hoje, e as certezas acerca da arte moderna foram abandonadas. Após a documenta 5, organizada pelo curador suíço Harald Szeemann, criou-se uma expectativa de que cada próxima documenta iria revolucionar o conceito de arte e cada curador tomaria decisões controversas e opostas àquelas tomadas pelos seus antecessores. Iniciou então uma fase em que as narrativas sobre o modernismo foram substituídas pela discurso curatorial sobre um determinado tema e pela polêmica em torno da seleção das obras. Um modelo de exposição coletiva considerado paradigmáticos nos anos 1990.
Afinal o direcionamento do projeto curatorial nos levava a pensar por qual razão esse burgo na fronteira de uma Alemanha dividida havia se tornado um dos principais fóruns de discussão da arte contemporânea. As razões poderiam estar em seu passado, na posição que o principado ocupou atraindo expedições de toda a Europa ou nos espaços culturais que outrora reuniram uma prestigiada coleção de arte com pinturas de Albrecht Altdorfer, Lucas Cranach, Dürer, Rembrandt, Rubens e Frans Hals. Senão na reconstrução tardia da cidade cujos edifícios como o Fridericianum[1] ainda permaneciam em ruínas na ocasião do Bundesgartenschau (Festival Federal de Jardinagem) em 1955, evento ao redor do qual formaram-se as condições necessárias para o surgimento da mostra.
Desse modo, a estratégia adotada pela curadora foi criar um itinerário no qual os visitantes pudessem abordar criticamente a reconstrução da cidade no Pós-guerra. Esse “parcours” que iniciava na estação de trem remodelada como centro cultural e shoping center, seguia descendo a Treppenstraße, misto de local de passeio e compras, até o rio Fulda, cruzando um eixo central formado pelos principais espaços expositivos Fridericianum, Orangerie, Ottoneum, documenta-Halle e Neue Galerie.
Este parcours é também um itinerário real e simbólico, através de Kassel em relação à seu possível ‘alhures’, às realidades culturais e urbanas de um ‘Tout-Monde’ (Edouard Glissant), que a documenta não pode pretender convocar ou mesmo ‘representar’ em Kassel . Dito isto, o espaço urbano da cidade em geral - suas circunstâncias, seus fracassos, seus projetos arquitetônicos, econômicos, políticos e humanos, seus conflitos, e as novas atitudes e práticas culturais a que dá origem e que se espalham pelo mundo - agora aparece claramente como o lugar privilegiado da experiência contemporânea. Nesse aspecto, Kassel, hoje, em sua própria escala, em sua singularidade, bem como em seus arquétipos, pode ser considerada como ‘exemplar’. (DAVID, 2009)
O percurso criado por David reivindicava portanto a presença do corpo na esfera pública, na medida em que assim como o seu precedente do período Barroco o modelo urbano implantado em Kassel no Pós-guerra, baseado em um projeto elaborado ainda durante o regime Nacional Socialista, excluía, segundo a curadora, os pedestres do espaço público. Entrava em cena o problema histórico do papel dos museus públicos na Europa Central, uma vez que desde os seus primórdios grande parte da população local não tinha acesso ao assim proclamado primeiro museu público europeu. Outra estratégia usada para ampliar essa esfera foi a utilização dos meios de comunicação (internet, publicações e debates) para atingir um público mais amplo, muito além do espaço expositivo e dos limites da cidade de Kassel.
Projetos de arquitetura e urbanismo foram destaques na documenta 10, ao lado de filmes que traziam à tona novas práticas documentárias. Muito embora apresentasse uma retrospectiva da principais vanguardas artísticas do Pós-guerra, muitas delas apreciadas pelo público europeu nas edições anteriores da mostra, a documenta curada por Catherine David buscava ampliar a discussão outrora focada no conceito Ocidental de arte para um espectro mais amplo de questões sobre a imagem contemporânea. Ademais, projetada como evento cultural e plataforma discursiva, a exposição questionava pelo viés da sua globalização, bienalização e espetacularização os limites ideológicos do “cubo branco” como modelo expositivo e de maneira mais ampla um conceito universalista de apresentação de “práticas estéticas”.
Essa abordagem antropológica seria radicalizada mais tarde no projeto curatorial da documenta 11, curada por Okwui Enwezor, juntamente com Carlos Basualdo, Ute Meta Bauer, Susanne Ghez, Sarat Maharaj, Mark Nash e Octavio Zaya, no qual as duas tendências contraditórias do processo de globalização cultural seriam abordadas pelo viés dos discursos anglofônicos sobre o pós-colonialismo provenientes dos estudos culturais. A documenta 11 consolidaria ainda uma perspectiva sincrônica no âmbito das exposições internacionais de arte contemporânea, na qual a história da arte e o conceito de vanguarda artística seriam suplantados por temas de natureza predominantemente política. Dito em outras palavras, a abordagem pós-moderna de Catherine David, ainda fundamentada teoricamente no pós-estruturalismo francês, ganharia afinal uma dimensão global no debate post-colonial de Okwui Enwezor:
Para entender o que constitui a vanguarda hoje, deve-se começar não no campo da arte contemporânea, mas no campo da cultura e da política, bem como no campo econômico que rege todas as relações que estão sob a hegemonia avassaladora do capital. Se as vanguardas do passado anteciparam uma ordem em mudança, a de hoje é tornar a impermanência, e o que o filósofo italiano Giorgio Agamben chama aterritorialidade, a incerteza, a instabilidade e a insegurança a principal ordem de hoje. Com esta ordem, todas as noções de autonomia que a arte radical tinha anteriormente reivindicado para si são revogadas. (ENWEZOR, 2002: p.45)
Ao enfatizar a impermanência e aterritorialidade das práticas estéticas contemporâneas, a documenta 11 seria uma das primeiras plataformas a operar em escala global através de cinco plataformas, cujos eventos realizados em Viena e Berlim, Nova Delhi, St. Lúcia e Lagos descentralizavam os debates que haviam tornado Kassel em fórum privilegiado de discussão e apresentação da arte contemporânea.
Ao localizar as plataformas em quatro continentes, através de inúmeras parcerias, cooperações, e co-produções, e deliberadamente estender os temas à sociopolítica, a documenta não só expandiu seu território, mas também o abandonou [...] a desterritorialização temporária em Viena e Berlim, Nova Deli, St. Lucia, e Lagos, e em outras áreas temáticas, não deve ser entendida, pelo menos não como uma reação ao apelo, que já não pode ser mantido, que a documenta deve ocorrer em um determinado momento, em um formato pré-determinado, para um público fixo - ou seja, o mundo da arte Ocidental - como tem sido por mais de cinqüenta anos. (BAUER, 2002: p.103)
Nessa perspectiva, Ute Meta Bauer apontaria a função corretiva da documenta 11 de reformular uma história da arte linear e predominantemente focada no Ocidente. Resgata assim a curadora o papel desempenhado no Pós-guerra pela primeira documenta, realizada em 1955 com o título "documenta: Kunst des XX. Jahrhunderts" (documenta: Arte do Século XX), pois a exposição recuperava a tradição de vanguarda na Alemanha que havia sido exposta ao público pela última vez na exposição "Entartete Kunst" (Arte Degenerada) organizada pelos Nacionais Socialistas, em 1937.
2. origens
Um equívoco comum e justificável é imaginar que a documenta tenha surgido como uma exposição periódica, afinal, a exposição realizada regularmente desde 1972 a cada cinco anos é apontada como “modelo” das principais “bienais” de arte contemporânea que se proliferaram ao redor do mundo a partir dos anos 1990.[2] Entretanto, a primeira documenta foi organizada como um evento local e único. Arnold Bode, originário de Kassel, pretendia criar um evento cultural no coração de uma Alemanha destruída pela guerra, juntamente com seu colega Werner Haftmann, um crítico de arte proeminente naquela época e autor de um importante livro sobre a história da pintura no Século XX, publicado um ano antes da primeira edição da documenta. Ademais, a origem de uma das mais antigas exposições internacionais de arte contemporânea está vinculada à tentativa de superação dos traumas deixados pelos conflitos e de reconstrução de uma esfera pública no contexto alemão do Pós-guerra, quando a cidade encontrava-se na fronteira de uma Alemanha separada, símbolo da divisão do mundo em Oriente e Ocidente durante a Guerra Fria. A curadora alemã Ute Meta Bauer, ao refletir sobre a relação entre a documenta e a cidade de Kassel, ressalta assim o objetivo da exposição de apresentar um panorama das principais vanguardas artísticas europeias da primeira metade do século XX e “restabelecer contato com as atividades do cenário da arte internacional e ver a si própria como um modo de reparar a arte que o Nacional Socialismo havia condenado”. (BAUER, 2002: p.103) O debate da época, portanto, estava centrado em como restaurar o modernismo em meio as ruínas deixadas pela guerra, uma vez que o regime nazista havia praticamente destruído essa memória cultural, sem hesitar em vender ao exterior importantes obras de arte modernas retiradas dos museus alemães. Desse modo, em 1955, a documenta ajudava a preencher uma lacuna existente nos museus de arte locais, reunindo um panorama da arte moderna européia com uma preferência predominantemente germânica e abstracionista. O abstracionismo foi promovido internacionalmente no período, como reação à figuração corrompida pelos propósitos da propaganda nazista, mas, no entanto, o apelo da exposição recaía em uma visão inocente e puritana da arte, tomando a arte abstrata como uma arte pura, não violada pelos nazistas. Assim afirmaria em seu famoso livro, O fim da história da arte, Hans Belting:
Quem observa hoje as fotos das salas de exposição da primeira documenta fica tão impressionado quanto espantado pela aura de uma encenação sacra, em que a modernidade clássica experimentava sua ressurreição nessa grande retrospectiva de coração puro. Já no edifício do museu tem-se a impressão de que começa a brotar vida nova das ruínas. Na escada de entrada saudava os visitantes Das Grosse Kniende [Homem de Joelhos] de Wilhelm Lehmbruck, como se tivesse retornado do exílio com as obras-primas recuperadas. A arte moderna, que tão freqüentemente fizera soar o sinal de ataque à cultura estabelecida, surgia em retrospectiva como a verdadeira cultura que fora oprimida na era submersa da barbárie, mas que vivia agora sua merecida reabilitação. O culto dessa modernidade era uma contraposição única à proscrição que já experimentara. O novo idealismo só pode ser compreendido se avaliado pelo desejo de se purificar da culpa e das más lembranças. Ele possuía, porém, um componente histórico crítico ao substituir a história ocorrida por uma imagem da história expurgada segundo seu desejo e recordação. (BELTING, 2006, p.53)
As origens da documenta também foram reexaminadas recentemente por Roger Bürgel, diretor artístico da documenta 12, com o objetivo de reconstituir o aspecto performativo e ritualístico da primeira exposição. Segundo Bürgel, o responsável pelos displays da primeira documenta, Arnold Bode, recorreu a uma forma de Inszenierung (mise-en-scène) para a apresentação da arte moderna, nas ruínas do museu Fridericianum. (BÜRGEL, 2007: p.28-31) De fato, as imagens de arquivo impressionam pelo “brutalismo” imposto pelas condições dadas ao designer e professor da Werkakademie em Kassel, quem optou por pintar as paredes inacabadas em branco, preto ou tons de cinza, ou por interromper a penetração e incidência direta de luz sobre as obras com cortinas plásticas. Entretanto, o que se viu no ano de 2007 foi uma resolução positiva dos problemas levantados pelas exposições anteriores. No que dizia respeito às tendências contraditórias do processo de globalização cultural, o projeto curatorial recorria ao conceito vago de “migração da forma” para justificar a apresentação em Kassel de trabalhos produzidos ao redor do mundo em um viés novamente universalista de apreciação estética que desconsiderava as diferenças e especificidades locais. Ademais, a encenação à qual recorreu Bürgel no projeto expográfico da documenta 12 evidenciava ainda mais os aspectos ideológicos dos displays utilizados por Bode na primeira documenta, que em 1959 abriram caminho para a apresentação da abstração como linguagem universal no Pós-guerra, como veremos a seguir.
3. internacionalismo
As cinco primeiras edições da documenta de Kassel já foram amplamente analisadas no âmbito do que hoje chamaríamos de “história das exposições”, sendo que a documenta 5 dirigida por Harald Szeemman desperta especial interesse daqueles interessados no chamado curatorial turn das exposições de arte contemporânea. No entanto, historiadores como Harald Kimpel e Walter Grasskamp dedicam especial atenção ao surgimento da mostra no Pós-guerra. Este último, revisitou as quatro primeiras edições da documenta pelo viés da internacionalidade da mostra. Segundo o historiador, a primeira edição da mostra não poderia ser considerada internacional, nem tampouco “européia”. Apesar de atualmente gozar da reputação de ser uma mostra de relevância internacional, senão global, a primeira documenta foi um evento alemão. Portanto em sua contribuição para a conferência d documenta as questões de internacionalidade, transnacionalidade e eurocentrismo foram o tópico principal. (GRASSKAMP, 2009)
Algumas estatísticas apresentadas por Grasskamp chamam a nossa atenção. No catálogo da exposição documenta: arte do século XX há uma lista de 148 artistas, dos quais 58 eram alemães, 42 franceses e 28 italianos. Encontramos ainda 2 holandeses, 6 concretistas suíços entre os quais Max Bill, 8 britânicos e somente 3 norteamericanos. Embora o título da mostra, derivado do livro Malerei im 20. Jahrhundert (Pintura no Século XX), de Werner Haftmann, fosse abrangente, somente 6 nações foram designadas para alocar artistas de toda a Europa. Nas páginas do catálogo podemos ler ainda a observação de que devido à emigração a filiação nacional tornou-se incerta e os artistas foram classificados de acordo impacto em sua terra natal ou países de residência.
Assinala Walter Grasskamp que artistas da Boêmia como Františe Kupka, Hungria como Victor Vasarely, Portugal como Maria Helena Vieira da Silva, Russia como Chagall e Pevsner ou Espanha como Gris, Miró e Picasso, foram todos registrados como franceses, e assim por diante. Dessa forma, França, Alemanha e Itália foram superestimadas no cenário europeu formando um triângulo entre Paris, Berlim e Roma como centros da arte moderna. Juntos, Alemanha e Itália, antes aliados durante a segunda Guerra, tinham o privilégio de 2/3 da representação e também de espaços dedicados aos artistas emergentes, acentuando assim, segundo Grasskamp, o perfil provinciano da exposição, em contraste com a suposta internacionalidade da arte moderna. Ademais, a Itália havia sido um refúgio para artistas alemães que optaram por uma “migração interna” para o país vizinho, como também foi o caso de Werner Haftmann quem passou os anos do Terceiro Reich em Florença, após a arte moderna ser considerada como “degenerada” em solo alemão.
Para além da associação da primeira documenta como oposição à exposição “Arte Degenerada“ realizada em Munique em 1937, restaria compreender como paralelamente à reparação e restauração de uma memória cultural, a exposição estava baseada em uma leitura eurocêntrica da criação artística que atualmente se depara com uma revisão crítica de seus propósitos em um mundo globalizado. Assim, a segunda edição da documenta de Kassel, realizada em 1959, apresentou com grande destaque a arte norteamericana, entendendo que a “América” havia dado continuidade à arte moderna europeia.
Entretanto, Walter Grasskamp questiona o fato da segunda documenta promover a abstração como linguagem universal, mas, no entanto, não apresentar nenhum trabalho realizado fora do eixo Euroamerica. Na palestra The museum and other success stories in cultural globalisation, proferida na Conferência Intersections in a Global Scene, que aconteceu em 2005, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, ele problematiza o internacionalismo da arte moderna pelo viés de uma linguagem universal. Segundo o historiador, um processo de recontextualização da arte foi observado na primeira edição da documenta, em 1955, quando os corredores de entrada, planejados por Arnold Bode, mostravam fotos de esculturas exóticas e arcaicas com o objetivo de justificar a ideia da arte moderna.
Ao fazer isso, Arnold Bode, quem planejou essa introdução visual, com certeza não queria criar nenhuma relação com o colonialismo dos gabinetes de curiosidades, tampouco queria ele ecoar tardiamente o movimento das vanguardas em direção ao exótico. Em retrospecto isso parece que ele tentava reforçar a arte moderna, tendo sido banida antes pelo Nacional Socialismo, por meio de outras culturas e tradições, mesmo as mais remotas no tempo e no espaço. Essa validação intercultural estava baseada na teoria então em moda da universalidade da arte […]. A abordagem tentava provar a continuidade da forma criativa do arcaico ao moderno, dos primeiros ídolos de pedra até a abstração de Brancusi, da Idade da Pedra até Picasso. Essa abordagem incluía uma apelo global por reconhecimento ao lado do seu apelo por continuidade histórica: a assim chamada arte primitiva e arcaica não era mais vista como mera fonte de inspiração, mas estava incluída na atual noção de arte universal, que com certeza é uma invenção europeia. A teoria da universalidade da arte foi o clímax da globalização da noção europeia de arte. (GRASSKAMP, 2005)
Assim, a conferência de Walter Grasskamp assinalou as desigualdades de representação no sistema artístico internacional, que marginalizaram as produções artísticas dos países ditos periféricos, pautadas em um olhar eurocêntrico sobre as outras culturas. Tal distorção não se resume somente à dimensão geopolítica, uma vez que entre as omissões da primeira documenta, salvo raras exceções, estavam também os construtivistas russos, os dadaístas de Berlim, artistas da Nova Objetividade Alemã, Surrealistas e membros dos grupos Art Brut e Cobra, ou seja tudo aquilo que escapava ao modelo historiográfico definido Werner Haftmann.
4. ruínas
Esse revisionismo marcou também o projeto curatorial da documenta 13. Aliás, a primeira iniciativa da curadora Carolyn Christov-Bakargiev na preparação da exposição foi organizar uma conferência entitulada d documenta, a conference towards documenta 13, cujos convidados para o evento foram os diretores artísticos de todas as edições precedentes da mostra: Manfred Schneckenburger, Rudi Fuchs, Jan Hoet, Catherine David, Okwui Enwezor, Roger M. Bürgel, sendo que Heiner Georgsdorf apresentou uma contribuição como curador da Fundação Arnold Bode, Walter Grasskamp acima citado revisitou a história das primeiras edições da mostra e Jean-Christophe Ammann falou sobre seu trabalho ao lado de Harald Szeemann na organização da documenta 5. Para além de seu aspecto consultivo, o evento evidenciava também a abordagem “arqueológica” que seria utilizada pela diretora artística da décima terceira edição da documenta de Kassel.
Não à toa, Christov-Bakargiev recuperou o trabalho do surrealista Julio González, apresentado nas três primeiras edições documenta (1955, 1959, 1964). Ao lado das fotografias de Lee Miller, outro nome ligado ao movimento surrealista, objetos do Museu Nacional do Líbano destruídos durante a Guerra Civil que assolou o país entre 1975-90, e imagens das estátuas de Buda destruídas pelo regime Talibã, o arquivo da própria documenta formou o eixo central do projeto curatorial da documenta 13. Desse modo, a relação entre as vanguardas históricas, em especial o Surrealismo, com o “caráter destrutivo” (Walter Benjamin) da experiência moderna ocupou o espaço central na rotunda do Museum Fridericianum, denominado pela curadora como o “cérebro”.
Esse cérebro servia ao visitante como uma introdução ao discurso curatorial, que talvez de maneira sem precedentes parecia totalizar a exposição, transformando-a em Gesamtkunstwerk. De fato, muitos dos trabalhos apresentados fazem pouco sentido ao público se desvinculados do conjunto ou sistema de relações criados pela curadora. Sobressai assim a importância do papel do curador talvez no sentido inaugurado por Harald Szeemann na documenta 5 e consolidado por Catherine David. Esse paradigma curatorial é assim descrito por Carolyn Christov-Bakargiev:
Combinando teatro, história do mostrar e fenomenologia, teoria da percepção e psicologia, e pensamento do final dos anos 1960, as exposições coletivas de arte contemporânea forjaram através da aliança do curador com os artistas que “mostram o mostrar” e através da experiência de ver arte, e o potencial radical e social aí existente, como o material de seus trabalhos. (CHRISTOV-BAKARGIEV, 2011: p.6)
Em suma, o mostrar sobrepõe-se ao objeto em si. Seguindo essa lógica de exponibilidade inflacionada das imagens contemporâneas, a apresentação do Mappa (1971) de Alighiero Boetti acontece como uma dessas muitas exposições, como resultante de uma certa “aliança” entre curador e artista. Representativa da Arte Povera, com a qual Christov-Bakargiev possui familiaridade, a obra de Boetti traça uma “linha de pensamento” ligando Kassel com o chamado “Oriente”, por meio de vasta pesquisa documental realizada em colaboração com o artista Mario Garcia Torres. O foco central está na localização do One Hotel, na cidade de Kabul, onde o artista passou vários meses entre 1971 e 1977. Por fim, a troca de correspondências entre Alighiero Boetti e Harald Szeemann durante a organização da documenta 5, reforçam a ideia de que a curadora endereça a história da documenta diacronicamente.
Desse modo, o pensamento curatorial se assume plenamente. A documenta 13 parece elevar essa característica de supremacia do valor de exposição (Ausstellungswert)[3] à máxima potência. Se a edição precedente parecia enunciar-se como a documenta das documentas (LAGNADO, 2008), esta de fato realiza o feito. Desse modo, ao incorporar o pensamento conceitual e transformar o conceito de historicidade, a exposição é agora entendida como medium, no qual o procedimento usado pelo curador é análogo ao processo de produção de imagens mediáticas por meio do uso e manipulação de arquivos históricos e da operação da “montagem”, aqui entendida como “desconstrução” de uma linearidade histórica. Isso permitiria, como já anunciado pelas edições anteriores da mostra, a descolonização de um imaginário fundamentalmente eurocêntrico, o que aconteceria a rigor através das várias estratégias de desconstrução do espaço museal (desde a sua encenação até a quebra dos limites que separam o museu de outros espaços públicos) ou pelo movimento sincrônico de ampliação em escala global do seu campo de atuação, bem como de indefinição de seus limites disciplinares para além do âmbito da história da arte. Decorre disso entretanto o achatamento de todas as dimensões na superficialidade da imagem mediática consumida no âmbito das mega exposições internacionais.
Em um dos notebooks publicados pela documenta, ao total foram 100 antes da abertura da mostra, ressaltando assim o caráter discursivo dessa exposição, escreve a curadora:
dOCUMENTA (13) é para mim mais do que, e não exatamente, uma exposição - ela é um estado de espírito. Seu DNA é diferente de outras exposições internacionais de arte contemporânea primordialmente porque ela não emergiu das feiras comerciais do século dezenove e das feiras mundiais do período colonial - trazendo para os centros europeus as maravilhas do mundo. Ela surgiu como trauma conseqüente da Segunda Guerra Mundial, em um espaço onde colapso e recuperação foram articulados. Ela surgiu na junção onde a arte era vista como de suprema importância como uma linguagem internacional comum e um mundo de ideais e esperanças compartilhadas (que implica que a arte tivesse de fato um papel central a desempenhar no processo social de reconstrução da sociedade civil, práticas sociais e recuperação), e onde, durante o assim chamado período modernista, que a arte ainda era vista também como a mais inútil de todas as atividades possíveis (com o legado da noção de autonomia da arte). Na junção dessas duas esferas, onde o papel social da arte e a autonomia do campo da arte se encontram, repousa “les enjeux de l’après-guerre” e a política do Ocidente na metade do século vinte, para melhor ou para pior, da qual a documenta também era uma expressão. (CHRISTOV-BAKARGIEV, 2011: p.6)
No pensamento curatorial de Carolyn Christov-Bakargiev, o papel cultural, político e econômico desempenhado pela cidade de Kassel em diferentes períodos é evocado, apontando para a vinculação entre o abstracionismo do Pós-guerra e a restauração de uma economia liberal. “Hoje, por uma lado, a documenta proporciona uma plataforma na qual a extrema e freqüentemente dolorosa conseqüência de uma economia completamente liberal pode ser acessada através da arte e da cultura” (CHRISTOV-BAKARGIEV, 2011: p.6). Essa tendência seria evidenciada ainda mais pelo número de trabalhos comissionados especialmente para a mostra e nos faz refletir até que ponto a opulência econômica experimentada no chamado Ocidente até 2008 ainda estavam presentes na exposição, bem como a fragilidade e transitoriedade de todos esse sistema que parece estar novamente desmanchando no ar, para relembrar as famosas palavras de Karl Max sobre as recorrentes crises do capitalismo. Engana-se quem imagina ser essa crise algo passageiro, nos alerta Carolyn Christov-Bakargiev.
Por fim, a presença de Walter Benjamin seria novamente evocada pela exposição, agora de maneira inequívoca, para quem se lembra da pintura de Paul Klee modestamente apresentada nas escadarias do Fridericianum durante a documenta 12. “Da destruição da arte - ou conflito e arte, ou trauma e a arte de curar” foi o título de outro bloco de notas, redigido pela curadora. Não poderia ficar de lado portanto a memória traumática dos acontecimentos ligados ao Holocausto, especialmente em trabalhos como “Dealing with the Era of National Socialism” de Gunnar Richter, quem convida pessoalmente o público a discutir sobre a história do monastério beneditino de Breitenau, próximo a Kassel, convertido em campo de concentração (1933-1934) e “campo de educação laboral” (1940-1945). A pesquisa iniciada por Richter nessa região em 1981 e apresentada como parte da Universidade Livre Internacional de Joseph Beuys na documenta 7, no ano seguinte, versa sobre a memória desses fatos, mas antes de mais nada sobre o esquecimento, ou aquilo que não pode ser lembrado ou comunicado, como bem assinalado por BENJAMIN (1994: p.198). Filósofo ao qual não podemos deixar de recorrer para pensar a relação da origem das megaexposições de arte no final do século XVIII (em um contexto de educação para formação de uma identidade nacional concomitante ao surgimento das feiras mundiais). Afinal, talvez seja escavando profundamente nessas ruínas da memória e escombros culturais que encontraremos algo além da superficialidade da imagem.
Referencias bibliográficas
BAUER, Ute Meta. documenta 11 as a zone of activity. In: FIETZEK, Gerti (Org). Documenta 11_Platform 5: Exhibition. Ostfildern: Hatje Cantz, 2002.
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BÜRGEL, Rogel. The Origins. In: documenta 12 Magazines No 1-3 Reader. Cologne: Taschen, 2007.
CHRISTOV-BAKARGIEV, Carolyn. Letter to a Friend: dOCUMENTA (13): 100 Notizen - 100 Gedanken No. 003. Ostfildern: Hatje Cantz, 2011.
DAVID, Catherine. The specific position of documenta within visual cultural events with reference to documenta X, 1997, In: d documenta - a conference towards documenta 13 at Castello di Rivoli, 18-19 Set 2009. Disponível em: http://d13.documenta.de/
DAVID, Catherine. Introduction. In: JOLY, Françoise (Org). Short Guide / documenta X. Ostfildern: Hatje Cantz, 1997. Disponível em: http://universes-in-universe.org
ENWEZOR, Okwui. The Black Box. In: FIETZEK, Gerti (Org). Documenta 11_Platform 5: Exhibition. Ostfildern: Hatje Cantz, 2002.
GRASSKAMP, Walter. The birth of a periodic exhibition with reference to documenta, 1955; II. documenta, 1959; documenta III, 1964; 4. documenta, 1968, In: d documenta - a conference towards documenta 13 at Castello di Rivoli, 18-19 Set 2009. Disponível em: http://d13.documenta.de/
_____. The museum and other success stories in cultural globalization. In: CIMAM ANNUAL CONFERENCE, Pinacoteca do Estado de São Paulo, novembro de 2005. Disponível em: http://www.forumpermanente.org
LAGNADO, Lisette. documenta 12, Kassel. In: Afterall Online, v. 19, 2008.
[1] Iniciado em 1769, construído monumentalmente pelo arquiteto Simon Louis du Ry e inaugurado em 1779, o Fridericianum foi proclamado como o primeiro Museu acessível ao público da Europa central e representava os ideais culturais do Iluminismo, reunindo uma coleção de artes, esculturas e relevos clássicos, bem como um gabinete de curiosidades e uma biblioteca no principado alemão Hesse-Cassel sob a regência de Friedrich II.
[2] Essa análise diacrônica da documenta está fundamenta em uma entrevista realizada com o Prof. Hans Belting durante a realização do Workshop “A virada global da arte contemporânea nas coleções brasileiras”, realizado no Goethe Institut São Paulo, em agosto de 2008.
[3] Walter Benjamin escreveu no célebre texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” sobre a passagem de um sistema de produção de imagens que ainda reivindicavam um estatuto de obra de arte, para uma época de supremacia do valor de exposição (Ausstellungswert), o que hoje constatamos na exponibilidade inflacionada das imagens mediáticas. Portanto, já era possível identificar no início do século XX imagens nas quais o valor artístico desempenhava um papel de transição entre o valor de culto e o valor de exposição, este último muito mais imperativo nas imagens reprodutíveis tecnicamente e nas imagens mediáticas.