Uma utopia de grande atualidade: algumas características notáveis da vanguarda na América Latina
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Mari Carmen Ramírez (2004)
Tradução: Eduardo Rebelo
Fonte: Livro-catálogo. RAMÍREZ, Mari Carmen; OLEA, Héctor et al. Inverted Utopias. Yale: Yale University Press, 2004.
Reconhecimentos
A exposição e o catálogo de Inverted Utopias: Avant-Garde Art in Latin America,[1] curada por Mari Carmen Ramírez e Héctor Olea, recebeu os seguintes reconhecimentos chaves nos Estados Unidos:
• Semanas depois da apertura da mostra, “A New Map of Latin America’s Avant-Garde”, artigo de Lyle Rexer no The New York Times (domingo, domingo, 8 de agosto de 2004, Art, p. 27) parabenizou a apresentação de várias abordagens inovadoras nesta tendência (da arte geométrica ao cinetismo, dos precursores radicais ao conceptualismo político) que aniquilaram de uma vez por todas os lugares comuns a este respeito;
• Por sua vez, a Assotiation Internationale de Critiques d’Art-American seção (AICA-USA) concedeu o Prêmio (1º Lugar) 2003-2004 como “Melhor Mostra Temática em Nível Nacional” à exposição organizada pelo Centro Internacional de Artes das Américas (ICAA-MFAH);
• Com o objetivo de comemorar seu Centenário, a AAM100 (American Association of Museums, Washington, DC, 20 de abril de 2007) outorgou outro 1º Lugar da Scholarly Journals ao volume III da ICAA, intitulado Versions and Inversions: Perspectives on Avant-Garde Art in Latin America,[2] que abrangia o Simpósio Internacional da mostra. Além dos principais críticos do continente, este simpósio incluiu figuras do meio artístico norte-americano: Lucy R. Lippard, Terry Smith e Robert Storr;
• Por fim, assim como o período terminou, o artigo “Depending on the Culture of Strangers”, escrito por Holland Cotter no The New York Times (domingo, 3 de janeiro de 2010, Art, p. 23) considerou a exposição de Houston uma das duas mostras mais importantes nos Estados Unidos durante a primeira década do século XXI. O ponto-chave assinalado foi que “esta não derivava de um Modernismo europeu, mas fornecia à Europa novas informações”.
A tarefa de trazer à tona a contribuição latino-americana ao fenômeno das vanguardas do século XX adquire particular urgência à medida que começamos um novo século. Nesta interseção de eras, indelevelmente marcadas pela tirania do mercado e pelo darwinismo positivista da globalização, vivemos uma realidade de expansão acelerada caracterizada pela dissolução de fronteiras geográficas e a consequente homogeneização – tanto econômica quanto cultural – do planeta. Nossa época, como Michel Foucault observou, é a “época da simultaneidade, [...] da justaposição, [...] do próximo e do distante, do lado a lado, do disperso”.[3] Influenciada, talvez, pelas utopias virtuais da tecnologia, a dinâmica da globalização nos impôs o conceito de “rede” ou “ramais” como esquema privilegiado de operações materiais e simbólicas em todos os níveis da atividade humana. Um sinal desta condição ubíqua é a profunda dissolução de categorias e modelos por meio dos quais, até agora, a realidade de nosso passado e a virtualidade de nosso presente têm sido abrangidas. A infinita superposição de espaços facilitada pela rede expõe, nas palavras de Foucault, como “nossa experiência de mundo é menos a de uma vida longa que se desenvolve com o tempo do que a de uma rede que conecta pontos e se intersecta com a sua própria meada”.[4] Consequentemente, interpretações baseadas em paradigmas deterministas ou temporais perderam sua relevância no espaço fractal fomentado pelo novo milênio.
Vinda de uma realidade imediatista (cada vez menos mediada), a presente condição nos leva a postular a necessidade de discernimentos inovadores com os quais atualizar e voltar a esquadrinhar o legado de nosso passado artístico mais imediato. Tal empresa, no entanto, está repleta de paradoxos. É mais difícil de compreender, pois o tema em consideração envolve, por um lado, a produção artística de um século que – tendo proclamado o eterno presente da modernidade – recusa tornar-se o passado; e, por outro, porque implica a arte daquelas regiões até agora excluídas da axiologia canônica do Modernismo. Tentativas atuais de lidar com o primeiro paradoxo levaram ao debate da curadoria sobre como interpretar e apresentar a produção artística do século XX em exposições e instalações de museus. O fato de que as mesmas instituições responsáveis por estabelecer esses paradigmas bem conhecidos – liderados pelo Museu de Arte Moderna de Nova York – representem interlocutores oficiais na discussão atual é apenas mais um sintoma de uma transição surpreendente: do evidente envelhecimento do século passado à incerteza virtual do presente.[5] Um presente que, acomodado no antiessencialismo pós-modernista, impede o tipo de hierarquias dominantes de qualidade e valor transmitidas pela própria noção de “cânone”. O segundo paradoxo, por sua vez, estimulou uma retificação significativa das exclusões totais que decorreram das imposições do último meio século. Não surpreendentemente, as propostas mais produtivas a este respeito foram geradas nas e a partir das regiões deslocadas do Ocidente, como a Europa Central e a América Latina.[6] Graças a uma série de exposições internacionais centradas em introduzir ou revisar capítulos-chave de tais histórias obliteradas, esses enclaves geopolíticos estão lentamente assegurando suas posições como centros dinamizadores de atividade de vanguarda.
No caso dos movimentos artísticos latino-americanos, o tipo de omissão descrito acima é devido, em grande medida, à descaracterização tendenciosa proveniente do mercado e do boom de exposições dos anos 1980 e 1990 nos Estados Unidos. Esse reducionismo injustificável encontra suas origens no século XIX na busca do “bom selvagem”, assim como em um sonho pré-ontológico com o qual o impacto inicial do Projeto Surrealista botou em camisa-de-força o nosso continente. Ambos os exemplos desse simulacro de identidade mal foram esboçados em seu momento histórico como paliativos para o impasse crítico da imaginação ocidental. Essas falácias, porém, persistiram em uma série de estereótipos distorcidos vigentes em todo o mainstream internacional. A saber: uma visão essencialista da arte latino-americana baseada em uma falsa ilustração de identidade. Digo “falsa” porque negar a dimensão ontológica de mais de vinte nações – com enormes variações étnicas, socioeconômicas e até linguísticas – serve para mascarar sua posição subordinada em relação aos poderes hegemônicos do Ocidente. Falar a priori sobre tais identidades padronizadas é, portanto, ingenuidade nominalista. O produto hipotético de tais desigualdades entre o centro e a periferia só pode reforçar uma história unívoca marcada tanto pelo legado autêntico do passado colonial como pelo estado virtual de um presente global. Para além do otimismo transmitido por seu rótulo eufemístico e unilateral de “pós”, nosso presente é apenas neocolonial.
Como sugerido anteriormente, há uma tendência em assimilar rapidamente a complexidade formal e discursiva da contribuição real desses movimentos para a vanguarda através dos recursos decorados e grotescos, quer do exótico, quer do primitivo. Essa platitude nos reduz artisticamente ao espetáculo carnavalesco da excentricidade e levou à estereotipagem de todos aqueles artistas e movimentos que não se encaixam nos parâmetros do Modernismo canônico na categoria subalterna de “o irracional”. Em tal redução teleológica efetuada por escrutínio hegemônico, tanto as correntes primitivistas quanto o Surrealismo são amplamente aceitos como a única janela possível para as realidades da América Latina perante o mundo. Daí, tais traços exóticos do ilógico são inaplicáveis aos critérios artísticos trazidos à tona por Inverted Utopias. Além disso, devemos considerar o convencionalismo que teimosamente encurrala essas tendências nas categorias exclusivas de indigenismo e figurativismo, como se estivéssemos condenados a uma espécie de acefalia histórica. O mesmo se aplica no que respeita à categoria da chamada arte política, entendida, crassamente, como a denúncia explícita das questões sociais disseminadas pelas incansáveis manifestações do realismo socialista. Tais preconceitos estão indubitavelmente ancorados em uma fixação fetichista dos mercados de arte por um período tornado clichê: 1920-1945. Embora a significância destes anos seja inquestionável, a imobilidade dos temas prediletos em jogo nas casas de leilões e na imprensa dominante não é apenas suspeita como dificulta, à medida que o tempo passa, outras abordagens possíveis para a produção em questão.
Contrastando a ubiquidade desses estereótipos em museus, mercados de arte e circuitos de exibição, a utopia extremamente atual da vanguarda latino-americana ainda não teve uma leitura pertinente no âmbito museológico ou mesmo acadêmico. Inverted Utopias visa deter este ciclo vicioso, apresentando algumas características notáveis de nossa produção artística que expõem concretamente as limitações de fórmulas e convenções esgotadas. Por meio desta publicação e exposição, procuramos abordar tal omissão de duas maneiras: primeiro, trazendo à luz as contribuições genuínas dos latino-americanos para o fenômeno mais amplo da vanguarda internacional, e segundo, desenvolvendo uma nova abordagem de curadoria para transmitir a sofisticação alcançada por artistas e grupos que subscreveram essa tendência na Argentina, no Brasil, em Cuba, no México, na Colômbia, na Venezuela e no Uruguai, entre outros países. O propósito é duplo: por um lado, acabar com o status subordinado ao qual a arte latino-americana tem sido tradicionalmente relegada; por outro, oferecer um equilíbrio mais atrativo, se não mesmo exato, do papel que os artistas dessa região desempenharam na configuração geral do modernismo. Dentro desses parâmetros, os ensaios e documentos aqui incluídos revelam pontos de contato e divergências significativas entre as percepções europeias e latino-americanas desse fenômeno-chave da arte do século XX. Tal como seus homólogos do Velho Mundo, por exemplo, os artistas latino-americanos não abordaram a vanguarda como um estilo ou uma escola, mas como uma atitude autocrítica que questionou a natureza e o significado da arte enquanto simultaneamente expandia seus parâmetros formais e conjeturais. E, no entanto, poder-se-ia argumentar que as afinidades entre os grupos de vanguarda do Velho e do Novo Mundo terminam aí. Isso porque, como elucida Héctor Olea na introdução à seção Documentos deste catálogo, os nexos dialógicos sustentados por artistas latino-americanos com seus homólogos europeus levaram a uma série de versões, inversões e subversões dos postulados teóricos e práticos dos movimentos históricos de vanguarda. Essas transformações intrínsecas não só permitiram propostas altamente originais, como transformaram as leituras latino-americanas dessa tendência em agentes ativos na projeção invertida de suas sociedades.
Arte como uma forma de Utopia
O título da exposição pretende transmitir várias facetas que a palavra “utopia” gerou no contexto do Novo Mundo e suas implicações para esse empreendimento. O primeiro sentido representa a noção de América como A Terra Nova ou espaço ideal da imaginação do Renascimento e do Iluminismo europeu. De Cristóvão Colombo a Pedro Álvares Cabral, esses exploradores europeus – em busca de um parâmetro mais abrangente da realidade – vieram para a América com lendas e mitos que marcaram a ferro a inventividade literária de sua época. Estimulados pelo mistério e fascínio da Terra Ignota, transferiram sua bagagem de criaturas fantásticas e locais idílicos para uma apreciação exótica de fenômenos inéditos observados durante essas aventuras em viagem ao Desconhecido. Em uma de suas “Cartas aos Soberanos”, escrita durante essa terceira viagem (1498), Colombo relatou a enorme decepção provocada nele e em sua tripulação pelo que eles acreditavam ser sereias. Eles não conseguiam superar o fato de que essas sereias americanas não eram tão bonitas quanto afirmavam. Isso não é surpreendente, porque o que eles realmente viram ao redor de seus navios não eram sereias, mas um grupo de peixe-bois, aliás, peixe-mulher. A anedota de Colombo ilustra como a realidade física do Novo Mundo funcionou desde o início para desativar a engenhosidade utópica do Ocidente. A dinâmica de tal interação entre fantasia e ignorância, realidade e desapontamento é o cerne da noção de “As Américas” entendida como um eco da busca da Europa por sua própria alteridade. E tal dinâmica – como um processo contínuo no qual o mito e a realidade se mediam um ao outro – foi traduzida no contexto desta exposição precisamente como a essência de algumas das utopias invertidas.
O construto paradisíaco de um locus distante desde o qual escapar de um Velho Mundo perimido sofreria, porém, uma notável mudança nas primeiras décadas do século XX. Durante esse período, artistas e escritores de toda a América Latina começaram a assimilar e implementar a reviravolta cultural desencadeada pelo Modernismo em cenários em que a modernização era uma promessa distante. Artistas-teóricos como Joaquín Torres García, David Alfaro Siqueiros e Oswald de Andrade cedo descobriram que a essência da nova arte e literatura era sua capacidade de virar o status quo artístico do Velho Mundo de ponta-cabeça, introduzindo um conjunto autônomo de valores culturais e artísticos. A consolidação dessa “consciência autóctone”[7] tomaria muitas formas, mas todas convergiriam para o mesmo objetivo: a legitimação da arte e da cultura latino-americanas em seus próprios termos.
Nessa base, nossos pioneiros prospectivos procederam a calibrar de novo os postulados da vanguarda para se adequarem às condições sociopolíticas de seus países pré-industriais. A noção de “América Latina” como o não lugar exótico da imaginação europeia seria rapidamente substituída pela quimera da vanguarda: a própria arte como uma forma de utopia. Ou seja, a arte como incorporando valores totalmente novos que (no contexto da sociedade capitalista) a libertaram de sua mera função instrumental e a transformaram em uma fonte de prazer e participação para as massas. Essa ordem social e estética ideal foi a utopia embrionária perseguida por movimentos modelares como o Futurismo, o Expressionismo, o Dadaísmo, o Neoplasticismo, o Construtivismo e o Surrealismo; os quais contaram com as forças tecnológicas desencadeadas pela modernização para possibilitar esse estado ideal. Mas, no contexto desigual do Novo Mundo, essa utopia passaria por uma inversão notável. Em vez do impulso avante que a modernização impôs às vanguardas europeias, os latino-americanos retornaram a seu passado glorioso e imaculado em busca dos elementos quiméricos para sua visada vanguardista. Este estado primitivo foi situado no passado pré-cabralino e pré-colombiano. Isto é, no glorioso reino dos Astecas, dos Maias e dos Incas, cujo grau de civilização, na visão de nossos artistas, se igualava ou superava em sua época o da Europa; ou, alternativamente, na livre mobilidade de culturas tais como a Tupi-Guarani e seu flexível matriarcado de Pindorama. Das páginas ativistas de El Machete, por exemplo, os muralistas mexicanos convocaram uma revolução social e artística que possibilitaria um florescimento étnico, cósmico e historicamente transcendente da arte “comparável àquela [desfrutada] por nossas admiráveis civilizações autóctones”.[8] Este objetivo foi compartilhado por um amplo espectro de artistas em toda a região, incluindo de Andrade, Torres García e os minoristas cubanos, todos os quais propuseram um retorno aos elementos do passado nativo da América Latina, ora como o antídoto para a evidente decadência da arte europeia ora como fonte da arte de vanguarda do futuro.[9]
A substituição do impulso precursor da vanguarda histórica por essa mudança regressiva para o passado aborígene, me permite caracterizar o estado ideal perseguido por esses movimentos latino-americanos como uma espécie de “utopia regressiva”.[10] Esta última não implicava abandonar os meios tecnológicos postos em evidência pela modernização, mas, antes, sintetizá-los com o legado das antigas civilizações do Novo Mundo. A unidade de visão e princípios estéticos no centro tanto da arte antiga quanto da moderna são a chave para essa síntese. Para Siqueiros, assim como para Torres García e Oswald, o objetivo seria abordar um passado artístico e arquitetônico que já incorporava os elementos de síntese e equilíbrio que a arte contemporânea se esforçava para emular. Ao mesmo tempo, Siqueiros rejeitou falsos “nacionalismos” e “arqueologismos” em favor do direito dos latino-americanos de se expressarem a um nível universal. Por conseguinte, embora ele acreditasse fortemente que ser moderno e internacional era de suma importância, ele também alertou os artistas para não se desviarem do objetivo essencial: “Devemos contribuir com nossos próprios valores artísticos para a estética mundial.”[11] Nesses termos, a utopia regressiva desses movimentos se tornou o emblema de um projeto cultural de emancipação. Para Siqueiros, Oswald e Torres García, o desafio era assumir o direito de tanto produzir quanto exportar arte e cultura genuínas. A noção brasileira de “antropofagia” virava o epítome vivo desse objetivo. Antropofagia não significava canibalismo do Outro, mas sua assimilação sagrada (nunca sacrílega).[12] Implicava, assim, a absorção dos valores do Outro para reconstruir uma especificidade alternativa que é devoradora e respeitosa ao mesmo tempo. Dessa forma, a antropofagia representa um exercício de identidade baseado no potencial dos indivíduos de se legitimar em relação aos outros. Nesses termos, a arte latino-americana poderia tornar-se uma força produtiva rica e uma fonte de matéria-prima exportável. Mário de Andrade, outra figura-chave da Semana de Arte Moderna brasileira (1922), expressou sucintamente esse objetivo de longo prazo quando proclamou: “Somos os aborígenes de uma perfeição futura”.[13] Essa frase ainda ressoaria com a neovanguarda brasileira dos anos 1960 exemplificada pela artista neoconcreta Lygia Clark, que declarou: “Somos os novos primitivos de uma nova era”.[14] Em cada caso, a América Latina serviu como uma tábula rasa para criação artística. E as tentativas desses vanguardistas de chegar ao âmago da estrutura plástica, do gesto expressivo, da renovação ritual se tornaram equivalentes a uma redescoberta do mundo, ainda que em seus próprios termos.
Fora do mítico e do histórico, a América Latina emergiu, assim, como um começo inédito, uma utopia alternativa às obsolescências de uma Europa esvaecida. Traduzida para o contexto precário das sociedades latino-americanas – onde a modernização era uma esperança e a infraestrutura para a arte era inexistente – tal visada forneceu, no entanto, o ponto de partida. Isto é, um impulso experimental intensivo cujos valores estavam centrados na crença do potencial radical da arte para transformar de formas inconcebíveis a experiência dessas sociedades. Torres García resumiu o embalo geral do impulso utópico latino-americano com sua ideia de um mapa invertido da América do Sul no qual o norte olha para o sul.[15] Através desse simples gesto, o mestre uruguaio não só transmitiu a necessidade de cortar o domínio espiritual da Europa para posicionar a América Latina na cartografia artística do modernismo, como também estimulou a ironia implícita no título desta exposição.
Algumas características notáveis
E, no entanto, além de qualquer forma de essencialismo, o que é único sobre a contribuição da vanguarda na América Latina? Podemos citar pelo menos quatro traços notáveis que caracterizam as versões latino-americanas da vanguarda. Esses traços se desdobram ao longo dos dois momentos cruciais da atividade de vanguarda nesta exposição; por um lado, o momento fundador formado pelas décadas de 1920 e 1930, por outro, as décadas imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial. Se as duas primeiras décadas representam a consolidação dos movimentos de vanguarda no calor dos projetos nacionalistas de modernização, o segundo período mostra a maior autonomia e originalidade alcançada como resultado da prosperidade econômica provocada pelo “desarrollismo” (isto é, desenvolvimentismo) do pós-guerra nos principais países da região.
Ainda assim, a arte de vanguarda na América Latina – seja nos anos 1920 e 1930 ou nos anos 1960 e 1970 – não era um fenômeno de alcance continental. A vasta diversidade e heterogeneidade da região impedem qualquer consideração de desenvolvimentos artísticos uniformes. O tipo de manifestações destacadas por Inverted Utopias floresceu, na sua maioria, em sociedades urbanas “abertas” como a argentina, a brasileira e a uruguaia, amplamente constituídas por ondas de imigrantes europeus e, portanto, receptivas ao tipo de cultura internacional promovida pelos movimentos históricos de vanguarda. No México, a revolução mais importante da primeira metade do século na América Latina inaugurou um espaço de inovação de vanguarda que rapidamente formou um paradigma para o resto do continente. Algo semelhante aconteceu em Cuba, onde a independência da dominação espanhola estimulou um renascimento cultural que culminou na formação de grupos de vanguarda na década de 1920. Colômbia e Venezuela, por sua vez, não experimentaram este tipo de manifestação em pleno vigor até aos anos 1950 e 1960. Na Venezuela – deixando de lado o caso único de Armando Reverón – foi o empuxo modernizador dos anos pós-Segunda Guerra Mundial impulsionado pelo petróleo que tornou possível a irrupção de tendências bastante diferentes, como o Cinetismo, Los Disidentes e El Techo de la Ballena. Em contrapartida, países como o Peru, o Equador, a Bolívia e até mesmo o Chile experimentaram o processo plástico na arte de vanguarda apenas como ecos formais desarticulados de movimentos como o Impressionismo, o Pós-impressionismo e o Cubismo.[16] Com poucas exceções, as tentativas artísticas locais de produzir arte “nova” proveniente dessas tendências não geraram mais do que impasses acadêmicos do impulso original.
A primeira característica notável da abordagem latino-americana é sua relação fundamental com a história, incorporada em referências tanto ao passado distante quanto ao imediato. Como Peter Bürger notou, um dos traços essenciais dos movimentos europeus – exemplificados pelo Cubismo e por uma miríade de outros “ismos” – foi a forma como eles procuraram uma ruptura drástica do passado burguês representado pelos ancien régimes.[17] E, no entanto, os latino-americanos não só se agarraram às raízes de sua nova cultura em processo como – na medida em que não participaram nem dos sistemas nem das estruturas ligadas à ascensão e queda da classe burguesa no Velho Mundo – muitos deles recusaram se engajar em contornar o legado do passado europeu por si só. Tal proposta implicitamente carrega a inversão dos polos da tradição e da modernidade: incorpora uma noção paradoxal de tradição como ponto de partida para a nova abordagem da arte em nosso continente. Com efeito, Torres García, Siqueiros, José Clemente Orozco, Xul Solar, Vicente do Rego Monteiro, e outros expoentes iniciais dessa tendência, abraçaram a noção paradoxal de la tradición como base para suas manifestações vanguardistas. Nessa perspectiva, a tradição era “o acúmulo de experiências” advindas de movimentos artísticos americanos e europeus, que funcionavam como um inventário da arte do Novo Mundo.[18] Isso implicava a rejeição da cópia em favor de uma assimilação simultânea, mas seletiva, de fontes europeias e autóctones. O aspecto inovador de tal interação com o passado é que seu discurso herdado não só funciona como o dado – seja no sentido do legado do classicismo ou nas raízes de uma cultura nativa e mestiça – como se transforma em uma nova proposta formal: a chave para um vocabulário inovador e meios para comunicar através da arte. Essa noção híbrida de tradição facilitou a nova arte da América Latina enquanto sintetizava a melhor resposta que nossos artistas podiam dar às disparidades que enfrentaram; quer dizer, a oscilação desigual entre o ímpeto das vanguardas históricas e as limitações endêmicas da modernização em seus contextos periféricos.
Indubitavelmente, essa interpretação específica de la tradición foi a base tática em que muitos movimentos de vanguarda latino-americanos dos anos 1920 e 1930 estruturaram suas estratégias artísticas. Como tal, já aponta para o segundo traço saliente destes grupos: o sincretismo irreverente e o ecletismo formal em torno do qual operavam. Para esses latino-americanos, tanto os fundamentos quintessenciais da arte antiga quanto as inovações da vanguarda histórica formavam um reservatório ilimitado de procedimentos artísticos, temas e dispositivos formais. Nesse contexto, o discurso do Modernismo – tanto em suas versões arte pela arte quanto vanguardistas – era uma língua franca para dar forma a uma concepção iconoclasta da arte proveniente da perspectiva do Novo Mundo. O caldeirão de misturas desta operação foi ainda combinado com motivos nativos e tradições vernáculas (da Grécia antiga à África, de Aztlán à Amazônia), criando, assim, um chão ainda mais rico de temas e recursos no qual semear novos modos de expressão. Se o projeto dos antropófagos de devorar fontes literárias (artísticas e culturais) integrava as manifestações mais radicais do sincretismo irreverente de nossas vanguardas, o construtivismo universal de Torres García tipificava o ecletismo formal que animou esses movimentos. Neste último, a matriz passiva neoplasticista – signo de arte pura, não objetiva – ficou contaminada com os símbolos pictográficos de civilizações, simultaneamente, antigas e modernas, distantes e locais. É na constante que oscila do velho ao novo, na sua assimilação ou contaminação, que a genuína contribuição desses movimentos alcançou uma forma concreta.
Uma terceira característica fundamental dos movimentos de vanguarda latino-americanos é sua perspectiva relutante em relação ao estereótipo de “o novo”, considerado por muitos críticos e historiadores da arte como sine qua non da vanguarda. No que tange ao conteúdo, é evidente que a mistura de elementos do Velho e do Novo Mundo, exemplificada pela cultura mestiça ou afro-americana, envolve o elemento “inovador” que provê definição ao impulso de vanguarda do Novo Mundo. No contexto de sociedades instáveis, um ímpeto modernista que se poderia tornar um agente produtivo de mudança social foi um fenômeno bem-vindo. Contudo, a incursão desses artistas na redefinição da arte implementada pela vanguarda não terminou no âmbito do tema – abrangeu também a aplicação de novos materiais, técnicas e conceitos artísticos. Mais uma vez foi Siqueiros quem defendeu o uso de inovações tanto técnicas como materiais para a arte latino-americana. Sua ênfase na implementação de procedimentos revolucionários desde a fotografia e o cinema até à antiga arte de pintura mural – juntamente com o uso de ferramentas mecânicas e processos industriais – foi pioneira em uma dimensão inédita para os artistas latino-americanos. A atitude experimental de Siqueiros foi ecoada décadas depois em várias áreas: o uso, pelos cinéticos venezuelanos, de acrílico, instrumentos mecânicos de desenho e aplicações de pintura automotiva; a adaptação de água e luz de Gyula Kosice; a “utopia de pintar com luz” perseguida por Abraham Palatnik e Julio Le Parc; e, para citar apenas alguns exemplos, o talento de Juan Carlos Distéfano no manuseio de resinas epóxi e fibra de vidro. No outro lado do espectro, o uso de refugo industrial e materiais do cotidiano por estes artistas, encontrou aplicações emblemáticas nas gigantescas assemblages de Antonio Berni; na reciclagem de vendagens de Alberto Heredia como base para suas esculturas precárias; na conversão de móveis antigos de Beatriz González agindo como o suporte das suas pinturas; na manipulação de tecido, pigmento e objets trouvés (objetos encontrados) de Hélio Oiticica para suas séries Parangolés e Bólides; no manuseio de borracha, alumínio e tecidos de Clark como a base para suas propostas radicalmente inovadoras; e na manipulação de aço inoxidável, arame do quintal e objetos simples em construções tridimensionais suspensas de Gego. Ainda mais importantes, porém, são os novíssimos conceitos cunhados por esses artistas. Estes vão das telas com “moldura recortada” de Rothfuss e “esculturas articuladas” de Kosice a Bichos de Clark e Gego, de popcretos e ldeias Visíveis de Waldemar Cordeiro às estranhas coisaradas ou Cosas de Santantonín. Estas não são adaptações de conceitos existentes – na ampla gama de lugares-comuns temáticos da vanguarda –, mas sim contribuições originais que denotam uma assimilação interativa dos princípios modernistas, vanguardistas e do Novo Mundo.
Finalmente, do muralismo mexicano e da Semana de Arte Moderna na década de 1920 às formas radicais de conceitualismo que surgiram na América do Sul no início dos anos 1960, os latino-americanos aproveitaram seus anseios artísticos para se inserir e influenciar a matriz social de seus respectivos países. Para grupos que trabalhavam principalmente na década de 1960, esses elementos convergiram na dimensão extra-artística de suas práticas: a este respeito, o que torna as versões latino-americanas das neovanguardas tão únicas não são tanto seus postulados artísticos radicais, mas um objetivo não estético: a função social que eles foram chamados a desempenhar em relação ao paradoxo das sociedades instáveis e seu status quo. Aí reside sua dimensão utópica mais aprofundada. A tentativa de contestar a institucionalização da arte a nível mundial para transpor o fosso que os separava da sociedade, levou muitas dessas manifestações a engajar ativamente a esfera pública – ali mesmo onde a especificidade estética de sua prática se dissolveu em campos mais amplos, como a política, a sociologia, a etnografia e a antropologia. Como veremos em detalhe, as táticas de guerrilha urbana do El Techo de la Ballena, as intervenções da massa nas mídias dos conceitualistas brasileiros e argentinos, e as propostas performativas dos artistas neoconcretos exemplificam o desejo de superar os estritos parâmetros da arte em favor de experiências mais diretamente relacionadas com a vida cotidiana.
A articulação curatorial
No nível curatorial, parece evidente que apenas uma atitude flexível pode orientar as complexidades formais e as tensões teóricas inseridas nos movimentos de vanguarda latino-americanos. Se enquadrado nos termos da “rede” (réseau) de Foucault ou do conceito de Theodor W. Adorno de “constelação” (Konstellation) – discutido em profundidade no ensaio de Olea “Versões, inversões, subversões: O artista como teórico” – o objetivo desta abordagem é evitar a qualquer custo o impasse de exposições coletivas centradas em temas históricos. Em outras palavras, a chamada exposição de pesquisa panorâmica na qual a identidade pasteurizada da arte latino-americana tem sido insistentemente comprimida durante as duas últimas décadas, sobretudo nos Estados Unidos. Além da ingenuidade, tal visada carece de efetividade, pois envolve uma vasta região em que os desenvolvimentos artísticos não seguem um padrão sequencial ou sequer homogêneo. A credulidade gritante de mostras panorâmicas como essas provém de tentativas de reunir em um pacote só uma totalidade inatingível. O resultado flagrante é uma caricatura metodológica condenada ao fracasso quando ajustada à escala sempre relativa e incompleta de qualquer exposição. Além disso, qualquer tentativa de impor um foco linear e, pior, uma narrativa “completa” – portanto, sempre enganosa – se torna outro sinal alarmante da obsolescência dessa abordagem. Ambas as pretensões são contestáveis dentro do relativismo que subjaz à história em geral e à perspectiva despretensiosa que deve orientar nossa visão da arte de vanguarda em particular.
Em uma tentativa de contornar tais limitações, Inverted Utopias se articula em seis constelações: Universal e Vernácula; Lúdico e Lutuoso, Progressão e Ruptura; Vibracional e Estacionário; Óptico e Tátil; e, Críptico e Engajado. Apesar da disparidade cronológica e geográfica envolvendo cada uma dessas redes, o conjunto revela muitas linhas comuns que – por meio de nexos, contradições e contrapontos – entrelaçam, além de questões de tempo e espaço, a produção artística desses criadores notáveis. A maleabilidade desta rede permite o (re)posicionamento de artistas e grupos dentro de uma leitura dinâmica e transversal, que engloba sua ampla contribuição teórica e prática, bem como o grau de risco experimental que assumiram. Tal estratégia permite que o trabalho de artistas individuais apareça em mais de uma constelação. Logo, a obra construtiva do promotor Torres García vira, ao mesmo tempo, inspiração para a produção vernáculo-universal da Escola do Sul e alicerce para a vasta gama de manifestações, sejam abstratas ou concretas, incluídas na Progressão e Ruptura. De um modo semelhante, as investigações sobre a natureza do movimento e o uso de materiais inexplorados por outro precursor, Siqueiros, foram atualizadas várias décadas depois, nas propostas cinéticas de Jesús Rafael Soto, Carlos Cruz-Díez, Alejandro Otero e os projetos públicos dos membros argentinos, sediados em Paris, do GRAV. De outro ângulo, Soto e Cruz-Díez reaparecem como catalisadores das propostas ópticas e hápticas que constituem a essência da constelação Óptico e Tátil. Além disso, as reivindicações sociopolíticas dos movimentos internacionalistas autóctones (como o muralismo mexicano) retornam transformadas na refutação profanadora das tendências contestatórias dos anos 1960. Essa tendência evoluiu para o questionamento desmaterializado/rematerializado[19] da natureza e função da arte em todas as versões da arte conceitual. Atravessada por estes múltiplos níveis de apreensão e leituras infinitas, Inverted Utopias acontece. O seu não lugar acha um lugar para se posicionar.
A chave para esta articulação inovadora reside em seu potencial relacional e de engate ótimo. Isto é, em sua capacidade de abraçar a tensão dialética que a justaposição e a comparação de tendências díspares geram. Esta relação dialógica de artistas e movimentos ocorre dentro de cada constelação particular, bem como na exposição em geral. Nesse sentido, as seis redes se expõem aos extremos para circunscrever o escopo móvel das manifestações e produção dessas tendências. A controversa inclusão nesta mostra dos cinéticos, lado a lado com obras do grupo conterrâneo El Techo de la Ballena, fornece um bom exemplo disso: é uma justaposição impensável na própria Venezuela. A rejeição da representação aventada pelo Cinetismo, assim como o seu impulso de pesquisa serial, encontrou justificativa em uma atitude racional e científica que estava em total desavença com a exultação visceral das atividades de El Techo. A pitadinha de Dada destes, levou-os a distorceram imagens de seres humanos e de animais a fim de transmitir a repulsa e a tristeza que sentiam com a imobilidade social e o impasse político do “retorno” da Venezuela à democracia. De polos opostos, ambos os grupos expressaram as contradições do projeto desenvolvimentista de seu país. Desvendar essas posturas antitéticas na mesma exposição evidencia, assim, um sinal de objetividade muito além de estilos, tendências e temas mais “certinhos” para transmitir as disparidades no âmago das versões latino-americanas do Modernismo. O tipo de ecletismo contido em perspectiva da nossa curadoria, por sua vez, impede qualquer tentativa de privilegiar uma única sensibilidade estética ou formal gerada por esse processo assaz heterogêneo.
Como as estrelas em uma constelação, a rede permite uma leitura diacrônica das obras selecionadas. Pode perceber-se – com um simples olhar – o histórico e o cultural, as obras de arte e as suas teorias. A elasticidade das categorias que articulam esse formato curatorial favorece as incontáveis combinações de uma história da arte menos estabelecida que, portanto, nunca é teleológica. Além disso, sua axiologia instável é oportuna, adequada para transmitir o caráter peculiar tanto das manifestações quanto dos manifestos de vanguarda. De acordo com isso, devo enfatizar que apresentar artistas que permaneceram na obscuridade por décadas inviabilizava a inclusão daqueles exemplos exagerados por cânones hegemônicos e histórias de arte nacionais. Inverted Utopias representa uma tentativa de contar outro lado da esgarçada história da vanguarda, focada em inscrever personagens menos conhecidos e instrumentais dessa abordagem da arte moderna. Sob tais termos, esta proposta dos curadores é tudo menos um cânone. Em vez disso, seu escopo abrangente – tanto nas obras quanto nas teorias – representa um meio produtivo para expandir os parâmetros para o entendimento das utopias do modernismo anteriormente deslocadas.
Inverted Utopias se apresenta como uma provocação. Como espectadores ou críticos, somos compelidos a dar sentido à desordem conceitual ou visual que a exposição instala sob a aparência de “totalidade”. Essa compulsão funciona como um estímulo para oferecer interpretações frutíferas de artistas e movimentos, de outra forma fadados a ser considerados lugares-comuns exóticos. Dentro de tais parâmetros, uma exposição também pode ser um espaço de confronto, risco e, em última análise, descoberta de relações anteriormente subestimadas, nas quais um passado deslocado ganha vida na mobilidade do presente. O espaço relacional envolvido também corresponde à vitalidade da condição atual, contemporânea, tão imersa na simultaneidade e, acima de tudo, na contradição.
As Constelações Paradoxais
Se a subjetividade da arte e sua história podem ter qualquer propósito, o objetivo fundamental destas constelações reside no fato de que, em uma época de simultaneidade, elas transcendem as histórias nacionais fragmentadas e a progressiva desintegração de nossos perímetros regionais. Em uma época de justaposição, levam-nos a considerar de que forma tais recursos como o “dinamismo do espectador”, a estrutura vital, a paródia lúdica e dolorosa, ou mesmo uma ideia re/materializada de arte conceitual provocaram versões e reações tão divergentes em nosso continente. Hoje sabemos, em uma época do próximo e do distante, que elas são referências-chave para entender a produção prospectiva da área. Esta exposição não se satisfaz facilmente, porém, apenas apresentando lado a lado o melhor do passado; mostra também até que ponto a atualidade de suas redes e teias pode ser vista como contemporânea. Todas elas são, na verdade, extremamente úteis para compreender a identidade dispersa da arte atual.
Universal e Vernácula
A atividade teórica e prática dos referidos guias de nossa vanguarda estimulou tendências e movimentos que – durante as décadas de 1920 e 1930 – se focalizaram em um objetivo paradoxal: o desejo simultâneo por uma arte universal enraizada no tema vernáculo. Tal ambiguidade foi o ponto de partida para artistas e grupos tão díspares no tempo e no espaço quanto aqueles reunidos nesta constelação. As antinomias universalismo/nacionalismo assim como tradição/modernidade criaram uma tensão no espectro de objetivos, estilos e linguagens abertamente sincréticas que abrangem os legados culturais e artísticos do Velho e do Novo Mundo. O muralismo mexicano tentou capturar – em uma escala monumental – a gramática fragmentada do Cubismo e os ensinamentos do afresco da Renascença italiana, juntamente com fontes pré-hispânicas e mestiças. De outro ângulo mais similar com as distorções cubo-espaciais de Fernand Léger, o brasileiro Vicente do Rego Monteiro apresenta uma síntese sui generis dessa tradição formal reforçada com sua longa estada em Paris nas décadas de 1920 e 1930. Em obras que desenvolvem uma interação exaustiva como O atirador de arco (1925) e A crucificação (1922), Monteiro combina motivos retirados da cerâmica marajoara da foz do rio Amazonas e da iconografia religiosa do Brasil colonial.[20]
Todos esses artistas compartilham uma preocupação particular com a exaltação de elementos nativos como base para fundamentar a especificidade de uma consciência vernácula. O objetivo dos muralistas mexicanos de elaborar uma arte mestiça que transmitisse a miscigenação racial e étnica de seu país encontrou seu equivalente na recuperação do ethos afro-cubano proclamado como projeto artístico por Eduardo Abela, Carlos Enríquez, Antonio Gattorno e outros artistas, escritores e ativistas que se uniram em torno do slogan “arte nuevo” promovido pela Revista de avance. No entanto, seu projeto de ver Cuba “de dentro para fora”, a fim de compreender a natureza complexa de sua cultura, não implicava a representação direta de motivos e tradições étnicos.[21] Em obras como El triunfo de la rumba (1928), de Abela, o tema aparentemente banal da dança cubana – visto através de leves distorções inspiradas no Cubismo – fornece a tradução plástica mais do que a folclórica dos ritos da santería (macumba) e atributos desta cultura. Até então, os temas afro-cubanos – não considerados dignos de pintura – eram relegados a adornar caixas de charutos. O alcance mais radical dessa confluência de tradições, por outro lado, é incorporado em La espera (1929) e Candombe (ritmo carnavalesco uruguaio, 1921) de Pedro Figari. Neles, a impressão pós-impressionista do pontilhismo e a manipulação fauvista da luz e da pincelada à la Vuillard são inesperadamente realocados de seus contextos montevideanos pelo pintor para comunicar a marginalização sofrida pelas culturas negras e mulatas nas margens do Rio da Prata.
O paradigma de uma tensão universal-vernácula, lançado com tanto êxito pelo muralismo mexicano, também sofreu uma inversão nas aspirações da vanguarda rioplatense. Nas sociedades amalgamadas pelo caldeirão migratório europeu (como a argentina e a uruguaia), o desejo pela universalidade se manifestou com a força sintomática de um projeto nacionalista. A necessidade de se envolver ativamente com essa “grande tradição universal” atraiu artistas como Torres García, Xul Solar, Gonzalo Fonseca, Francisco Matto e Julio Alpuy para codificar o estrangeiro e o local dentro das linguagens arquetípicas da geometria, da abstração e, no caso de Xul, do misticismo. As aquarelas primorosas deste último – Jefa (Chefa, 1923), Tláloc (deus asteca da chuva, 1923) e Máscara con cruz (1924) – bem como as esculturas totêmicas da Escola do Sul – exemplificada por Poste (1958) de Gonzalo Fonseca e Tótems (1979-85) de Francisco Matto – é baseada em princípios e motivos universais cujo simbolismo cósmico serviu para transmitir, de uma forma ou de outra, o ponto crucial conflitante de suas sociedades.
Lúdico e Lutuoso
A necessidade de questionar por meio da arte o opróbrio perpetrado em todas as esferas da vida unifica ideologicamente e formalmente o grupo reunido nesta constelação. Importa salientar que, para objetivar sua refutação, a linguagem que eles inventaram difere significativamente das modalidades vãs de realismo social – uma tendência que estereotipou um espectro considerável da produção artística de nosso continente. Além dessa trivialidade, o cerne destas propostas não é ilustrar didaticamente a miséria social, mas sim recriar sua essência perversa através de uma série de estratégias evasivas. Na maioria delas, seja o repertório emblemático da alegoria ou o código dúplice da paródia, servem para fundamentar a proposição sacrílega.
Tal atitude irreverente teve um poderoso antecedente no humanismo antagônico de José Clemente Orozco. Em Cristo destruye su cruz (1943), La victoria (1944) ou mesmo Pomada y perfume (Engraxadela e perfuminho, 1946), tanto a alegoria quanto a caricatura lhe servem para denunciar a cumplicidade dos poderes civis, militares e religiosos. Aqui, a ênfase pictórica coloca-se no extermínio vergonhoso das pessoas e civilizações do Novo Mundo. Sua corrosividade exemplar ecoa nas pinturas da colombiana Débora Arango e do porto-riquenho Carlos Raquel Rivera, artistas mal conhecidos fora de seu contexto nacional, mas tão interessantes quanto outro porto-riquenho, Julio Tomás Martínez, aqui escolhido por trabalhos como El secreto de la maldad (1930). Aproveitando-se de alegorias blasfematórias, Arango e Rivera botam o dedo na ferida de sociedades atormentadas pelo colonialismo, a repressão, a corrupção e a violência sem-fim. As bestializações grotescas do poder abusivo representadas em Justicia (1944) e Familia (1951), de Arango, expressam a difícil situação moral e física das mulheres agredidas, tornando a artista a precursora da arte feminista no continente.[22] A condição colonial de Porto Rico, por sua vez, gera pesadelos políticos monstruosos e asfixiantes no miolo de La enchapada (A vernizagem, 1960-62) e Paroxismo (1963) de Rivera.
Um segundo núcleo comparativo desta constelação reúne artistas argentinos para os quais a produção iconoclasta e o pensamento crítico de Antonio Berni forneceram um ponto de partida desde os anos 1960. Nesse caso, contudo, o recurso à paródia (e não o tipo de alegoria de Orozco) enquadra as preocupações formais e ideológicas de suas propostas. A paródia – entendida como uma estratégia de citar diretamente de narrativas estabelecidas (portanto, um caminho paralelo) – permitiu a esses artistas uma abordagem menos convencional da realidade.[23] Por meio de apropriação, exagero e ironia mordaz, a paródia altera práticas socioculturais e convenções artísticas em sua essência. Este conjunto recorreu, assim, a uma série de táticas e variações cáusticas para alcançar suas afirmações acerbas. Berni produziu assemblages de grande escala (El mundo prometido al Juaníto Laguna [1962]) e monstros alegóricos (La sordidez [1964]) de sucata industrial e resíduos de lixo; Jorge de la Vega fez suas aberrantes “esquizobestas” (Music Hall, 1963) a partir de telas manipuladas e coladas a objets trouvés; Alberto Heredia usava madeira, papelão, tinta e ataduras para produzir suas cruzes sardônicas (Cruz con calzoncíllo [Cruz com cueca, 1980]) e heróis nacionais mumificados (San Martín o El hombre del brazo de oro, 1974). Outro aspecto desse procedimento pode ser apreciado no homem atado que está sendo torturado por asfixia em um vaso sanitário (El mudo II 1973) ou no Cristo proletário eletrocutado em serviço da Light (Acción directa [Violência social, 1998]). Essas duas esculturas de fibra de vidro condensam o forte e rigoroso legado da arte renascentista e contemporânea no centro da arte iconoclasta de Juan Carlos Distéfano. Uma tática semelhante é também evidente nos símbolos judaico-cristãos politizados por León Ferrari na série Biblia Gofrada (1996-98), bem como em sua paradigmática Civilización occidental y cristiana (1965). A iconografia controversa deste último ainda ressoa em nosso presente agnóstico. Finalmente, as Cosas (1961) de Rubén Santantonín irradiam suficiente estranheza para sacudir o espectador em uma experiência de intensidade sensorial que o invade pelos olhos e poros, “em virtude de ser um impulso material sem transcrição”.[24] Nas mãos profanas destes criadores, a paródia confronta a tragédia das sociedades sob domínio ditatorial e da censura sem perder sua propensão grotesca ao humor negro.
A paródia desses argentinos baseada em objetos teve contrapontos inesperados no continente. Por um lado, a sacrílega proposta daquele jeito dadá e surrealista de El Techo de la Ballena (Caracas, 1961-63). Para estes “terroristas da arte” que se fizeram passar por informalistas, a obra de arte vira cemitério de restos e excrescências que merece a mais urgente pesquisa humana. A “baleia” emblemática do grupo significa, assim, espontaneidade, criatividade e risco; em outras palavras, todas as qualidades que o capitalismo subtraiu da arte. A estratégia de apropriação intrínseca à paródia, por sua vez, é executada de maneira mordaz no mobiliário incomum no qual a colombiana Beatriz González interfere artisticamente. Por intermédio dessas peças, as convenções da pintura universal, dos mitos nacionais e da sociedade de consumo são questionadas desde o lar. Ao combinar formatos, suportes e materiais cotidianos não tradicionais, suas obras transgridem deliberadamente a “pureza” maculada dos meios tradicionais como pintura e escultura. González, Berni, de la Vega, Santantonín, Distéfano, Heredia e muitos outros nesta constelação estão preocupados com a hibridação dos mídia, quer se trate de pintura e escultura ou pintura, colagem, ready-made e ensamblagens. Nesse sentido, sua refutação radical vai muito além do questionamento das convenções sociais, a fim de alcançar uma profunda profanação do mito da própria arte.
Progressão e Ruptura
No que diz respeito à teoria da(s) vanguarda(s) histórica(s), não há melhor tendência para ilustrar solidamente nossa capacidade de “inversão” do que aquela fundamentada na abstração geométrica e no construtivismo. Tendo tido um enorme impacto nas regiões metropolitanas da Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela desde os anos 1930, essas correntes são prova, contudo, de uma ideia fora-de-lugar: a noção de uma arte completamente não objetiva no meio de sociedades com modernização lenta e desigual. A força com a qual uma proposta importada mesmo lançou raízes e se nacionalizou, acompanhou, a par e passo, o impulso desenvolvimentista do período pós-Segunda Guerra Mundial. O ímpeto atingido na América do Sul por essas tendências levou alguns críticos latino-americanos a falar sobre a presença de uma “vontade construtiva” que – na forma de um projeto racionalista – tentou corrigir os “excessos” irracionais das sociedades subdesenvolvidas.[25] Além do essencialismo dessa simplicidade, os conhecimentos teóricos e práticos à mão desses grupos testaram sua capacidade de produzir teoria pura em sociedades (ditas) subdesenvolvidas, caracterizadas pela precariedade de sua infraestrutura cultural. Por causa disso, a seleção nesta constelação se centra naqueles artistas-teóricos que, apesar das limitações intrínsecas de seus meios locais, conseguiram articular uma utopia peculiar dentro dos parâmetros internacionais de ambos os projetos concretos e construtivos.
O objetivo de anular, de uma vez por todas, o mundo da representação estruturando a obra de arte como uma entidade concreta e autorreferencial – na qual linha, cor e plano, desprendidos do mundo exterior, não são nada além de si mesmos – era partilhado, de perspectivas bem diferentes, por todos os grupos e tendências nesta constelação. Entre eles, mais uma vez, a notória personalidade de Torres García se torna o foco de atenção. Uma série de “construções” inovadoras produzidas em Paris durante a sua ligação com o grupo abstrato Cercle et Carré serve para destacar sua produção multifária. Os pequenos objetos de madeira pintada com planos recortados monocromáticos – devidamente exemplificados por Madera en planos de color (1929; ver o meu ensaio “Estruturas Vitais”) e Estructura en blanco y negro (1930) – consolida a noção de “estrutura plástica” que o uruguaio compartilhou com, entre outros, Piet Mondrian e Theo van Doesburg. Outra obra do mesmo período, Constructivo con varillas sobrepuestas (1930), sintetiza a frustração pessoal do uruguaio em relação ao neoplasticismo e aos princípios do sistema de construtivismo universal que ele teorizara, de modo assíduo, desde os anos 1930. Em sua divisão composicional, essa peça híbrida amalgama as linguagens do seu projeto paradoxal: a grade mondrianesca pura e não objetiva (seção inferior), contraposta e cheia de pictogramas (metade superior) do patrimônio humanista de civilizações antigas.
O reducionismo planimétrico e cromático destas construções encontra um estranho contraponto na série Sculture astratte (Esculturas Abstratas, 1934) que Lucio Fontana exibiu com o grupo Abstraction-Création em meados da década de 1930. Ao mesmo tempo, tais obras de Torres García como Formas sobre fondo blanco (1929) e Objet plastique (1929) revelam uma preocupação com a irregularidade do suporte pictórico, um tópico que ocupará a produção teórica e prática dos membros do grupo Madí no Uruguai e na Argentina, uma década depois. A este respeito, é digno de nota o diálogo que as construções pictóricas de Rhod Rothfuss com molduras recortadas – Composición Madí (1946) e Superestructura Madí (1946) – estabelecem com os pequenos “objetos plásticos” de Torres García de estrutura irregular e orifícios geométricos. Finalmente, o Objet construit (1938) deste último gera um precedente antecipado para a questão da transferência de motivos visuais abstratos de um plano bidimensional (como desenhar ou pintar) para um volume tridimensional, e aqui exemplificados por uma estrutura vertical montada precariamente. Essa questão seria extensivamente pesquisada e atualizada duas décadas mais tarde, no Brasil, pelo artista neoconcreto Willys de Castro em sua série Objetos ativos (1961-62).
Carmelo Arden Quin, Rothfuss, Kosice – os principais teóricos de Madí – também contribuíram com visadas altamente originais para a busca de uma pintura e escultura concreta. A noção de “moldura irregular” – introduzida por Rothfuss em suas construções com margens recortadas e vazios geométricos – destruiu o “tabu” do quadro, transformando-o assim em um objeto concreto. A contribuição básica de suas composições Madí residiu, sem dúvida, na forma como isolou a tinta em blocos de cor, integrando, assim, o espaço externo na estrutura. Gyula Kosice, por sua vez, abordou o problema da autonomia absoluta da obra quando propôs o conceito de uma escultura com movimento articulado, incorporado em Röyi (1944) e Escultura articulada (1946). No entanto, sua versão mais radical dessa proposta foi Metro (c. 1950; ver “Estruturas Vitais”); nesta peça, a banalidade de uma tira rebitada capaz de produzir múltiplas articulações toma o lugar da própria escultura para negá-la. A materialidade flexível das propostas de Madí aniquila, assim, a “aura” da obra, estabelecendo um nexo raro com o legado Dadá.
No Brasil, a partir da plataforma do grupo ruptura, Waldemar Cordeiro teorizará sobre uma nova maneira de entender a estrutura da obra de arte em si. Substituindo a mão do artista pela régua e outras ferramentas mecânicas de desenho, Cordeiro desenvolveu um método de escrita plástica para dar forma à sua busca de conceitos perceptíveis. Essas Idéias visíveis (1956-60) são apenas uma materialização do próprio pensamento, devidamente estabelecido em um desdobramento modular e serial. Cada proposta não só nega questões de representação e referencialidade, mas também funciona como uma “tese concreta” sobre os problemas de se visualizar um espaço mental inapreensível. O grupo ruptura deu lugar ao movimento da arte concreta que contou com, entre muitos outros artistas, Cordeiro e Luis Sacilotto. Este último desenvolveu uma poética inteira baseada no diálogo com a forma autorreferencial do quadrado. Obras como Concreção 5942 (1959) consistem em quadrados de alumínio cortados de acordo com uma progressão numérica. Sacilotto criou vários planos na base serial da superfície modular do quadrado. A estrutura resultante dessa progressão depende dos efeitos perceptuais do espaço negativo gerado pelos recortes de quadrados precisos sobrepostos.
Se o trabalho dos artistas do ruptura e do concreto estabeleceu um estímulo inédito para teorias e práticas artísticas inovadoras, o inquestionável alcance da teoria de Ferreira Gullar sobre o não objeto – elaborada em 1959 sobre os parâmetros da fenomenologia de Merleau-Ponty – foi um ponto de virada extraordinário na arte brasileira. Este último engloba uma ampla pesquisa sobre um novo tipo de espaço realizado por figuras principais como Lygia Clark e Hélio Oiticica, assim como os membros menos conhecidos dessa tendência, Willys de Castro e Hércules Barsotti. A produção de todos esses artistas postula questões relativas à espacialização do ponto para a linha, da linha para o plano, do plano para a superfície dobrada que está prestes a se tornar um volume, e assim por diante. Na maioria desses casos, a chegada rigorosa ao dilema do não-objeto tem lugar através de um processo redutivo. A série de Superfícies moduladas (1957), de Clark, focaliza seu interesse em um vocabulário para expressar um novo espaço que ela começou a esboçar em 1954. Tal léxico é composto de conceitos como “plano modulado”, “espaço-linha” e “linha-luz”. Termos teóricos realizados na prática com linhas brancas horizontais e verticais de igual tamanho que penetram a superfície negra cortando e organizando o espaço em sequências reiterativas ou invertidas são exemplificados por sua série Espaços modulados (1958) e Ovo (1959). A interação da linha externa comparada com o espaço interno da obra produz uma distorção perceptual na qual a linha “se revela como um momento do espaço circundante”.[26] Outras séries de Clark, como Casulos (1958-59) e Bichos (1960-63), levam esses estudos um passo adiante. No primeiro, a linha literalmente abre o plano, dando-lhe uma autonomia concreta. Esse processo é totalmente completado nos objetos de alumínio de Bichos – consistindo em planos articulados por dobradiças que se movimentam em resposta aos estímulos do espectador, como se fossem “organismos vivos”.[27]
A manipulação orgânica de Clark da superfície/suporte encontrou um equivalente vívido na busca de Oiticica do corpo físico da cor. A série Metaesquemas deste último (1957-60) envolve estruturas cromáticas inspiradas em Mondrian que se replicam ad infinitum. Como nas pinturas de “linha” de Clark, o efeito de seus metaesquemas depende do vazio instável produzido pelos movimentos virtuais dos retângulos e quadrados monocromáticos contra as superfícies brancas. Os metaesquemas negam, assim, a representação em favor de “incursões sensoriais”.[28] Tal interação perceptiva é levada ao suporte tridimensional em Núcleos (meados da década de 1950, anos 1960). Esses núcleos representam pequenos labirintos, onde a cor deixa de ser um elemento decorativo da obra de arte a fim de se tornar o suporte. Os Objetos ativos (1961-62) de Willys de Castro condensam a pintura em um ripado estreito na parede perfurada por aberturas que, como as superestruturas de Rothfuss, desafiam a percepção do espectador em relação ao espaço circundante. Recorrendo a tons primários, de Castro ressalta mais ainda a presença física da obra através da cor. Nestes termos, a pintura é superfície só, um volume, uma unidade autorreferencial de fato. Por sua vez, a produção mais radical de Barsotti – sua série Brancos e preto (1959-61) – questiona os “limites” da pintura por meio de um jogo minimalista de preto e branco, luz e trevas ocorrendo nas próprias margens do plano pictórico. Ao direcionar nossa visão para esse limite, Barsotti dissolve o plano em percepção.
Vibracional e Estacionário
A tentativa de produzir uma arte capaz de resolver o confronto entre a estase e o movimento desestabilizou a pintura a partir de suas bases. Já nos anos 1930, esta questão se tornou uma fonte de atividade utópica para um pequeno, contudo inovador, grupo de latino-americanos. Embora reconhecendo as contribuições individuais de alguns desses artistas ao legado do Futurismo, a história canônica da arte ignorou largamente as implicações gerais dessa tendência cinética. Logo, dentro desta constelação, existem dois núcleos proeminentes que nunca foram considerados em relação um ao outro. De um lado, estão as equipes artísticas ligadas a Siqueiros na produção de murais em grande escala na Cidade do México, Los Angeles e Buenos Aires – o último dos quais incluiu Antonio Berni. De outro, Soto, Cruz-Díez, Otero e Gego devem ser considerados. Das posições ideológicas e artísticas mais irreconciliáveis, todos esses teóricos orientados para a prática refutaram, atualizaram e expandiram o legado dinâmico do Futurismo, enriquecendo-o com fontes diversas: Paul Cézanne, Piet Mondrian, Construtivismo russo e as teorias cinematográficas de Serguei Eisenstein, entre outras. O diálogo crítico dos dois grupos díspares nesta constelação pretende mostrar o paralelismo de suas propostas e demonstrar como até mesmo suas diferenças podem ser usadas para promover a compreensão de suas conquistas originais. Isto, sem esquecer os seus esforços pioneiros em nome de uma arte que foi assimilada com sucesso pela cultura contemporânea.
A arte dinâmica teve um teórico e praticante-chave em Siqueiros. Tanto em sua produção individual como coletiva dos anos 1930, a mania do movimento se tornou um dos dois principais polos em torno dos quais gira a articulação de sua pintura; por mais contraditório que possa parecer, o classicismo foi o outro polo, aproximando-o de Torres García.[29] A principal abordagem de Siqueiros à teoria cinética tem em conta a noção do “mural cinematográfico”, desenvolvido logo após seu encontro com Eisenstein em Taxco, em 1932. Através dessa forma muralista, Siqueiros procurou contrapor o fascínio do cinema sobre as massas proporcionando simultaneamente uma alternativa para a decadência inexorável da pintura mural na era da reprodução mecânica. De fato, as reflexões de Siqueiros sobre este tópico antecipam de forma premonitória a denúncia de Walter Benjamin à cultura midiática de massas. Decorrente da montage da vanguarda, o mural cinematográfico sintetiza as tentativas de Siqueiros de conjugar os princípios futuristas – como a perspectiva multiangular e o espectador dinâmico – com materiais e técnicas de última geração derivadas da indústria moderna. Um par de projetos de murais realizados em Buenos Aires (Mural, “Ejercicio plástico”, 1933) e Cidade do México (Retrato de la burguesia, 1939-40) incorporam o modo como essas ideias em curso se concretizam na obra de Siqueiros.[30]
A utopia de Siqueiros de uma pintura-em-movimento ecoou na obra de dois contemporâneos radicais nos anos 1930. O primeiro é Antonio Berni, que compartilhou as preocupações cinéticas de Siqueiros. As técnicas de montagem geradas pelo cinema são uma característica especial das pinturas de cavalete em escala-mural (Desocupados [Desempregados] e Manifestación, ambas de 1934) produzidas por Berni como resultado de sua troca frutífera embora polêmica com Siqueiros. Em jogo estava a validade do muralismo no contexto argentino. O segundo, o poeta e teórico de vanguarda brasileiro Oswald de Andrade, traduziu o cerne de ideias retiradas de uma palestra proferida por Siqueiros em São Paulo (1934) para seu romance tríptico Marco Zero (1943). O processo de montagem dinâmica com o qual de Andrade estruturou seu relato da revolução paulista foi chamado de “prosa cinematográfica”.[31] Foi, sem dúvida, uma tentativa de recriar, por escrito, a descontinuidade simultânea da experiência contemporânea que Siqueiros devidamente teorizara e praticara quase uma década antes. No entanto, todos esses tipos de experimentos cinéticos fundamentados na imobilidade tanto da parede quanto do livro não poderiam escapar às contradições intrínsecas de sua proposta utópica. Assim, o impasse provocado por essa limitação chegou a uma saída viável quase duas décadas mais tarde nas propostas dos cinéticos: Soto, Cruz-Díez e Otero.
De um ponto de vista oposto, oferecido tanto por Mondrian quanto pelo legado do construtivismo, Soto estabeleceria as bases para uma arte que transcendeu os parâmetros convencionais da pintura e da escultura. Peças cinéticas como Trapecio (1957) e Estructura cinética (1956) consistem em folhas sobrepostas de acrílico que desenvolvem vibrações sutis como resultado do deslocamento do observador em frente à obra. Ao tornar o espectador um participante ativo da proposta dinâmica, Soto forneceu uma solução viável para o impasse da estase pictórica. O paradoxo provocado por tal deslocamento teve seu equivalente na pesquisa sobre a cor física e virtual realizada por Cruz-Díez em sua vasta série iniciada em 1958 e conhecida como Fisicromías. A questão cinética em jogo aqui é o resultado imprevisível do processamento visual da cor na retina do espectador: a retinalidade. Ainda de outra perspectiva, a série Coloritmos (1956-60) de Otero – para a qual a arte de Mondrian também fornece um ponto de partida – combina a mesma preocupação com a relação entre percepção de cor e movimento. Em suas peças, contudo, as temáticas essenciais são o ritmo e a sequência de cores sobre uma matriz controlada de linhas verticais pretas e brancas. Embora os três artistas mencionados representem uma alternativa muito criativa às contradições de uma arte cinética, foi Gego – a figura paradigmática imersa no questionamento total da linha e do plano, da transparência e do invisível – quem contribuiu, na Venezuela, com o contraponto produtivo para a proposta oficial da arte em movimento. Em obras como Vibración en negro (1957), Ocho cuadrados (1961) e La cinta (A fita, 1962), Gego desconstrói sutilmente os principais postulados dos cinéticos. Em suas mãos, os planos são transformados em formas tridimensionais, a matriz se torna uma grade e a linha é liberada como volume para o espaço.
Olhar e Tátil
As duas últimas constelações – Progressão e Ruptura, e Vibracional e Estacionário – produzem um desdobramento particular da experiência concreta e construtiva do objeto artístico, revelando muitos pontos de afinidade dentro e entre a rede resultante. Tal processo é mais explorado aqui como uma tentativa de apreender na própria proposta a utopia da arte sensorial pura ancorada à vista e ao toque. Neste contexto, cada uma das obras escolhidas poderia ser considerada uma entidade autorreferencial, levando-nos às dimensões óptica e háptica da experiência artística (e extra-artística ainda). O conjunto se move, assim, entre séries de polaridades: luz/sombra, material/imaterial, densidade/transparência, linha/volume. Tais núcleos incluem a imaterialidade da luz (Armando Reverón); a síntese analítica e sensorial (Soto, Fontana, Sérgio Camargo e Mira Schendel); o desenho espacializado (Gego); o olhar háptico (Clark e Oiticica); a mobilidade óptica da luz e da água (Le Parc, Palatnik, Kosice), culminando na fisicalidade da luz saturada em cor (Cruz-Díez). A aparente arbitrariedade através da qual o grupo é conjugado mostra uma inegável afinidade entre os próprios trabalhos, reforçando assim como eles ativam o desejo do espectador de compreendê-los tanto em sua realidade material (tátil) como perceptual (óptica).
O ponto de partida para essa articulação são as “pinturas de luz” de Armando Reverón, que se caracterizam por um sutil paradoxo: a relação entre a leveza das pinceladas expondo a materialidade da superfície pictórica e a “desmaterialização” implícita em seu tratamento da luz, luz de fundo, ou sombra. Obras paradigmáticas como El árbol (A árvore, 1931) e Paisaje blanco (Paisagem branca, 1940) evidenciam o despojamento radical de sua proposta. No outro extremo deste espectro estavam manifestações de vanguarda centradas nas qualidades transformativas da água e da luz. Estas vão das pioneiras caixas de néon de Kosice (1946), Mesa circular de agua móvil (1952), Agua girable (Água giratória, 1964) e seus feitios subsequentes na arquitetura de água em movimento Continuel-lumière – mobile (Luz-contínua – móbile, 1960-66) e Mural de luz continua (1967) de Le Parc. A luz como elemento pictórico tinha sido incorporada desde cedo pelas caixas geradoras de cor de Palatnik em sua série Aparelhos cinecromáticos (1949-64). Finalmente, a luz em sua dimensão real permeia o espaço arquitetônico e seu volume na reconstrução da proposição ambiental (específica no local), conhecida como Cromosaturación (1965) de Cruz-Díez, na qual o observador é imerso em um banho somente de cor.
Os polos experimentais postulados por este par de extremos alcançaram outras possibilidades nas propostas de Soto, Fontana, Camargo e Schendel. Na série de vibrações pretas e brancas do “período barroco” (1958-61) de Soto – exemplificado por Vibraciones (1960) e Barroco negro (1961) –, o artista usa as linhas verticais paralelas e o fundo moiré de suas peças anteriores. Contudo, estas agora são feitas à mão, adicionando imprevisibilidade e acidente à interação espontânea de efeitos táteis e ópticos, que não são nem racionais nem mecânicos; são até informalistas. Em outras obras desta série, como Puntos de goma (Pontos de borracha, 1961), a superfície é enriquecida por elementos ópticos e hápticos (tecido, gesso, arame, metal, madeira) que substituem o anonimato frio do acrílico, as paralelas elaboradas mecanicamente e a cor sistematicamente aplicada para uma experiência subjetiva do indivíduo. Desta forma Soto desdobrou a dinâmica visual da peça em direção a uma dimensão perceptual que também é tátil. De outra perspectiva, Fontana profanou a superfície pictórica de seus Concetti spaziali (Conceitos espaciais, série Buchi [Furos], 1949-60) por meio de perfurações concêntricas, cortes e lacerações perpetradas diretamente na tela ou papel. Como as estruturas com molduras recortadas de Rothfuss, o ato de perfurar o plano nesses conceitos espaciais equivale a abrir a obra à dimensão infinita do espaço. A noção da obra de arte como um dispositivo sensorial – simultaneamente visual e tátil – também teve um expoente notável no Brasil. Os Relevos de Camargo (anos 1960-80) operam criando uma massa densa feita de pequenos volumes de madeira em forma de cone que, sob a influência da luz, geram uma vibração óptico-háptica que desafia a exclusividade do visual; ou seja, provocam um efeito óptico tão estranho que também nos convida a tocá-los.
Neste núcleo, duas outras figuras estabelecem contrapontos e semelhanças com as versões radicais desse olhar háptico. Os Objetos gráficos (1967) de Schendel incorporam casos para além do objeto em si para os quais a luz é o único elemento em jogo. Nesses trabalhos, o pulsar luminoso supera o efeito visual (seja da folha de acrílico ou do papel de arroz) de uma forma atraente. Esse traço é mais evidente em peças que reforçam de forma diferente (por meio da transparência do acrílico) um olhar háptico mínimo e serial: Pregável (anos 1970), Disco acrílico do I Ching (1971) e Caderno selos (1971). As investigações de Schendel sobre o potencial preciso das sombras e projeções vindas da placa de acrílico ou do próprio papel tiveram desenvolvimentos simultâneos nas esculturas transparentes e caprichosas de Kosice atravessadas por luz, tais como Espacio (1970). O anonimato do vazio filosófico nestas obras iniciais é, na verdade, apoiado por outras formas de vazio político cuja desolação reflete um fosso social. O vazio – apontando para a exaustão das expectativas – sugere um inegável pessimismo textual que já não está envolvido com o cinético, o didático ou o lúdico. Logo, em todas essas propostas há uma questão radical sobre o desenho sendo colocada por esses transgressores artísticos: nomeadamente, examinando sua obsolescência enquanto traço e se desafiando a uma dimensão de toque que leva ao volume ou à tridimensionalidade. Esta questão crítica emerge no diálogo entre obras como Droguinha (1966) de Schendel ou Dibujo sin papel (Desenho sem papel, 1985) de Gego. Há uma interação nesses trabalhos entre a linha e o desenho, nos quais o elemento em tensão tem de escolher se deve transcender o obstáculo da superfície. Filosoficamente, os pedaços retorcidos de papel de arroz em Mira expressam o desenho inexprimível; no segundo, a linha de Gego abandona o plano para se tornar traço e sombra material que questionam o próprio espaço. Em ambos os casos, a interação dialógica de ausência e presença, olhar e toque, é resolvida como um paradoxo insolúvel.
A síntese de experiências sensoriais que constituem as teorias neoconcretas “baseadas em não objetos” é a base para a proposta óptica-háptica de Clark e Oiticica. A esse respeito, Trepantes (1964), de Clark, funciona como o pictórico que vira objeto em configurações livres, orgânicas e táteis. Para Oiticica, o processo abrange da rigidez de suas construções da série Bilateral à textura não moldada das capas que irrompem na esfera pública metamorfoseadas como Parangolés (1964-70). Estes últimos trabalhos envolvem uma contradição: por um lado, eles se desdobram no plano da experiência do toque e do olhar; por outro, o modo como essa experiência é apresentada já implica uma dimensão conceitual. Por essa mesma razão, algumas dessas propostas foram transferidas para outros diálogos em tensão na próxima constelação. À beira de uma outra abordagem conceitual e ainda no âmbito de outros parâmetros da experiência sensorial, a universalidade da forma – bolas de borracha do mesmo tamanho – é questionada tropegamente em Eureka/Blindhotland (1970-1975) de Cildo Meireles. Nesta ampla proposta, o truque óptico é revelado apenas quando o espectador pega as bolas para descobrir que cada uma tem massa e peso diferentes.
Críptico e Engajado
Dentro da totalidade de (neo)tendências e movimentos de vanguarda reunidos nesta exposição, os artistas e grupos destacados nesta constelação haviam sido, até muito recentemente, amplamente ignorados. No entanto, o equilíbrio crítico dos últimos trinta anos nos permite ver, na utopia conceitual incorporada por esses movimentos, o maior avanço da arte latino-americana no século XX. Foi um impulso em que a inversão absoluta de valores que marcaram a vanguarda na América Latina se transformou no objetivo de produzir um novo espaço crítico desde o qual “pensar” a função da arte nessas e a partir dessas sociedades (Jacoby). Em consequência, a decisão curatorial de situar Waldemar Cordeiro e José Balmes nesta constelação enquanto precursores “protoconceituais” provém de um objetivo mais amplo. A tendência conceitual das pinturas informalistas de texto-e-imagens de Balmes ou dos popcretos de Cordeiro ressalta como o impulso que levou ao surgimento do conceitualismo em nosso continente nada teve a ver com a transição entre o minimalismo e a arte conceitual que moldou o modelo hegemônico anglo-americano. Em vez disso, nossas tendências conceituais foram nutridas por fontes não ortodoxas que oscilam da versão dadaísta do informalismo pictórico promovido pelas colagens de Balmes (série Santo Domingo [República Dominicana], 1965) à série popcretos de Cordeiro (anos 1960), aqui exemplificada por Dollar (Dólar, 1966). De perspectivas opostas ou convergentes, as propostas protoconceituais de Balmes e Cordeiro já anunciam a característica dominante dessas práticas na América Latina: a produção de significado a qualquer custo.
As obras reunidas nesta constelação representam diversas táticas de significação empregadas por esses criadores como parte de seu arraigado questionamento da “função da arte” em sociedades caracterizadas pela repressão, censura e autoritarismo de facto. Nesse contexto terrível, León Ferrari, Luis Camnitzer e Antonio Dias exploram os traços empíricos da linguagem, cada um transformando texto em um suporte para “comunicar novos valores”. Em obras como El cuadro escrito (1964-65) de Ferrari, Common Grave (Vala Comum ,1966-1968) de Camnitzer, ou História (1968) de Dias, a ideia do artista enquanto um “administrador que classifica” os resultados de um programa pré-estabelecido (Kosuth) é invertida em um “organizador de significados” (Ferrari). Da mesma forma, os objetos e as instalações linguísticas de Camnitzer (Execution, 1970) propõem a ideia do ready-made como um “pacote para comunicar ideias”. As séries itinerantes de Alberto Greco, Vivo-Dito (1963), e a mise-en-scène ao vivo de Oscar Bony, La familia obrera (A família operária, 1968), retomam de outro ângulo o problema da intencionalidade do ato criativo originalmente suscitado por Marcel Duchamp. Nessas propostas, o “apontar” ou “circular” de espectadores nas ruas, ou a contratação de uma família da classe trabalhadora para se passar por uma obra de arte “ao vivo” produziu uma crítica acerba à ineficácia da arte enquanto instituição na segunda metade do século XX.
Clark e Oiticica contribuem em outro registro, re/significando táticas centradas no corpo humano como instrumento para basear e projetar experiências táteis e visuais. Essa tendência – cujo enquadramento pode ser rastreado até à constelação Olhar e Táctil – reaparecerá aqui em propostas sensoriais de tendência conceitual, como Caminhando (1963) e Diálogo de mãos (1966) de Clark. De forma semelhante, a série Bólides (Bólide vidro, 1964-65) de Oiticica re/materializa a ideia de cor em um trans-objeto que incita a participação do espectador. As experiências performáticas O corpo é a obra (1970) de Antonio Manuel e as inúmeras Situações (1969-76) propostas por Artur Barrio compartilham com Clark e Oiticica o uso do corpo e dos sentidos como materiais factuais para a proposição conceitual.
Outro alvo dos grupos conceituais argentinos e brasileiros foi a falácia dos mass media. A proposta da Arte Midiática de Massas privilegiou o “ato de transmissão” acima da constituição material da própria obra. O principal objetivo de Prímer manifiesto y obra “Arte de los medios” (1966) de Roberto Jacoby, Eduardo Costa e Raúl Escari, e Fashion Fictions #1 (Ficções de Moda #1, 1966-69) de Costa é denunciar tanto o falso charme da publicidade quanto a suposta veracidade dos mass media. No Brasil, Meireles e Manuel trabalharam em uma proposta paralela destinada a “intervir” nos circuitos “ para efeitos de obter e transmitir informação contracirculante. As proposições conceituais de Meireles, denominadas Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970-75) e Projeto Cédula (Quem matou Herzog?) (1975), consistem em esfregar adesivos em garrafas de Coca-Cola ou carimbar notas em circulação com mensagens subversivas e enviá-las de volta para o circuito geral da rua. Na série de moldes estereotipados de Manuel (Flans, 1968-75), o artista tira partido da matriz de jornais censurados para denunciar ironicamente (nas áreas vedadas), como Meireles, os intelectuais desaparecidos ou torturados na sede da Polícia Federal, assim como a repressão decorrente das ditaduras. Em ambos os casos, eles usam ready-mades para inscrever mensagens e depois devolvê-las à circulação.
Finalmente, todas essas manifestações conceituais chegaram simbolicamente a um clímax em uma ação experimental política conhecida como Tucumán Arde; um grande evento de opinião pública organizado por uma ampla frente de artistas e trabalhadores de Rosário (Santa Fe) e Buenos Aires, onde as complexidades de um circuito contrainformativo estavam em jogo. O grande coletivo Tucumán Arde expôs e denunciou as mentiras difundidas pela mídia nacional sobre as miseráveis condições de trabalho das usinas de cana-de-açúcar no norte da Argentina. Estando na margem tênue entre arte e ação política, o fracasso de curto e longo prazo desse tipo de “experiência limite”[32] tipifica o conflito que, em última instância, afetou esses grupos e movimentos: o modo como ousaram apostar plenamente na utopia vanguardista. Como um bizarro contraponto a todas essas transgressões, os ambientes controlados de insetos e plantas de Luis Fernando Benedit – desenvolvidos desde 1968 e terminando no Fitotrón (Phytotron, 1972-73) – oferecem uma metáfora cáustica de confinamento (microcosmos vegetal de proporções monumentais) para ilustrar o trágico resultado das utopias latino-americanas da última refutação crítica do século: os anos 1960.
Notas
[1] RAMÍREZ, Mari Carmen; OLEA, Héctor et al. Inverted Utopias: Avant-Garde Art in Latin America. Houston/Londres: The Museum of Fine Arts (Houston)/Yale University Press, 2004, 586 p. e 92 documentos.
[2] RAMÍREZ, Mari Carmen; OLEA, Héctor. Versions and Inversions: Perspectives on Avant-Garde Art in Latin America. Houston: MFAH, 2006, 303p.
NdE: Os documentos numerados que aparecem nas notas, estavam no final do catálogo da exposição Inverted Utopias. Hoje é possível consultá-los no site: https://icaadocs.mfah.org/s/en/page/home.
[3] FOUCAULT, Michel. Of Other Spaces. In: DAVID, Catherine; CHEVRIER, Jean-François (ed.). Documenta X: The Book, Politics/Poetics. Organizado por Documenta e Museum Fridericianum Veranstaltungs. Ostfildern: Cantz-Verlag, 1997, p. 262.
[4] Ibid.
[5] São exemplos do tipo de retificação curatorial gerada pelo novo século as exposições Modern Starts: People, Places, Things, curada por John Elderfield e Peter Reed com Mary Chan e María del Carmen González; e Making Choices: 1929, 1939, 1948, 1955, curada por Peter Galassi, Robert Storr e Anne Umland. Ambas foram organizadas pelo The Museum of Modern Art, New York, como parte da série MoMA 2000.
[6] Exposições focalizadas na vanguarda centro-europeia incluem Alison de Lima Greene e Anne Wilkes Tucker, Czech Modernism: 1900-1945 (Houston: The Museum of Fine Arts, Houston, e Bulfinch Press, 1989); e Timothy O. Benson (org). Central European Avant-Gardes: Exchange and Transformation, 1910-1930 (Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art e MIT Press, 2002). Para exposições extraordinárias que contribuíram novos paradigmas para a apresentação de arte latino-americana do século XX, ver MORAIS, Frederico. I Bienal de Mercosul. Porto Alegre: Fundação Bienal de Mercosul, 1997; HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano. XXIV Bienal de São Paulo. Núcleo histórico: antropofagia e histórias de canibalismos. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998; BRETT, Guy. Force Fields: Phases of the Kinetic. Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona em associação com Hayward Gallery, London, 2000; PATERNOSTO, César. Abstraction: The Amerindian Paradigm. Bruxelas: Société des Expositions du Palais des Beaux-Arts de Bruxelles em associação com IVAM – lnstitut Valencià d’Art Modern, 2001. An investigation of this topic must also consider Versiones del Sur: cinco propuestas en torno al arte de América Latina, uma série de cinco exposições consecutivas organizadas pelo MNCARS (Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía em Madrid, 2000). A última incluía Heterotopías: Medio siglo sin lugar 1918-1968 (Ramírez e Olea, curadores); F[r]icciones (Ivo Mesquita e Adriano Pedrosa); Eztétyika del sueño (Carlos Basualdo and Octavio Zaya); No es todo lo que ves: pervirtiendo el minimalismo (Gerardo Mosquera); e Más allá del documento (Mónica Amor e Octavio Zaya).
[7] Ver FIGARI, Pedro. Autonomía regional (1924), documento 7.
[8] SIQUEIROS, David Alfaro. Manifiesto del Sindicato de obreros técnicos, pintores y escultores (1922) In: TIBOL, Raquel (ed.). David Alfaro Siqueiros. Ciudad de México: Empresas Editoriales, 1969, pp. 89-92; RAMÍREZ, Mari Carmen. The Ideology and Politics of the Mexican Mural Movement, 1920-25 (Tese de doutoramento). The University of Chicago (1989), pp. 302-13.
[9] Ver CASANOVAS, Martí. Arte nuevo (1927), documento 15.
[10] Para uma discussão aprofundada sobre as origens e significado deste termo, ver RAMÍREZ, Mari Carmen. Regressive Utopias? (Avant-garde Radicalism in Siqueiros and Oswald). In: HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Adriano. XXIV Bienal de São Paulo: Núcleo histórico, op. cit., pp. 327-35.
[11] SIQUEIROS, David Alfaro. Rectificaciones sobre las artes plásticas en México. Palestra apresentada no Casino Español, Ciudad de México, 18 de fevereiro de 1932. Reimpresso In: TIBOL, Raquel (ed.). Documentación sobre arte mexicano. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1974, pp. 37-52; ver documento 20 neste volume.
[12] Ver ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago (1928), documento 12.
[13] Citado em NUNES, Benedito. Antropofagia ao alcance de todos. Prólogo para Oswald de Andrade, Obras completas, v. VI. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1972.
[14] CLARK, Lygia. Sobre o Ritual (1960). Reimpresso In: BORJA-VILLEL, Manuel J. Lygia Clark. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997, p. 122.
[15]TORRES GARCÍA, Joaquín. La escuela del Sur (1935). Reimpresso em TORRES GARCÍA, Joaquín. Lección 30: La escuela del Sur. In: Universalismo constructivo. Buenos Aires: Poseidón, 1944, p. 213. A ênfase é do próprio autor.
[16] Muitos desses países tiveram movimentos literários de vanguarda extraordinários. Foi o caso do Creacionismo de Vicente Huidobro no Chile, e de César Vallejo para os grupos Amauta e Orkopata no Peru. Em muitos casos, a frequente defasagem entre as manifestações literárias e visuais desse fenômeno pode ser explicada pelas limitações dos recursos especializados e da infraestrutura exigidos pelas artes visuais.
[17] BÜRGER, Peter. Theory of the Avant-Garde (1974). Tradução de Michael Shaw. Theory and History of Literature Series, v. 4. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984.
[18] RAMÍREZ, Mari Carmen. El clasicismo-dinámico de David Alfaro Siqueiros. Paradojas de un modelo ex/céntrico de vanguardia. In: DEBROISE, Olivier (org). Otras rutas hacia Siqueiros. Ciudad de México: MUNAL/CURARE, 1996, pp. 125-46.
[19] Ver RAMÍREZ, Mari Carmen. Rematerialization. In: AGUILAR, Nelson. Universalis: 23ª Bienal Internacional São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1996, pp. 178-89.
[20] Ver ZANINI, Walter. Vicente do Rego Monteiro: artista e poeta, 1899-1970. São Paulo: Empresa das Artes e Marigo Editora, 1997.
[21]ZAMORA, Adolfo. Eduardo Abela: pintor cubano (1928), documento 14.
[22] Débora Arango. Exposición retrospectiva. Bogotá: Banco de la República, Biblioteca Luis Ángel Arango, 1996.
[23] Para uma discussão aprofundada de paródia no que se refere ao trabalho desses artistas, ver: RAMÍREZ Mari Carmen. Cantos Paralelos: Visual Parody in Contemporary Argentinean Art (com textos de Marcelo Pacheco, Andrea Giunta e Héctor Olea). Austin: Jack S. Blanton Museum of Art, The University of Texas at Austin e Fondo Nacional de las Artes, Argentina, 1999.
[24]SANTANTONÍN, Rubén. Hoy a mis mirones (Hoje para meus xeretas, 1961), documento 25.
[25]Ver MORAIS, Frederico. Arte construtiva e desenvolvimentismo. In: Artes plásticas na América Latina: Do transe ao transitório. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979, pp. 88-91.
[26]CLARK, Lygia. Light Line. In: BORJA-VILLEL, Manuel J. Lygia Clark, op. cit., p. 102.
[27]lbid., p. 121.
[28]OITICICA, Hélio. Metaesquemas 57/58. In: Hélio Oiticica. Rotterdam: Witte de With, Center for Contemporary Art, em colaboração com Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, e Projeto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 1992, pp. 27-28.
[29]RAMÍREZ, Mari Carmen. El clasicismo-dinámico, Otras rutas…, op. cit., pp. 130-36.
[30] RAMÍREZ, Mari Carmen. Las masas son la matriz: teoría y práctica de la plástica del movimiento en Siqueiros. In: Retrato de una década: David Alfaro Siqueiros, 1930-1940. Ciudad de México: Museo Nacional de Arte/INBA, 1996, pp. 68-95.
[31]Ver ANDRADE, Oswald de. Aspectos da pintura através de Marco Zero (1944), documento 55.
[32] RENZI, Juan Pablo. Cf. RAMÍREZ, Mari Carmen. Tactics for Thriving on Adversity [Táticas para prosperar na adversidade], neste catálogo.