O discreto charme da geografia: Latino-América, o Arielismo e a Miranda de Buñuel
Sumário | Versão PDF
Cuauhtémoc Medina (2007-2017)
Tradução do espanhol: Julia Buenaventura | revisão: Keila Kern
Fonte: Este artigo é uma versão revisada e editada de um texto preparado para o “Encontro Regional de Arte, (ERA)”, em Montevidéu, Uruguai, e publicado em sua versão original como: “El Discreto Encanto de la Geografía: América Latina y la Miranda de Buñuel ", em: Arte en Tránsito vol. IV, Ediciones Amigos del Museo Blanes, Uruguai, 2007. Esta revisão, com acréscimos significativos, foi preparada para a XIX Cátedra Internacional de Arte Luis Ángel Arango del Banco de la República em Bogotá, Colômbia, em 31 de outubro de 2017.
1. Sobre o combate à “superstição” e outras ficções
Com alguma regularidade, diversos escritores e pensadores do continente vão à mídia ou invadem as salas de conferências para declarar que a América Latina não existe, seja porque as conotações do conceito lhes são hostis ou estranhas, seja porque preferem reafirmar a multiplicidade de suas nações, regiões ou cidades em face da abstração sem nenhum referente aparente de "o latino-americano". Dessa animosidade geográfico-ontológica resulta naturalmente que também não é conveniente falar de arte, literatura ou cultura latino-americanos. Este é um discurso que jorra como fonte e sangue de uma ferida, à menor provocação, não como produto de uma elaboração crítica, mas como parte do que se vocês me permitirem descreverei como a "meteorologia da opinião": a variedade de cadeias de significantes, representações não pensadas, expressões "sentidas" que constituem o recurso inesgotável do bom senso. Frases que sem serem realmente pensadas, “pensam-se” a si mesmas, atravessando corpos e textos. Não é o menor dos paradoxos do caso que fora precisamente Jorge Luis Borges, o mestre das miragens, dos duplos e das ficções, que classicamente quis desacreditar qualquer noção de América Latina como mero embuste, através do mecanismo ilustrado da denúncia da superstição e as enteléquias:
Yo no creo que Latinoamérica exista. Pienso que es una especie de haraganería, de comodidad […] Hablar de América latina es una generalización que no corresponde a la realidad. Latinoamérica es una superstición y la literatura latinoamericana otra superstición. Acá en el Sur, nosotros nunca pensamos como latinoamericanos. En lo que hace a mí mismo, me considero como un argentino, no como un brasileño, un colombiano o un uruguayo. No quiero decir que sea mejor ser argentino que ser brasileño, colombiano o uruguayo. Lo que quiero decir es que nunca pienso que soy un mexicano.[1]
É fascinante ver que um autor que tão radicalmente se tornou, através das transmissões de Roger Caillois e Michel Foucault, o referente da subversão da naturalidade das classificações, e quem melhor representa a instabilidade dos referentes e das figuras da narração, apareça nessa e em outras afirmações semelhantes tão orientadas para opor aparência e ser, miragem e sentimento, quando o que está em jogo é “o sentir-se” em relação à dicotomia da suposta intangibilidade da geografia cultural e da segura solidez da afiliação ao estado-nação. Deparamos com uma ilha inesperada no arquipélago Borges (nada alheia à tendência liberal recente das letras de língua espanhola: a terra firme do que eu gostaria provisoriamente de chamar de "real- nacionalismo").
Como acontece na declaração do próprio Borges, e em muitas fórmulas semelhantes de escritores da região, negar a “América Latina” não resulta em uma crise compulsiva identitária, mas permite afirmar a verdade do sentimento patriótico positivamente distinguível contra outras afiliações nacionais que não sucumbem à atração gravitacional da emoção. Diz Borges com uma segurança reconfortante: “Considero-me como um argentino… nunca penso que sou um mexicano. No contexto dessa redistribuição de credos identitários, operar, como alguns de nós, em torno do espectro da “arte latino-americana” seria, francamente, render-se à promoção de um primitivismo.
É neste plano, onde os fantasmas deixam rastros e têm peso, que convém nos concentrarmos. Borges utilizou com estranha frequência, principalmente no exercício de gênio que o escritor cego deu ao gênero da entrevista, a noção de "superstição" para se referir a uma espécie de devoção cultural menor, circunscrita ou falsa, derivada de um mau julgamento estético localista e, portanto, incomunicável e carente de verificação literária: “Gabriela Mistral é uma superstição chilena. Do mesmo modo que Valéry é uma superstição francesa”[2]. Há também sua clássica boutade sobre a democracia: “É uma superstição muito difundida, um abuso da estatística.”[3]. É, além do mais, reveladora a tensão sobra a verificabilidade dos ancestrais que mobiliza seu jogo verbal sobre a paternidade do patriotismo: “A pátria é um ato de fé […] A maternidade é evidente, a paternidade não. Talvez devêssemos chamar ‘mátria’”.[4] Estou convencido de que grande parte da satisfação produzida pelos paradoxos e ironias de Borges verbal e escrito consistem curiosamente nos atos linguísticos de uma espécie positivista lógico potencial, que muitas vezes parece demonstrar as armadilhas da linguagem em favor da restauração de evidências compartilhadas do bom senso inato. Para nosso efeito é especialmente significativo o modo como, a certa altura, o jogo de Borges ofereceu o sacrifício do culto a Goethe como antídoto à ortodoxia da religião da nação: “Goethe é uma superstição alemã e tenho pensado também que as nações elegem seus clássicos como uma espécie de antidoto, como um modo de corrigir seus defeitos.”[5]
Não é preciso muita audácia investigativa para entender que a batalha dessa epistemologia do sentimento de filiação não foi, como quase nada, nas palavras de Borges, uma expressão inocente. É um discurso entre outros discursos, que joga uma dialética e uma polêmica sobre as representações que se dão em tensão com outras intervenções, as aluda ou conheça à letra o falante. É muito útil contrastá-lo com uma réplica não inteiramente distante no tempo, que se encontra, não por acaso, na boca de outro argentino chave nas guerras de guerrilhas do século XX. Refiro-me, naturalmente, ao Comandante Ernesto Che Guevara em seu discurso perante a Assembleia das Nações Unidas de 1964, onde o delegado da Nicarágua apontou para seu sotaque argentino, objetando que tivesse falado em nome dos cubanos:
Soy cubano y soy argentino también. Y si no se ofenden las ilustrísimas señorías de latinoamérica me siento tan patriota de Latinoamérica, de cualquier país de Latinoamérica, como el que más y, en el momento en que fuera necesario, estaría dispuesto a entregar mi vida por la liberación de cualquiera de los países de Latinoamérica, sin pedirle nada a nadie, sin exigir nada, sin explotar a nadie.[6]
Não é preciso ser viciado no Che (personagem que, confesso, nunca foi para mim particularmente cativante) para reconhecer que essas palavras não foram ditas em vão e, portanto, entender que a ontologia de sentimentos e superstições que exploramos teve e tem consequências para outras decisivas, porque embora sejam desenhadas no campo da opinião e da literatura, e retrabalhadas na retórica e na arte, podem, em última instância, vir a ser resolvidas por meio de sangue e balas. Estaremos condenados a essa dicotomia e forçados a reconhecer nas transações com "o latino-americano" uma espécie de cripto-guevarismo do patriotismo generalizado, que em última instância deve ser marcado pelo contrato do heroísmo fracassado do internacionalismo do sacrifício? E o quê acontece com o espaço de enunciação de operadores artísticos e críticos, a fortiori temos que escolher entre abraçar com fé militante a última opção essencialista da identidade do subcontinente (o projeto da revolução guevarista, o modelo do real-maravilhoso e a equiparação de latino e anti-imperialista, com a telecomédia e a radionovela do neo-bolivarismo), e a oferta neoliberal de afirmação pragmática do estado-nação pré-existente como arma dos mercados multinacionais globais, agora contra a “mentira” de “particularismos ”? Qual pode ser o lugar de uma cultura crítica, se é que é possível nesta questão, neste emaranhado de representações e identidades?
Certamente, consciente ou ignorantemente, nós, intelectuais, continuamos a cumprir essa tarefa de construção ideológica. Ao contrário do que supunham os apologistas da globalização neoliberal há algumas décadas, a "questão nacional" tornou-se um campo de formações culturais e políticas de uma intensidade que merece toda a nossa cautela. Como evidência, terrivelmente simbólica, temos o papel combativo que Vargas Llosa teve recentemente na defesa da unidade do reino da Espanha, e a curiosa troca onde, ao apresentar um livro de diálogos com o escritor espanhol-limenho, o professor tapatio-bostoniano Rubén Gallo descreveu-o como "o Goethe de nosso tempo":
Questão. Como se sente alguém que foi chamado de Goethe de nossa época?
Resposta. Kkkkk. Sobrecarregado! Rubén é um bom amigo, generoso. Acreditar-se Goethe é melhor do que acreditar-se Napoleão!
(Rubén Gallo afirmou: “Eu disse isso brincando, mas é verdade que, assim como Goethe vê a História com letras maiúsculas, Mario vê Literatura com L maiúscula” E Vargas Llosa apontou “é verdade que a literatura deve ser pensada com L maiúscula porque enriquece a vida, torna uma sociedade capaz de ver o que está errado para que não viva na mentira, como a que está vivendo a Catalunha, onde os jovens se deixam enganar por uma ideia que lhes foi vendida como excitante e extraordinária. A boa literatura neutraliza a mentira".).[7]
“Eu disse isso brincando”... Rubén Gallo diz em sua auto-cantinflada, mas já vêm que nada do que é dito é brincadeira. Quero sugerir, contra o que se pretende como flerte inconsequente, que a relação entre "acreditar-se Napoléon e acreditar-se Goethe" é apenas uma questão de divisão do trabalho, entre aqueles que imaginam nações ou impérios passando sobre aldeias ou nações, e aqueles que reforçam essas enteléquias com administradores e soldados.
Mencionemos, sem elaboração, é claro, que o encontro de Napoleão e Goethe em 1808, e a maneira como o imperador converte Goethe à sua causa, para depois lhe conceder uma Legião de honra que Goethe carregou em seu peito até a morte, são um dos capítulos principais da política de formação da Europa como um conjunto de Estados-nação. A frase culminante dessa conversa, o dictum de Napoleão a Goethe, "Política é destino", ainda se aplica diretamente ao nosso assunto. Sem tomar partido na questão dos nacionalismos espanhol e catalão, o que ficará evidente para qualquer observador é que a noção de uma "Literatura com maiúscula" sugere justamente aquele momento em que a "cultura" torna-se "perigosa" e além disso eficiente, no que diz respeito à definição de fronteiras, cidadãos, estrangeiros, amigos e inimigos, uns e outros, com uma eficiência que levanta o véu da sua aparente inocência. Assim escreveu Mario Vargas Llosa em El País no mesmo dia do referendo na Catalunha em 30 de setembro de 2017:
Nada puede estar más reñido con el provincianismo racista y anacrónico del nacionalismo que la gran tradición cultural bilingüe de Cataluña, con sus artistas, músicos, arquitectos, poetas, novelistas, cantantes, que estuvieron casi siempre a la vanguardia, experimentando nuevas formas y técnicas, abriéndose al resto del mundo, asimilando lo nuevo con fruición y propagándolo por el resto de España. ¿Cómo encajan un Gaudí, un Dalí o un Tàpies con un Puigdemont y un Junqueras? ¿Y un Pla o Foix o Marsé o Serrat o Cercas con Carme Forcadell o Ada Colau? (...)
Hay que tender puentes primero, reconstruir los que se han roto. Y ésta es una labor esencialmente cultural. Convencer a los menos fanatizados y recalcitrantes que el nacionalismo —todo nacionalismo— siempre fue una epidemia catastrófica para los pueblos que sólo produjo violencia, incomunicación, exclusión y racismo, y que, sobre todo en esta época de globalización universal que está deshaciendo poco a poco las fronteras, es suicida querer resistirse a este proceso enormemente beneficioso para toda la humanidad. Y explicar que España necesita a Cataluña tanto como Cataluña necesita a España para integrarse mejor en la gran aventura de Europa y perseverar —perfeccionándola sin tregua— en esta democracia que ha traído a este país unas condiciones de vida que son las más libres y prósperas de toda su historia.[8]
Aqui, como você pode ver, os intelectuais e escritores estão trabalhando com o giz de cera em uma de suas principais tarefas: a definição sentimental das fronteiras, a redução do espírito a um ou outro estado-nação, a um ou outro projeto de hegemonia, acompanhando o trote de um ou outro Napoleão com os versos e excitações de sua pena. Recrutar ou fazer desertar as figuras imaginárias de seus referentes no campo político real consistiu em grande parte de sua função histórica moderna. O que abre o problema de como não ser mais um Goethe.
2. Our Man in Miranda
Existe uma maneira de escapar dessas dicotomias, onde sentimento e afiliação aparecem como garantia implícita ou explícita da "verdade" das fórmulas de identidade nacional? Que figura pode permitir nos distanciarmos dessa competição de religiões e superstições, entre essencialismo e patriotismo, que assume o carácter provisório e tático, senão dissoluto e crítico, das nossas transações com a representação cultural, sua geografia e estereótipos? Na falta de uma ontologia a afirmar, uma possibilidade muito promissora é agarrar-se ao potencial de exterioridade ao senso comum que o campo da estética oferece, conforme continuamente se afirma. Pretendo usar uma determinada obra de arte, na verdade um filme clássico, para explorar suas cenas como se fossem os fragmentos críticos que proponham um espaço menos determinado por uma fechadura dupla.
Minha primeira cena são duas sequências do clássico filme de Luis Buñuel com o qual ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1972: O discreto charme da burguesia.[9] Trata-se propriamente de variação sobre um mesmo tema: a impossibilidade (e a impertinência) de representação. O mal-entendido (e o sobre-entendido) que no filme provoca a tentativa de apurar a verdade sobre um país-superstição latino-americano: a honorável República de Miranda.
Com efeito: no meio do enredo de cíclica frustração gastronômica, sexual e de classe que Buñuel retrata em O discreto charme da burguesia, um curioso quadro de miragens interculturais é desenhado. O protagonista do filme, interpretado por Fernando Rey, é Dom Rafael Costa, embaixador da República de Miranda na França: um diplomata que contrabandeia cocaína e tenta ao mesmo tempo apaziguar e seduzir os jovens guevaristas que tentam sem sucesso executá-lo ou sequestrá-lo em nome de uma implícita justiça popular. O ângulo que me interessa compartilhar se encontra na coincidência de dois mal-entendidos. Em duas ocasiões da história, a meio caminho entre a realidade paranoica e a ilusão do sonho, o embaixador enfrenta um questionamento de sua condição de "mirandense" que subverte a diplomacia das trocas banais que prevalecem nas recepções e coquetéis da elite. Na primeira, que se realiza entre o embaixador Costa e o bispo (que, por sinal, também é um transformista, que finge vestir e agir como um jardineiro), uma falha de representação se manifesta, onde Miranda perde toda a distinção para se tornar um mero palimpsesto de clichês geográficos e turísticos latino-americanos:
Bispo: Estou satisfeito com o encontro. Você sabia que temos uma missão importante em Bogotá?
Embaixador: Bogotá está na Colômbia, Monsenhor.
Bispo: É verdade. Perdoe-me pela confusão. Não conheço a República de Miranda, mas ouvi dizer que é um país magnífico. Cordilheira dos Andes, Pampa ...
Embaixador: Os pampas estão sim na Argentina ..., monsenhor.
Bispo: Aham! Você tem razão. Las Pampas, é claro. No entanto, você deve saber. Recentemente li um livro sobre a América Latina. Havia algumas fotos magníficas de suas pirâmides antigas ...
Embaixador (surpreso): De nossas pirâmides?
Bispo (impassível): Bem, sim.
Embaixador (envergonhado): Aham... não temos pirâmides em Miranda. Existem no México e na Guatemala…, mas não no meu país.
Bispo (fingindo uma leve surpresa): Tem certeza?
Embaixador: Com certeza.
(Discreto charme, 48'40 "/ 49'53")[10]
Ao fundir os Andes, os pampas e as pirâmides maias, o bispo traça um mapa da confusão colonial: o olhar do europeu que não dá às ex-colônias substância suficiente para não acabar condensando-as em uma mistura tuttifrutti de estereótipos latinos. A irritação do embaixador decorre de reconhecer a insignificância de sua função perante um representante de uma dupla universalidade que é um bispo francês, o modo como sua nacionalidade resulta, senão invisível, fungível, intercambiável, indistinguível. A cena de Buñuel é mais do que uma paródia da experiência muito comum da falta de substância que os estados-nação pós-coloniais e sua cultura têm aos olhos dos antigos colonos. Se Miranda é a miragem, é porque o primeiro objeto de contrabando que atinge os pós-coloniais é a imitação colonial do próprio Estado-nação: tendo importado uma estrutura de dominação fundada na domi(nação) de uma etnia sobre outras desde a ficção do projeto comum, localizada em certos símbolos da cultura e da ficção. O humor da cena de Buñuel reside, é claro, em ilustrar a desilusão daqueles que encenam a história da identidade transformada em soberania, ao registrar que seu caráter periférico faz com que os próprios símbolos onde processam a identidade nacional se tornem significantes flutuantes e arbitrários. O que Buñuel põe em cena é, evidentemente, um discreto charme burguês: ter sucumbido ao feitiço da identificação produzido pela ficção da nação.
Mas se ver repentinamente confundidos os sinais da suposta unicidade que garante a representação nacional oferece um momento melancólico, é ainda pior que o embaixador da identidade nacional latino-americana se depare com a brutalidade da realidade mirandeira. De fato: em uma sequência posterior, o embaixador sonha que está em uma recepção, e os demais convidados o atormentam com perguntas indiscretas sobre a realidade social de Miranda. Um assalto que Costa tenta primeiro repelir com evasivas, mas depois se torna tão intolerável que o embaixador tenta escapulir-se. O quadro composto, fica claro, é um compêndio dos conflitos sociais de um continente conturbado:
Senéchal: Recebeu alguma notícia de Miranda? […]
Embaixador: Absolutamente bem; tudo calmo.
Senéchal: E... os guerrilheiros?
Embaixador (divertido): Ainda restam alguns. Eles fazem parte do nosso folclore. […]
Sra. Sénéchal: (ao embaixador) Diz-se que você tem um problema com os estudantes.
Embaixador: Bem, os estudantes são jovens. Eles precisam poder se divertir um pouco [...] Nós, sabe, não somos contra os estudantes. Ao contrário. Mas o quê você faz quando se depara com uma sala cheia de moscas? […] Pega a raquete e paf! ... paf! […]
Bispo (avançando com o embaixador): Ah, reluto em acreditar que o abismo entre os pobres e os ricos aumenta a cada dia, Excelência ...
Embaixador (muito calmo): Claro que não, enganaram você [...] Nosso país está em plena expansão econômica [...]
Comandante: E a corrupção administrativa? [...] Por exemplo, diz-se que no seu país é comum comprar um juiz ou um policial.
Embaixador: Em outras ocasiões, pode ser. Houve casos ... como em qualquer lugar. Mas hoje somos uma verdadeira democracia e a corrupção não existe...
(Discreto charme 1,08'16 "/ 1,12" 51 ')[11]
De fato, na trama, chega um ponto em que o assédio é excessivo, e o embaixador acaba desafiando seu anfitrião, um coronel, para um duelo, ofendido pela imagem de corrupção que atribui a Miranda. O que é interessante é a duplicidade colocada por esses diálogos: o primeiro fantasmagórico, na medida em que nenhum país latino-americano adquire distinção suficiente para o olhar do centro; o segundo tragicômico, por envolver as falsificações evasivas e ideológicas que uma elite local cria sobre a violência e a anomia do território que governa. Esse intervalo entre o que é mal compreendido e o que é bem compreendido é certamente o espaço representativo da América Latina.
Temos aqui uma dupla reação que oferece enquadrar “o latino-americano” de um ponto de vista que não seja a afirmação ou a negação de um ou outro espaço geográfico de identidade. Por um lado, o continente surge como o espaço significado pelas temáticas estéticas, históricas e culturais da identificação, como referente de uma afeição patriótica. Essas particularidades fetichizadas aparecem invisíveis ao olhar: são objetos de consumo sem a pretensa profundidade que têm para os membros locais de seu culto. Os referentes da “cultura nacional” (paisagem, antiguidades, o espírito de certas cidades, etc.) que dão cobertura simbólica aos regimes existentes aparecem como mera arbitrariedade: um conjunto de traços perfeitamente intercambiáveis. Por outro lado, de forma mais ampla, o continente tem um significado compartilhado, historicamente acordado: o estereótipo de uma deriva pós-colonial: o espaço recorrente de repressão, corrupção, falência administrativa e incompetência perpétua. É compreensível que para as elites latino-americanas esse sentido seja insuportável: sua tarefa de construção da identidade, principalmente se envolve a produção de alta cultura, é maquiar aquele cadáver, na esperança de fazer aparecer o equivalente mimético da metrópole.
Onde, então, está a realidade dessas identidades nacionais a que se referia Borges, que deveriam contrastar com a ficção do "latino-americano"? Aqui, como em muitos casos, existe uma barreira clara entre ficção e realidade: no sentido de que Borges não se engana na metáfora cartográfica de seu famoso conto Del rigor de la ciencia (1946) em El hacedor (1961), a imaginação, de fato, monta um mapa do Império inscrito no território numa escala de um para um e que depois sobrevive apenas como ruínas, é uma figura que se conforma a pensar no mapa que a cultura inventa no espaço simbolizado da dominação. Certamente seria difícil pensar que um conto cartográfico escrito logo após a Segunda Guerra Mundial não escondesse, em algumas de suas costuras, alguma consciência de como os mapas são desenhados na história.
Pois, com efeito, existe uma maneira extremamente simples de distinguir as cartografias fictícias das reais, como vemos o tempo todo. O que fornece ao Estado-nação sua "realidade" (digamos, sua condição apodítica) é pura e simplesmente que ele porta uma arma e a tem carregada. O “problema” de identidade e integridade que acompanha cada Estado-nação, como podemos ver agora mesmo no caso da Catalunha, é finalmente resolvido por meio da coerção: o sistema educacional, a imposição de um corpo simbólico comum, e em último recurso, a "intervenção patriótica" da lei e das forças armadas. Se a República de Miranda se materializou de forma inequívoca, apesar de seu caráter nebuloso em termos de cultura, foi respondendo com energia a qualquer questionamento sobre sua hegemonia. Quando se questiona sua identidade ou realidade, ao contrário de entidades provisórias como a "América Latina", a coisa é simples: pega-se "o mata-moscas", como diz o embaixador Costa, e depois paf: "as moscas acabaram".
É neste intervalo, entre uma imagem promocional e cultural não concretizada plenamente e a brutalidade da realidade política específica, que a Miranda de Buñuel sugere uma possível concepção de América Latina que, ao que me parece, mitológica e praticamente, surge como uma tábua de salvação. Ao contrário do nacionalismo diluído dos latino-americanos modernos, Buñuel não cede sua filiação simbólica a um determinado Estado-nação, mas negocia uma relação fantasmagórica com a região, por meio da ficção de Miranda. A América Latina, ou a "Miranda", surgiria assim como um espaço definido por duas forças negativas, quase como se criassem o campo do eletromagnetismo necessário para estabilizar uma partícula antiatômica: a relutância diante de qualquer colaboração com o aparelho de propaganda, afirmação cultural e a promoção turística do Estado-nação, bem como a necessidade de se responsabilizar pelo seu conteúdo como território de brutalidade histórica. Em vez de implicar uma filiação cultural e política, ou a promessa de uma redenção meta-nacional exigida de nosso sacrifício patriótico, a América Latina apareceria aqui como o espaço dessa dupla negação, o referente de um desconforto crítico apontado pelo embaixador da muito digna República de Miranda na frase com que tenta fugir ao questionamento de seus anfitriões: "Parece-me que este não é o lugar para mim" ... Não a "utopia" reinterpretada pelo século XX como um telos temporal (uchronia) na terra, mas efetivamente o apontamento de um espaço e simbologia que recusam qualquer identificação que não seja "um lugar para mim".
3. Genealogia do naufrágio
Buñuel costumava proteger suas imagens e histórias da desgraça das explicações. Assim como se recusou a explicar o que havia na caixa barulhenta e misteriosa que o mais perverso dos fregueses do bordel de Belle de jour [A bela da tarde] carregava, caixa que levou Catherine Deneuve a inexplicáveis territórios de prazer, nem em Meu Último Suspiro, nem em entrevista alguma, considerou revelar os motivos pelos quais nomeou como “Miranda” o país que Rafael Costa representou em O discreto charme da burguesia. No entanto, a figuração que Buñuel ofereceu não é isolada: na verdade, constitui um arquipélago de metáforas.
Em 1980, o poeta chileno Enrique Lihn publicou uma espécie de romance feito de fragmentos descontínuos e paródicos, que retratava um encontro grotesco de escritores e poetas em um país ainda mais grotesco, justamente a República Independente de Miranda. Localizando-a em algum lugar nas margens do Caribe, entre a Venezuela e as Guianas, Miranda é retratada por Lihn como um arquétipo: "a estrutura mínima a que respondem nossas petites républiques", aqueles "grandes pântanos estaduais onde fomos condenados a sobreviver sombriamente”.[12] Uma realidade marcada por uma ditadura disfarçada de paternidade perpétua, onde a insuficiência ontológica se mantém à tona através da repressão, da insularidade e da demagogia. Miranda aparece na obra de Lihn ao mesmo tempo como mônada, como sinédoque e como metáfora para todo o subcontinente: “um lugar que é ao mesmo tempo inexistente e real que explica todos os outros – suas variantes – espelhando-se na totalidade do subcontinente, que poderia mesmo participar de uma dupla propriedade aparentemente contraditória, a do realismo inexistencial”.[13] O Estado fictício serviu a Lihn como um meio de expor não apenas a vergonha política continental dos anos 70 e 80, mas a pequenez acadêmica dos letrados regionais.
Não está claro para mim, entretanto, se Lihn tirou o nome de sua república e todo seu "realismo inexistencial" do filme de Buñuel. Na verdade, não é um fato decisivo. É em Lihn, talvez, que devamos ir em busca da confirmação que Buñuel não oferece: o fato da República de Miranda ser o terceiro elo na genealogia da A tempestade de Shakespeare. Pelo menos é isso que Lihn põe na boca do Protetor Vitalício da república em um discurso magno não completamente alheio à retórica de Perón, Castro ou Chávez:
El Estado homófono de Venezuela puede llamarse también Miranda, pero asegura que se llama así en homenaje al general venezolano Francisco Miranda, semilibertador de su país. Como vuestro presidente vitalicio, ciudadanos, y después de largo y maduro examen, puedo aseguraros que los primeros y únicos habitantes y pobladores de nuestro país –ya fueren los corsarios ingleses o los corsarios franceses, sus rivales– bautizaron a Miranda con el nombre de ese personaje de La tempestad de Shakespeare, el de la hija bellísima de Próspero, el desposeído duque de Moran, símbolo de la ingenuidad y de la pureza de corazón.[14]
É curioso que até hoje não encontrei nenhum estudo que questionasse o nome que Buñuel deu à sua fictícia república sul-americana. Só recentemente encontrei uma menção infundada a essa alusão em uma crítica de um autor não identificado no site de informações sobre filmes Imdb[15]. Se assumirmos a linhagem que Lihn propõe, a República de Miranda passa a adquirir um peso crítico muito mais amplo. Deve ser considerada a terceira vez em uma cadeia mitológica que, ao longo do século XX, definiu o caráter um tanto persecutório da identidade latino-americana moderna. Em 1900, José Enrique Rodó escreveu em Ariel um verdadeiro manifesto do criollismo humanista latino-americano, que é concebido como um último refúgio do espírito hispânico e do orgulho racial diante da aparente ameaça da civilização industrial e pragmática dos Estados Unidos. Num texto abertamente xenófobo, impregnado de terror pelos novos imigrantes europeus e por toda a desconfiança patriótica possível devido ao surgimento de toda a vulgaridade da sociedade democrática e sua “tirania dos números”, Rodó apelou ao espírito alado de Ariel de A tempestade para chamar a juventude aristocrática latino-americana a se conceber como uma hierarquia intelectual e artística, uma verdadeira “seleção de elite”. O espírito latino é convocado por Rodó a participar de uma construção dicotômica. Se Ariel teve uma influência contínua por quase um século na literatura e no pensamento latino-americanos, é por causa da maneira como ele formulou, para a esquerda e para a direita latinas, a estrutura de oposições profundas que enfrentava o latino e o norte-americano. Tratava-se de definir o latino-americano moderno como uma barragem contra a barbárie moderna, continuamente ameaçada pela “deslatinização”:
…los Estados Unidos pueden ser considerados la encarnación del verbo utilitario. Y el Evangelio de este verbo se difunde por todas partes a favor de los milagros materiales del triunfo. Hispano-América ya no es enteramente calificable, con relación a él, de tierra de gentiles. La poderosa federación va realizando entre nosotros una suerte de conquista moral […] Es así como la visión de una América deslatinizada por propia voluntad, sin la extorsión de la conquista, y regenerada luego a imagen y semejanza del arquetipo del Norte, flota ya sobre los sueños de muchos sinceros interesados por nuestro porvenir, inspira la fruición con que ellos formulan a cada paso los más sugestivos paralelos, y se manifiesta por constantes propósitos de innovación y de reforma. Tenemos nuestra nordomanía. [Sem nota ao pé no original]
Rodó confiava na continuidade das tradições religiosas e hierárquicas dos crioulos para evitar a democracia como a “entronização de Calibã”, através do cultivo da arte. Segundo Rodó, caberia à alta cultura impedir que com a democracia se estabelecesse a vulgaridade material dos Estados Unidos. Este projeto aristocrático, é claro, constitui o elemento de fundo do modernismo hispano-americano.
Essa construção não foi de fato substituída, mas apenas reforçada, através de uma reescrita revestida de anti-imperialismo e pós-colonialismo, pela esquerda pró-cubana da segunda metade do século XX. Em 1971, em Calibán, Roberto Fernández Retamar tentou corrigir Rodó para incorporar uma identidade diferente, a de "nossa América mestiça", no centro da construção da América Latina, entendida por ele como o processo de extensão da Revolução Cubana pelo continente. Embora Fernández Retamar inverta os protagonistas de A tempestade, para fazer de Calibã o descendente libertário dos canibais e escravos africanos, ele deixa intocado o maniqueísmo do arielismo de Rodó: a formulação dicotômica que define o intelectual de América Latina como o agente da resistência e contenção dos norte-americanos, em vez de servir a Próspero, como faziam os supostos intelectuais do continente.[16] Mais recentemente, o resgate de Fernández Retamar em Calibán foi repensado por Silvia Federici em um célebre livro sobre a continuidade da acumulação original nos corpos e sabedorias de mulheres e grupos colonizados, Calibã e a bruxa, cujo enredo depende de imaginar o que estaria envolvido se Shakespeare, em vez de aludir a Calibã, aludisse a uma conspiração contra a colonização europeia personificada pelas bruxas banidas na Europa, simbolizadas por Shakespeare na referência a Sycorax. O resultado, segundo a autora, seria expor a forma como o capitalismo moderno saqueou e disciplinou o corpo feminino e a natureza em um gesto contínuo de colonização e exação.[17]O fato de Miranda estar praticamente ausente naquela interpretação feminista de A Tempestade, além da menção de sua antipatia por Calibã e da defesa que Próspero faz diante dela para preservar a escravidão e a besta colonizada[18], ainda é interessante nesta circulação contínua de figuras míticas que o livro de Shakespeare espalha entre os intérpretes do destino americano.
Para ser justo, tanto Rodó quanto Fernández Retamar e Federici responderam em sua reescrita de Shakespeare a uma estrutura muito profunda, alojada no próprio nome do subcontinente. Se no século XIX as ex-colônias espanholas passaram a ser chamadas de América Latina, foi como parte de uma transferência do discurso Latino/católico vs. Nórdico/protestante do Romantismo e Nacionalismo Francês. Quando o colombiano José María Torres Caicedo elabora o termo “América Latina” em meados do século XIX, provavelmente no poema Las dos Américas, de 1856, ele o faz em uma campanha para denunciar a oposição radical entre a América Latina e a América Saxônica, que lutava para igualar os conflitos "raciais" e religiosos em ambos os lados do Atlântico. O papel das elites crioulas (a "raça latina da América") consistiria – pensava Torres Caicedo – em conter o expansionismo americano que se expressara na invasão do México em 1847-1848. Certamente, a invasão do México teve o efeito de colocar em crise a identificação que as jovens repúblicas liberais sentiam pelos Estados Unidos. Consequentemente, para Torres Caicedo era necessário estabelecer uma nova filiação europeia, fundada em pensar o gigante do norte como uma ameaça bárbara, protestante e nórdica determinada a questionar a civilização transplantada para América Hispânica.
Este conceito original de "América Latina" viria a ser expresso em termos práticos na experiência fracassada dos conservadores mexicanos de introduzir um monarca austríaco no México com o apoio de Napoleão III, e que trouxe o breve reinado de Maximiliano de Habsburgo durante a intervenção francesa, entre 1862 e 1867. É, então, o terror que define desde o início o conceito de “América Latina”, dentro de uma política racial-religiosa que entendia a batalha entre o Norte e o Sul como uma campanha de “aniquilação”. Torres Caicedo escreve assim em 1858:
En el nuevo mundo y principalmente en la América española [se asiste a la] lucha entre la raza anglo-sajona que habita casi todo el Norte, y la raza latina que se extiende casi en los demás puntos del continente. Por lo que se ha visto en California, la raza anglosajona, apta para desarrollar los intereses materiales, para hacer progresar el suelo, sólo atiende al aniquilamiento de su raza rival.[19]
Já temos aqui de forma embrionária o discurso arielista-calibanesco do século XX, incluindo a divisão entre materialismo e ideal em termos raciais. Esse é um binarismo que os intelectuais latino-americanos acham extremamente difícil renunciar, mesmo quando duvidam da existência da "América Latina". Não se dão conta de que "América Latina" é, antes de tudo, o efeito conceitual de longo prazo daquela construção de identidade que foi desde o início uma formação reativa diante do expansionismo estadunidense.
No entanto, as evidências do projeto imperial do norte não são suficientes para sustentar essa construção político-cultural. Tanto Ariel como Calibã são figuras de identificação: modelos do intelectual orgânico latino-americano presididos por uma noção de soberania cultural e identitária que, como todo anti-imperialista que se concebe a si próprio, tem um efeito local imediato: preservar o território de dominação das elites latinas. Com efeito, tanto em sua versão arielista quanto na calibanesca, o latino-americanismo tem sido antes de tudo o discurso de justificação do exercício messiânico da soberania nacional do Sul e a expectativa de uma produção cultural voltada para o reforço do particularismo nacionalista. Uma característica decisiva da Miranda de Buñuel é que escapa da possibilidade de identificação. Seu funcionamento é meramente crítico. Requer ser compreendida desde já ancorada em um jogo de ficções e construções, feitas a partir e na frente do Ocidente, em cumplicidade, tensão e perseguição. Surge como expressão de uma dupla repulsa, tanto pelos discursos de propaganda da identidade turística do sul, quanto pela violência autoritária.
3. Goethe no trópico
Não devemos esquecer que um importante papel que a arte do final do século XX e início do século XXI desempenhou na América Latina, em sua oscilação entre ironizar os discursos impossíveis de peculiaridade cultural e transmitir grosseiramente o imaginário da violência social e política da região, baseou-se em ter querido ir além dos termos da construção arielista-calibânica da identidade cultural. Deixa de ser uma constante atribuir à arte e à cultura regional demostrar fidelidade à existência da suposta "cultura própria" em constante diferenciação diante de uma outra suposta "cultura norte-americana", ao contrário, costuma-se envolver no relato as intersecções culturais, econômicas e políticas de realidades não menos injustas por seu caráter híbrido, mas que também não tendem necessariamente a uma homogeneidade global sem distinções. Por um lado, grande parte da arte latino-americana negocia com naturalidade sua genealogia e referências em relação à arte recente norte-americana e europeia. Ao mesmo tempo, nunca houve tanto esforço acadêmico, museológico e crítico em transmitir e consolidar as referências propriamente latino-americanas da arte moderna e contemporânea, sob o entendimento de que as questões colocadas pelo neoconcretismo ou Madí, a influencia da obra de Torres García ou Diego Rivera, ou a relevância crítica dos textos de Oscar Masota ou Gerardo Mosquera são ingredientes necessários para a autoconsciência da cultura contemporânea. Diante da diferenciação do território identitário da arte latino-americana, grande parte do esforço curatorial e acadêmico dos últimos anos optou, ao invés, por defender a relevância da história cultural do subcontinente por meio da divulgação: buscando a maior irradiação e contágio possíveis.
Isso significa que, apesar do incômodo do termo para seus críticos e praticantes, as manifestações da chamada "arte latino-americana" hoje têm extraordinária pregnância. É evidente a existência de um circuito regional e de um campo de atuação muito mais sólido e material do que as construções mais modestas do tipo "arte mexicana", "arte fluvial" ou mesmo a noção de "arte". Raramente se percebe o grau em que a arte latino-americana é o circuito artístico transnacional mais definido e estruturado do mundo, muito mais sólido e eficaz como território institucional, comercial e discursivo do que noções como “arte africana” ou mesmo “arte europeia”. Eu chegaria ao ponto de afirmar que a América Latina é a única região transnacional que realmente existe em circuitos globais, tanto como mercado regionalizado, como motivo de pesquisa universitária, quanto como meta-história curatorial e crítica: enquanto a noção de "arte latino-americana" tem muitos mapas e ruínas sólidas que a envolvem, a contrapartida do conceito de “arte europeia” não se faz em nenhuma instituição ou projeto, exceto na Bienal Manifesta, que surgiu justamente pela inexistência desse conceito regionalizado. Na verdade, não existe nenhuma outra rede regional que envolva uma energia coletiva semelhante: na América Latina há uma variedade de instituições e dispositivos sociais muito diversos, incluindo museus e coleções específicas (Malba, Coleção Cisneros, ICA no Museu de Belas Artes de Houston, UECLA na Universidade de Essex, LAAC na Tate, etc.), bienais e mostras panorâmicas regionalizadas (da Bienal do Mercosul a Havana, passando por São Paulo, o Pacific Standard time LA/LA promovido pelo Getty em Los Angeles neste 2017), departamentos e faculdades dedicados ao seu ensino de forma sistemática em ambos os lados do Atlântico, uma série de publicações e genealogias intelectuais que convocam o consenso de especialistas (Duas décadas, Além do fantástico, Heterotopías , Cartografias, etc.), alguns leilões anuais na Sotheby's e Christies e um circuito crítico e acadêmico que se manifesta, como uma espécie de partido subterrâneo, em encontros, simpósios e congressos que acontecem em algum lugar do mundo a cada três ou quatro meses. Se, seguindo Borges, decidíssemos que a arte latino-americana é uma superstição, teríamos pelo menos de admitir que a extensão de suas práticas bárbaras e a dedicação de seus sátrapas a tornaram uma realidade prática. Um fetichismo, sim, mas firmemente estabelecido em pequenas capelas, com certos poderes e um bom número de sectários.
Com certeza, estamos diante de um problema de identidade, que se enquadra na natureza da representação política e cultural, e das afiliações derivadas da identificação na qual a hegemonia está enraizada. Não se trata aqui de nenhum exame de "consciência", ou de alguma formulação que pudesse ser resguardada na suposta psicologia dos povos. Pelo menos quando se trata de arte contemporânea, a "América Latina" é uma agência eficaz. Mesmo assim, é bastante evidente que a referência "América Latina" não é uma coisa estável, autônoma e constituída, à qual se possa aplicar uma metafísica da existência material e da universalidade lógica. Não serviria a ninguém (mais do que para argumentar zombeteiramente com paradoxos) querer fazer uma lista de "características" latino-americanas, perseguir na mestiçagem, na tropicalidade e muito menos o barroco, algo como a "essência do Latino-americano", ou com a intenção de construir um "tipo ideal" latino-americano no estilo de Max Weber. Aliás, Gerardo Mosquera tem razão ao afirmar que a "neurose de identidade" da arte latino-americana não é mais um motivo artístico ou crítico fecundo na produção da cultura.[20] A divagação angustiada de provar que a gente chegou de fato ao nosso "ser latino-americano", a aparente epopeia de ajustar o próprio ser a esse ideal ausente, é uma questão que está em vias de se tornar obsoleta, provavelmente porque as hegemonias que a resguardavam também estão em declínio.
Sendo assim, que validade pode haver em usar o termo "latino-americano"? Como validar sua operação quanto ao uso de expressões como "arte latino-americana" sem cair na dicotomia do arielismo? É aqui que, implicitamente, vem em nosso socorro a elaboração do discreto charme da geografia que Buñuel nos oferece.
Voltemos nossos olhos à prédica do embaixador da República de Miranda: sua incapacidade de fazer prevalecer o conceito apologético de seu Estado-nação diante da indefinição da representação impressionista da América Latina e seu pesadelo de não poder resgatar a reputação de sua república da evidência de sua brutalidade sociológica. O que está em jogo aqui é a competição entre dois fantoches de representação, mas que apresentam uma diferença fundamental: a "América Latina" não goza das vantagens da constituição do Estado-nação e, nessa medida, carece do aparato de interpelação através do qual os Estados extraem de nós uma lealdade cultural por meio de leis, violência e da persuasão da ideologia.
Vamos reverter o assunto momentaneamente. Não será possível que, se nossos argumentos sobre a cultura latino-americana guardam certo brilho utópico, isso ocorra pela espectralidade do termo, precisamente porque não somos capazes de definir uma realidade fixa que os acompanhe e nos faça sentir “latino-americanos”? Uma vez que deixamos o arielismo-calibanismo para trás, será que nossa (des)lealdade à monstruosa Miranda reside justamente em saber que estamos presos entre as deformações de seus estereótipos e a violência de suas realidades? Será que o estado de indeterminação irônica de uma América Latina onde perdemos a diferenciação das elites criollas nos parece um não-lugar bom suficiente onde podemos estar e não estar, ao contrário do embaixador Costa? Que o que torna possível o falar em "arte latino-americana" seja que ela não serve de salvaguarda ou dispositivo de interpelação para um Estado-nação específico, a ponto de cairmos na gargalhada ao nos reconhecermos no ridículo de ser mirandenses?
Pois então, no final das contas, a “América Latina” nada mais é do que uma nacionalidade fracassada, ou seja, um processo cultural e político de formação do Estado que permaneceu inconcluso e indeterminado. Porém, fixado (ainda que interrompido e frustrado) no imaginário. "Latino-américa", "Ibero-América", a "Gran Colombia", ou simplesmente "América" , foi aquele Estado que, desde a época de Bolívar, Torres Caicedo, Rodó e demais membros da elite hispano-americana sonharam, como qualquer outra nação, criada e imaginada artística e intelectualmente à espera de se materializar com uma determinada produção política, que nunca se concretizou. Daí o caráter supersticioso do conceito de "América Latina": trata-se, na verdade, de um fantasma sem referente corporal.
Para entender o que é esse espírito volátil, basta imaginar o que teria acontecido se, por exemplo, a Alemanha ou a Itália nunca tivessem se tornado Estados, e os textos de Goethe não tivessem sido nada além de uma "superstição" jamais efetivada, descrevendo uma comunidade ausente tanto como a poesia de Neruda ou os diagramas de Torres-García. Teriam sido os marcadores de uma infinidade de contextos simbólicos possíveis, os quais seriam, no entanto, impossíveis de fundamentar. Não porque em si as nações e suas culturas tenham uma gama mais essencial de existência, mas porque sua suposta evidência e sacralidade carecem ser constantemente reforçadas e reproduzidas por estruturas educacionais, discursos midiáticos, sistemas judiciais e discursos artísticos.
Procuro aqui explicar-me porque é tão insatisfatório descartar o termo "América Latina" quanto continuar a abraçá-lo como um ideal político: simplesmente sua falta de substância é um ponto de partida melhor do que assumir "nossas" culturas nacionais. Sempre que pensado como Miranda: um território ambíguo e opaco onde se cruzam muitas narrativas e projetos, na negociação impossível entre o ridículo do estereótipo e a brutalidade da realidade.
Notas
[1] Borges citado por Isidoro Blaisten, “Latinoamérica: el humor de los poetas”, suplemento “Cultura” de La Nación, Buenos Aires, 8 de junho de 2002. (Disponível em: http://www.lanacion.com.ar/Archivo/Nota.asp?nota_id=221835). A citação provavelmente vem da entrevista de A. Oppenheimer y J. Lafforgue “El pensamiento vivo de Jorge Luis Borges”; Siete Días, nº 310, Buenos Aires, abril de 1973.
[2] Ver BRAVO, Pilar y Mario PAOLETTI. Borges verbal. Buenos Aires: Emecé Editores, 1999, p. 171.
[3] Ibid., p. 69.
[4] Ibid., p. 148.
[5] Ibid., p. 94.
[6] “Ernesto Guevara: Réplica a la intervención del Delegado de Nicaragua en la Asamblea General de las Naciones Unidas en uso del derecho de réplica”, 11 de dezembro de 1964. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9ZzWHGMh_1U
[7] CRUZ, Juan. “Mario Vargas Llosa: “Cataluña retrocede a un provincianismo sin pies ni cabeza””, El País, 20 de setembro de 2017. Disponível em: https://elpais.com/cultura/2017/09/20/actualidad/1505936187_367529.html
[8] VARGAS LLOSA, Mario. “La hora cero”, El País, 30 de setembro de 2017. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2017/09/29/opinion/1506690046_114565.html
[9] BUÑUEL, Luis (dir.). Le Charme discret de la burgeoisie (O discreto charme da burguesia) (1972), Greenwich Film (França); Jet Film (Espanha); Dear Film Produzione (Itália), 101 min., cor. Edição em DVD: The Discreet Charm of the Bourgeoisie (1972), The Criterion Collection, 2002.
[10] BUÑUEL, Luis (dir.). Le Charme discret de la burgeoisie (O discreto charme da burguesia) (intr. de Michel Delain), Barcelona, Aymá S.A. Editora, 1972, pp. 71-72. Agradeço muito a Álvaro Villalobos, que generosamente me cedeu uma cópia deste roteiro que não estava acessível nas bibliotecas mexicanas.
[11] Ibid., pp. 96-101.
[12] LIHN, Enrique. El arte de la palabra. Barcelona: Pomaire, 1980, p. 92.
[13] Ibid., p. 95.
[14] Ibid., p. 239.
[15] Escreve o comentador “tiopaulcwr” em sua resenha de 9 de setembro de 2005: “The Ambassador from some obscure Latin American country ('Miranda', or 'wonder', a nod to Shakespeare), supports this little microcosm of comfortable Parisian bourgeois respectability with cocaine smuggled in diplomatic pouches.” Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0068361/reviews
[16] RETAMAR FERNÁNDEZ, Roberto. Todo Calibán. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO, 2004, p. 64.
[17] FEDERICI, Silvia. Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y acumulación originaria (trad. Verónica Hendel y Leopoldo Sebastián), Madri, Traficantes de Sueños, 2010, p. 164.
[18] Ibid., p. 187.
[19] ARDAO, Arturo. América Latina y la latinidad, México, Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM, 1993, p. 215.
[20] MOSQUERA, Gerardo. “Spheres, cities, transitions. International perspectives on art and culture”, em Art-e-fact. Strategies of Resistance, nº 4. Disponível em: http://artefact.mi2.hr/_a04/lang_en/theory_mosquera_en.htm.