Da crítica como produtora de teorias à socialização da atividade crítica
Frederico Morais (1979)
Fonte: Livro. Frederico Morais, Artes plásticas na América Latina: do transe ao transitório. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
Texto originalmente em português
Que a América Latina está na moda, todo o mundo sabe: europeus, norte-americanos, até mesmo nós, latino-americanos. As razões são várias, algumas, infelizmente, francamente desfavoráveis. Em duas décadas, o mapa político e econômico do continente mudou muito. Para pior. Da falência do modelo desenvolvimentista chegamos às mais variadas formas de ditadura, em alguns casos acompanhadas de milagres econômicos, tricampeonatos, TV em cores etc. Porém, o nosso tema não é o boom das ditaduras, tampouco o da literatura, mas o das artes plásticas.
Estar na moda não significa reconhecimento. Muitas vezes o boom é provocado artificialmente, quase nunca por nós, mas por eles, para suprir seus próprios fracassos, compensar deficiências criativas, como pretendemos mostrar mais adiante quando analisarmos as grandes bienais internacionais. Geralmente, a menção à América Latina vem acompanhada da questão da nossa identidade. Quer dizer, foram eles, euro-norte-americanos, que formularam, para nós, a questão: quem somos nós, latino-americanos? Pergunta que, naturalmente, nunca fizeram a si próprios, porque, na sua autossuficiência, se consideram únicos, acima de qualquer suspeita.
Assim, enquanto estivermos discutindo a nossa identidade, estaremos incentivando a visão deles, euro-norte-americana. A esta altura do debate, já podemos dar a volta, assumir a nossa diferença, que é plural. E preciso superar tanto a “neurose da dependência”, como lembra Damián Bayón, quanto a neurose da identidade, que vem sempre associada ao debate sobre a América Latina. Marta Traba, no Primeiro Encontro lbero-Americano de Críticos de Arte e Artistas, realizado em junho de 1978, em Caracas, referiu-se a uma “saturação e utilização oportunista do termo”, insistindo na necessidade de se aproveitar o boom para precisar conceitos.
Reafirmava, assim, Juan Acha, que no Simpósio de Austin, promovido pela Universidade do Texas, em 1975, lembrou não se tratar “de uma busca de nossa identidade, mas da busca da autoconscientização de nossa identidade, que não é a europeia e de tipo ocidental, ou seja, unitária, mas plural”. Trata-se, portanto, de colocar, como preocupação primeira, a formulação de teorias capazes de explicar e fazer avançar nossa produção artística.
E isto já começa a ocorrer. Há uma intensificação do debate crítico e do intercâmbio de ideias a partir da segunda metade da década passada, como consequência da realização de vários simpósios, mostras de caráter continental, publicação de revistas especializadas e livros, que passaram a examinar a arte latino-americana à luz de novos enfoques teóricos, colocando, assim, em circulação novos conceitos que estão permitindo analisar nossa produção artística em termos mais abrangentes. Da constatação da ausência de movimentos críticos em nosso continente (Octavio Paz, em texto lido no Simpósio de Austin) se passou à defesa da crítica como produtora de teorias. Esta crescente movimentação teórica já está permitindo o agrupamento por tendências, conforme se dê mais ênfase aos aspectos internos ou externos da obra de arte. Uma crítica mais preocupada com a gênese da obra de arte, com a autonomia ou especificidade do fenômeno plástico visual, tende a ser substituída por uma crítica ideológica. Ou seja, há uma nova geração de críticos que propõem a socialização da atividade crítica, visando possibilitar a máxima assimilação dos valores estéticos, uma crítica que, sem desprezar o gesto criador, aquele que funda a obra de arte, está mais preocupada com a inserção da obra no meio social, com o controle dos meios de distribuição e do consumo da produção artística.
Como foi dito acima, a partir da segunda metade da década passada, cresceu consideravelmente o número de livros assinados por historiadores, críticos e mesmo artistas, que enfocam o desenvolvimento interno da arte nos vários países do continente. Entre outros, podem ser citados os de Raquel Tribol, Historia general del arte mexicano – Época moderna y contemporánea (México, 1969); Ida Rodríguez Prampolini, El surrealismo y el arte fantástico de México (México, 1969); Aldo Pellegrini, Panorama de la pintura argentina contemporánea (Buenos Aires, 1967); Jorge Romero Brest, El arte en Argentina (Buenos Aires, 1969); Ogarte Elesperu, Pintura y escultura en el Perú contemporáneo (Lima, 1970); Mirko Lauer, Introducción a la pintura peruana del siglo XX (Lima, 1975); Mário Pedrosa, Mundo, homem, arte em crise (São Paulo, 1975); Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22 (São Paulo, 1970); Frederico Morais, Artes plásticas: A crise da hora atual (Rio, 1975); Ferreira Gullar, Vanguarda e subdesenvolvimento (Rio, 1969); Roberto Pontual, Arte brasileira contemporânea/Coleção Gilberto Chateaubriand (Rio, 1976). Além de alguns importantes catálogos, temos, na década de 1960, o livro de Thomas Messer, The Emergent Decade, datado de 1966, o qual, entretanto, assume uma postura eminentemente jornalística em documentário fotográfico acompanhado de uma troca de correspondência entre o autor e vários críticos do continente. Deste modo, pode-se dizer que apenas na década atual, aparecem as primeiras obras que procuram estudar a arte latino-americana como um todo. Refiro-me aos livros de Gilbert Chase, Contemporary Art in Latin America; de Leopoldo Castedo, Historia del arte y de la arquitectura latinoamericana; de Marta Traba, Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latino-americanas – 1950-1970 (Ed. Siglo Ventiuno, México, 1973 – a tradução brasileira, da Paz e Terra, é de 1977); de Damián Bayón, Aventura plástica de hispanoamérica (Breviarios Fondo de Cultura Economia, México, 1973); América Latina en sus artes (Unesco/Ed. Siglo Veintiuno, 1974), reunindo textos de vário especialistas, tendo como relator o mesmo Damián Bayón, que também reuniu em livro, El artista latinoamericano y su identidad (Monte Ávila, Caracas, 1977), as comunicações e debates do Simpósio de Austin; de Jorge Romero Brest, Política artístico-visual en Latinoamérica (Ed. Crisis, Buenos Aires, 1974), e Néstor García Canclini, Arte popular y sociedad en América Latina (Grijalbo, México, 1977).
Vamos analisar, a seguir, esta produção teórica.
América Latina: utopia?
Líderes da crítica latino-americana nas décadas de 1950/1960 em seus países, o argentino Jorge Romero Brest e o brasileiro Mário Pedrosa reveem hoje suas posições.
Diretor da Academia Altamira, juntamente com Petorruti e Lucio Fontana, fundador da revista Ver y Estimar (1948-1965), Jorge Romero Brest dirigiu o Museu Nacional de Belas Aries (1955-1963) e, a partir de 1963, o setor de arte do Instituto Torquato di Tella. Teórico e animador cultural, Brest formou toda uma geração de críticos em seu país e no continente. Talvez tenha estimulado outros criadores e o próprio ambiente cultural argentino mais pelo que fez do que pelo que pensou e escreveu. De qualquer maneira, num caso e noutro, sempre encontrou oposição, inclusive daqueles que formou. Porém, ele mesmo diz: “Sou suficientemente sereno para ter paciência e esperar que os bastiões da reação caiam”. No livro Ensayo sabre la contemplación artística (Eudeba, 1966), no qual se dirige “ao contemplador comum”, diz “que seu juízo artístico funda-se no exame fenomenológico da consciência artística”, segundo o que intencionalmente se mentalizou com as imagens criadas, sem descuidar do papel do inconsciente na formação e contemplação das mesmas”. Prossegue desenvolvendo estas ideias na introdução de seu novo livro El arte en la Argentina (Paidós, 1969): “A arte não é nem um fenômeno de repetição, como supõem alguns, nem um epifenômeno”. À produção dessas imagens atípicas chama de “consciência de imaginar”; considera, porém, valiosas apenas as obras de arte que “incitam a imaginar, sem deter o processo de criação nem o de contemplação, que é outra maneira de criar”. Contrariamente, considera “sem valor as obras que incitam a deter esse processo, fazendo com que pareçam definitivas as realidades imaginadas, ou as coisas materiais que as concretizam”. A partir daí, analisa a evolução da arte argentina tomando como marco inicial o ano de 1945, ou seja, quando surgem as tendências construtivas, às quais deu seu apoio, inclusive promovendo, em 1953, mostra dos artistas concretos argentinos no Rio (Museu de Arte Moderna) e em Amsterdã, que ele mesmo apresenta, dizendo entre outras coisas: “Que ninguém estranhe, pois, se nos quadros aqui expostos, as linhas são precisas, e se, nos tons francos e íntegros, até a cor adquire precisão, e os espaços ganham um sentido preciso na sua infinidade. Que ninguém estranhe se o volume tende a desaparecer nas esculturas, até o material se transformar em sinal de estrutura espacial. Porque também há uma sensibilidade precisa, uma emotividade precisa, e uma fantasia precisa. E nada autoriza supor que a sensibilidade só se manifesta através das imprecisões, as quais os românticos nos tinham acostumado”. Analisa outras tendências, inclusive a nova figuração, concluindo seu percurso com o fechamento do Instituto Torquato di Tella, devido ao radicalismo crescente das “experiências” ali realizadas. À frente do Instituto, Brest apoiou ostensivamente a vanguarda. No livro, não apenas descreve muitas dessas “experiências” (denominação que passou a empregar de preferência à arte de vanguarda, esclarecendo que “queria acentuar o aspecto potencial da criação como instrumento de conhecer e não como mero antecedente do conhecimento”) esclarecendo que nelas a nota comum “era a preponderância do fenômeno sobre o objeto”. Diz Brest que as “experiências” de Buenos Aires e Rosário não foram nem podiam ser construtivas, pois não propunham novas soluções ao problema do que se pode criar, mas, ao assinalar situações carregadas de sentido social ou político, serviram como detonante para desarticular o movimento artístico na Argentina. Sua conclusão é de que “não é fácil abandonar o campo do Imaginário para entrar no da ação. Digo mais, não é conveniente, já que, não obstante a necessidade de trocar o sentido da criação artística, ela não deve desaparecer”.
Política artístico-visual en Latinoamérica, título do livro que publicou em 1974, no qual Rita Eder (Artes Visuales, México,1976) assinala “graves inconvenientes na sua análise das classes sociais na América Latina”, mesmo se considera “válida e estimulante, no plano da utopia, sua grande concepção de uma arte a serviço de uma nova sociedade latino-americana”. Com efeito, diz Brest, essa política não é nem de esquerda nem de direita (refere-se a uma “superação de ideologias”), e diz respeito muito menos às obras e muito mais a uma “modificação de conduta” do artista, no sentido mais amplo de uma “busca da nova qualidade” e de “uma consciência nacional e latino-americana”. E o caminho para se alcançar esta consciência (lento em nível nacional, muito mais lento em nível continental) é “extremar, mais que a informação recíproca, a comunicação direta entre as pessoas”.
Brest não pretende destruir a cultura burguesa: “Ela foi burguesa quando devia ser e no nível sociológico, mas é universal no nível ontológico”. Mário Pedrosa, porém, no seu texto “Arte hoy, hacia donde? Manifiesto para los Tupiniquins e Nambas” (Artes Visuales, abr./jun., 1976), diz que na civilização do consumo “a arte propriamente dita perdeu para sempre sua autonomia existencial e naturalmente espiritual”, tornou-se para “os burgueses imperialistas um capricho caro, que se consome a si mesmo, indiferente a tudo mais”. E o resultado da evolução da arte nos grandes centros, da aceleração dos ismos, e sobretudo de sua chegada à body-art, é um cul de sac perfeito: “O ciclo da pretendida revolução fecha-se sobre si mesmo, o que resulta é uma regressão patética sem retorno: decadência. Aceitar a morte como inevitável, em nome da saturação cultural e da invencível irracionalidade da vida”.
A alternativa para este “beco sem saída” da arte de vanguarda internacional é a América Latina, o Terceiro Mundo. Por quê? Pedrosa responde com uma tese, já antes esboçada pelo poeta chileno Vicente Huidobro: a arte como um quarto reino, como parte da natureza. “A arte, nesses rincões, tem suas raízes na natureza e em tudo que a ela pertence: terra, pedras, arvores, animais. Aí o que é natureza é já cultura, e o que é cultura ainda natureza, mas não se confundem e menos ainda se fundem...”. A conclusão de Pedrosa é que “a tarefa criativa da humanidade começa a trocar de latitude. Avança agora pelas áreas mais amplas e dispersas do Terceiro Mundo”. “Puro visionarismo?”, pergunta Pedrosa, e responde: “Dá no mesmo”. “Que estas ideias são utópicas”, observa Brest, “eu admito. Às utopias cabe um importante papel em épocas como a nossa”.
A crítica como produtora de teorias
Dois dos ensaios mais conhecidos de Juan Acha, crítico peruano residindo hoje no México, “La necesidad latino-americana de un pensamiento visual independiente” e “Hacia una crítica del arte como productora de teorias”, ilustram bem seu pensamento atual, como também a monografia “Las artes plásticas como sistema de producción cultural” (Escuela Nacional de artes plásticas, volume 3, número 10). Acha que a crítica latino-americana precisa criar sua própria teoria, independentemente dos artistas e de suas obras. Neles, procura descartar, um a um, preconceitos fortemente arraigados. Primeiramente, a importância da história da arte. Diz: “até 50 anos, a história da arte foi pródiga em teorias, mas hoje prefere refinar as já existentes a modificá-las”. Ademais, “a história da arte nos dá a conhecer a sucessão, no passado, dos produtos artísticos, mas não que é a arte como fenômeno sensível e, afinal, social. Deixou de ser a melhor instância para conhecer o específico da arte”. Em seguida, afirma que a estética “nos comprova que não é indispensável partir da obra de arte para gerar teorias relativas à produção artística”, ou seja, ela não pode “ser considerada como um simples epifenômeno da obra de arte”. É independente e autônoma. Como criadora de teorias, a crítica deve evitar duas premissas tomadas da história da arte, seus dois pecados originais: “O artista como sujeito e a obra como objeto indiscutível do fenômeno estético”. Observa ainda que "o artista forma parte do sistema, arranca de algum ponto do mesmo e, queira ou não, maneja ideias preestabelecidas sobre a arte. Na realidade, as obras dos artistas, em sua grande maioria, são meros resultados do sistema, isto é, simples aplicações do mesmo, assim como consequência do momento histórico, já que estão longe de ser criações propriamente ditas. O verdadeiro criador, escasso por natureza, transforma o sistema e, ao mesmo tempo, o continua. Por tudo isso, caberia tomar o sistema de produção pelo verdadeiro tema da arte”. Sua conclusão é que nossos críticos devem “passar de conhecedores de arte a produtores de conhecimentos artísticos”, sobretudo porque “hoje, mais do que nunca, a América Latina, da mesma maneira que outros setores do Terceiro Mundo, necessita produzir teorias eficazes para transformar e nutrir nossas aspirações e ações”.
Aplicando estas ideias ao exame de um tema específico, Juan Acha, em um dos textos que compõem o livro El geometrismo mexicano (Universidade Nacional Autônoma do México, 1977), ao caracterizar o caminho que vai da arte concreta ao minimalismo, e daí à arte conceitual, sustenta “que não é a obra de arte que gera ideias, mas o contrário”, “o artista converte-se em crítico e teórico de arte”. “Na América Latina, cuja produção artística nunca esteve acompanhada de teorias nascidas e amadurecidas em seu solo, o geometrismo poderia reverter estas tendências e iniciar uma nova etapa”.
Traba + uma arte de resistência
Em outro extremo, Marta Traba lidera a corrente historicista, de base sociológica ou francastelista, ou seja, entende que as obras de arte não devem ou não podem ser encaradas como objetos isolados, ideais, como algo desprendido da História. O processo artístico, no seu entender, está atado ao processo histórico, é parte da luta social dos povos, integra o processo de afirmação nacional e/ou continental. Neste sentido, Traba vem analisando os movimentos nacionalistas nos anos 1920/1940, com o objetivo de localizar as primeiras reformulações de uma arte latino-americana, não aquilo, diz ela, “que foi apenas um desejo patriótico, como em José Martí, mas uma formulação mais sistemática do que pode ter sido um pré-modelo de arte latino-americana. Em nosso continente, alguns artistas, atuando como instintivos realizadores de uma ideia, formulavam seus modelos do que poderia ser uma arte latino-americana, ao mesmo tempo que, por exemplo, Mariátegui, no Peru, trabalhava com um suposto modelo. No seu entender, é preciso trabalhar simultaneamente as obras e as concepções ideológicas, que se foram manejando ao lado delas. Os primeiros resultados dessa pesquisa aparecem agora na forma de uma comunicação, de 44 páginas, apresentada no Simpósio de Caracas, com o título “La tradición de lo nacional”. Segundo Traba, “a tradição do nacional gera, em cada lugar, uma conceituação distinta. Certas linguagens favorecem uma arte nacional de emergência (Terceiro Mundo) contra uma arte nacional de essências e sínteses (países desenvolvidos). A arte nacional de emergência não apenas coloca um problema ontológico, mas também reveste funções práticas e não está muito distante de ser uma forma de ativismo. O estudo da arte continental em suas diversas etapas permite verificar até que ponto a soma de ativismos permitiu reconhecer modalidades peculiares de expressão”. Com habilidade, Traba aproxima a noção de nacional com seu conceito de resistência. Será necessário, pois, analisar seu livro anterior e mais conhecido, Dos décadas vulnerables..., pois nele temos a síntese do seu pensamento sobre a América Latina, centrado no conceito de resistência. Para Traba, “a tecnologia, habilmente convertida em ideologia para aqueles que necessitam manejá-la como instrumento de poder, penetrou a unidade cultural da sociedade de consumo e a atomizou”. Para a crítica e historiadora argentina, hoje residindo em Caracas, o resultado mais ostensivo da “tecnologia ideológica” sobre as artes plásticas é o que denomina de “estética da deterioração”. A questão, diz, “consiste em não durar e em não estabelecer pauta alguma: a arte já não se preocupa em ser uma forma de conhecimento; quer se converter em uma forma de impacto. Não há o que compreender, mas ‘ver’, não há o que totalizar, mas fragmentar, não há que pensar, mas receber, não há que refletir, mas aceitar”. E esta arte fragmentária, de puro impacto, circense, que quer se impor à América Latina. Entre nós, entretanto, sobretudo nas chamadas “áreas fechadas”, de desenvolvimento endógeno, nas “zonal del silencio”, onde o mito impera, vive-se ainda um tempo mítico e circular, diferente do conceito europeu de tempo ou da destruição do tempo na sociedade do desperdício. É preciso, portanto, impedir a invasão do nosso continente por estas “vanguardas no vazio”. Resistir. No Simpósio de Austin, Traba foi mais enfática ao afirmar que “o processo da arte moderna e atual, começando por Paris e logo depois Nova York, serviu incondicionalmente a um projeto imperialista, destinado a desqualificar as províncias culturais e a unificar os produtos artísticos num conjunto enganosamente homogêneo, que tende a fundar uma cultura planetária. No seu entender, essa cultura global e planetária move-se dentro de limites nítidos: “produção incessante de arte de consumo, liquidação do conceito de arte como ficção, acusando-o de anacronismo e escalada do terrorismo das vanguardas”.
Este conceito de resistência tem todas as possibilidades, por seu caráter panfletário, de obter sucesso junto a certas plateias latino-americanas. Pode mesmo tornar-se um clichê, assim como a imagem heroica de Che Guevara transformou-se em “clichê” na iconografia da arte latino-americana dos anos 1960 para cá. Lá mesmo em Austin, tive oportunidade de questionar o conteúdo algo maniqueísta da resistência de Traba. Ao exemplificar seu conceito, ela demonstra seus compromissos com um tipo de arte defasada e superada, comprometida com o mercado e recuperada pelo sistema. Simplificadamente, resistir, para ela, a realizar uma pintura figurativa ou levemente abstrata, é praticar o desenho (“desenhar significa uma renúncia explícita a fazer pintura, escultura, objetos, happenings, ambientes, propostas, reconstruções, a dar pistas e aceitar jogos malabaristas. Significa, por conseguinte, uma renúncia ao impacto como sistema, ao espetáculo como resultado e a sua gratificação subsequente por parte da sociedade de vanguarda que contrata o circo”), um certo tipo de grafismo erótico, a nacionalizar a pop-art norte-americana. Apesar da veemência verbal, a resistência de Traba sugere passividade. Ou, mais do que isso, a manutenção de um certo tipo de arte pode corresponder a uma espécie de imobilismo político e social, ou de subdesenvolvimento artístico. A mesma atitude daqueles que, ao defenderem a “pureza” das formas artesanais da arte popular, defendem, ao mesmo tempo, uma sociedade retrógrada, a miséria e o desnível social. Porém, na longa entrevista que realizei com Traba em Caracas, publicada em 0 Globo (22/08/1977), ela sugere que o caminho da resistência é polissêmico, ou seja, tem diferentes significados, e estes não são exclusivamente políticos. Se são mais frequentes na arte de resistência os artistas figurativos, é resistente, também, um “artista que mantém ao longo de sua obra um ponto de vista que vai aperfeiçoando e sobre o qual as modas não incidem”.
De qualquer maneira, as discordâncias em relação à tese de Traba não lhe tiram o mérito, enorme, de ter sido uma das primeiras a operar um conceito global e abrangente sobre arte latino-americana. Claro, não concordo com esta visão apocalíptica que ela tem da arte de vanguarda.
Nesta década, mais reflexiva e menos ativista que a anterior, tem-se falado muito no fim das vanguardas, principalmente depois da automutilação de Rudolf Schwarzkogler, um dos integrantes do Grupo de Viena, em 1969. Argumento capcioso, semelhante ao empregado por aqueles que procuram negar a importância fundamental do Futurismo devido à adesão de Marinetti às ideias fascistas. Seria o mesmo que tentar impedir toda a aventura espacial (e o que ela significa como estímulo à imaginação tecnológica) com o argumento de que os enormes gastos aplicados na construção de foguetes poderiam ser mais bem empregados em projetos voltados para a erradicação da miséria e da fome em todo o mundo. Os desvios sadomasoquistas de uns poucos artistas não podem anular a contribuição trazida pela arte do corpo, assim como os suicídios de Janis Joplin, Jimmy Hendrix, James Dean, Van Gogh, Jackson Pollock, Mark Rothko ou Artaud não anulam a importância de sua contribuição à música, ao cinema, ao teatro e à pintura.
A polaridade México/Argentina
Como Traba, Bayón integra a geração formada sob a orientação de Romero Brest e, como ela, estudou na França com Pierre Francastel. Bayón, entretanto, não adere nem às posições formalistas nem às posições sociologistas e, diferentemente de seus dois conterrâneos, não participa do entusiasmo do primeiro pela arte de vanguarda (que hoje, como vimos, tende a negar, resvalando para a utopia) nem do entusiasmo da segunda por uma arte de resistência. Como sugere o próprio título de seu livro, Bayón optou pelo tom narrativo e descritivo, desenvolvendo-se como uma viagem, melhor, em sucessivas viagens, tendo como meta ora o Norte, ora o Sul, com longas paradas, surpresas, encantamentos, raros momentos de irritação (o indigenismo de Sabogal) e, vez por outra, maior expansividade nos elogios: o cinetismo argentino e venezuelano.
O período que Bayón se propõe a estudar em seu livro é o de 1940 a 1972. Contudo, retrocede até a década de 1920, época do despertar da América Latina para o Modernismo, despertar que corresponde à sucessão de eventos sociais e políticos, a começar pela Revolução Mexicana de 1910. Desde logo, fica patente que, nos países de maior tradição pré-colombiana – como México, Equador, Peru e Bolívia –, o folclore e o indigenismo constituem preocupação constante para os artistas, como também a cultura negra. Destas observações iniciais, Bayón parte para o levantamento de polaridades: ao Norte, o México, com o muralismo estendendo seus tentáculos aos países vizinhos, ou mesmo procurando penetrar, via Siqueiros, no Chile e na Argentina; ao Sul, a Argentina, vocacionalmente europeia e internacionalizante. Aquele, devido ao muralismo e ao indigenismo, revela uma prevenção contra o forâneo, exatamente simétrica e contrária à adesão sul-americana ao que vem de fora. Mas, observa que “nem tudo era muralismo nacionalista no Sul”. Em vários capítulos, insiste na polaridade: na Argentina, diz, “a expressão artística foi essencialmente moderna desde 1920, enquanto no México foi arcaica umas tantas décadas mais, a arte ali estando a serviço dos valores sociais e ideológicos, ou seja, o motor será sempre político, racial, reivindicativo. Em outro sentido, no México, o primeiro muralismo constitui uma criação original, enquanto na Argentina, à sua maneira, e dentro de uma perspectiva histórica, o racionalismo representa uma verdadeira invenção”.
Mudando sempre o método de abordagem, como ele mesmo reconhece, Bayón percorre o continente, assinalando, seja na área andina, seja na América Central, os nomes mais expressivos, os “cabeças de série”, que para ele são Pettoruti e Torres García, nos dois lados do Rio da Prata; Obregón e Botero, na Colômbia; Szyszlo, no Peru; Carlos Mérida, na Guatemala; Wifredo Lam, em Cuba; e Tamayo, no México. Da análise dos pintores isolados ou agrupamentos, passa à caracterização de tendências. Uma dessas é a arte fantástica, expressiva sobretudo no México, e a outra é a arte construtiva. Bayón diz que a abstração lírica, ou sensível, como prefere denominar, não criou raízes na América do Sul, e dá ênfase à “nova figuração” argentina (o monstrismo de Deira, Macció, de la Vega e Noé) e ao cartazismo cubano.
Socializar a atividade crítica
Mas Brest, Pedrosa, Acha, Traba e Bayón são nomes já bastante conhecidos. Parece-me mais importante destacar o aparecimento de uma nova geração de críticos, hoje na faixa etária dos 35 aos 45 anos, e que já participa do debate sobre a arte latino-americana como autores de ensaios e livros, ou mesmo como animadores culturais. Mencionaria, entre outros, os mexicanos Jorge Alberto Manrique e Rita Eder, o peruano Mirko Lauer, os argentinos Fermin Fevre, Saúl Yurkievich, Jorge Glusberg e Néstor García Canclini, este vivendo no México, os colombianos Eduardo Serrano e Galaor Carbonell, e os brasileiros Aracy Amaral, Frederico Morais e Roberto Pontual.
Alguns dos nomes acima citados estão presentes em ensaios na edição da primavera de 1977 da revista Artes Visuales, dedicada quase integralmente à crítica de arte latino-americana. Todos parecem concordar num ponto: enquanto não houver uma teoria sobre a realidade cultural do continente, não haverá uma arte latino-americana. E o caminho para alcançar este objetivo é a socialização da atividade crítica. É o que diz Saúl Yurkievich, em Arte latinoamericano: de la práctica dispar a la unidad teórica: “O papel do crítico consiste em alcançar o máximo de consciência possível, ou seja, possibilitar a máxima assimilação social dos valores estéticos”. As obras de arte em nosso continente, “coexistentes e coextensivas, mas dispersas, resistem em ser integradas numa articulação especificamente latino-americana. Pela enorme distância entre o nível de emissão e o de recepção, os artistas trabalham para reduzido círculo de público com capacidade de compreensão e/ou aquisição de sua obra”. E que, “a mídia, a micro-história do acontecer artístico e a macro-história do acontecer nacional vão cada uma por seu lado”. Vale dizer, os problemas sociais são sempre maiores e mais urgentes e, deste modo, o que temos de comum não ocorre no campo da arte, mas no campo social. As dificuldades nos identificam. Eis por que Rita Eder, usando como amostragem os livros citados de Traba, Gullar e Frederico Morais, conclui, entre outras coisas, que “o que interessa hoje aos teóricos é entender a arte como um produto social e sua capacidade de converter-se em fator sensibilizador de uma comunidade”.
O principal texto teórico de Jorge Glusberg, diretor do Centro de Arte y Comunicación de Buenos Aires, denomina-se “Arte de sistemas”, já publicado em diversas línguas, e é um dos capítulos de seu livro mais recente Retórica del arte latinoamericano (Nueva Visión, 1978).
Glusberg define arte de sistema “como a interseção de vários discursos artísticos previamente selecionados com um modelo conceitual para entender os códigos que provocaram os desenvolvimentos de cada discurso. Se chamamos discurso artístico o uso de elementos comuns dentro de um regime de seleções e combinações, estes elementos comuns à produção de vários operadores artísticos distintos estão atados a uma mesma formação social”. Ao operar este conceito, Glusberg pretende “proporcionar alguns elementos de juízo que permitam maior compreensão da obra de arte como fato único, determinado, e não como expressão de uma criatividade universal, que não considere as diferenças regionais das distintas retóricas, as quais só se pode aceder situando num marco concreto e histórico. É a partir da imaginação social e não individual que se concebe o fato artístico”. O diretor do CAYC explica tal posição, alegando que “uma das características mais destacadas do trabalho artístico latino-americano, e em particular dos brasileiros e argentinos, é a decidida inclusão do regional em sua problemática: trabalhando com uma linguagem internacional, pretendem esboçar as realidades próprias do contexto em que vivem e do qual se nutrem. Um sistema cultural depende fatalmente de condições econômicas e políticas determinadas. Os artistas não podem evadir-se, e no caso dos latino-americanos existe um compromisso evidente destas determinações ao conceber suas obras”.
Se o que temos em comum são nossas dificuldades, natural que nossa arte dê ênfase a uma problemática regional, que é fundamentalmente política. O contrário, como já notaram vários estudiosos, parece ocorrer em muitos países socialistas. Resolvidas as principais questões de ordem material, os artistas tendem a enfatizar o aspecto estético e experimental em suas obras. Por essa mesma razão, são marginalizadas pelo sistema. É que, como já notara Adorno, “a arte critica a sociedade pelo simples fato de que existe como tal”.
Arte e dependência
Fronteiras internas e dominação
Mirko Lauer e Néstor García Canclini são autores dos dois livros mais importantes publicados recentemente na América Latina, denominados, respectivamente, Introducción a la pintura peruana del siglo XX e Arte popular y sociedad en América Latina. Lauer já publicara, em novembro de 1975, pela mesma editora Mosca Azul, Szyszlo: indagación y collage, no qual, de forma muito criativa e inteligente, conduz uma longa entrevista com o mais importante artista peruano. O resultado é um diálogo brilhante, de permanente interesse, do qual emergem muitas das posições que depois serão aprofundadas, em nível teórico, no livro posterior. A proposta de sua indagação sobre Szyszlo “é enfocar o tema da pintura mais além do comentário a uma exposição determinada, extraí-lo do circunstancial, inclusive para ir além da própria pintura, ao terreno da cultura e da sociedade”, ou, aludindo mais diretamente a Szyszlo: “a tarefa é mais complexa que um resgate do índio peruano como tema da arte, trata-se mais exatamente de um resgate da imagem mesma, da fundação em seu conjunto”. Introduzindo os leitores ao seu novo livro, Lauer retoma esta posição: “não é um livro centrado no aspecto estético da pintura, mas um livro preocupado com o significado da obra pictórica e signo cultural no processo da sociedade peruana deste século”. Em seguida, definindo os alcances e limites de seu trabalho, diz que foi concebido, “mais como uma crítica da arte do que como uma crítica de arte, isto é, como exploração de uma série de vinculações da prática da arte e de seu usufruto e circulação com o resto das atividades e ideias vigentes na sociedade peruana ao longo deste século”.
Lauer confessa que o método e as categorias de análise empregadas por ele procedem quase que diretamente das colocações de Aníbal Quijano, desenvolvidas no seu ensaio “Cultura y dominación” (Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Santiago, jul./dez., 1971). Para esse autor, a realidade cultural deve ser encarada como um sistema paralelo (ao social e econômico) de dominação, enquadrando a pluralidade cultural de países dentro de um sistema nacional e mundial de dominação. “Em grandes linhas” – sintetiza Lauer o pensamento de Quijano –, “esta pluralidade pode ser analisada, em termos nacionais, a partir de quatro realidades fundamentais: uma cultura dominante, uma subcultura dominante no interior de cada cultura, uma ou mais culturas dominadas, e uma ou mais subculturas dominadas no interior de cada cultura”. E “depreende-se que é a subcultura dominante da cultura dominante a que possui as forças reais e controla esses instrumentos, e que é este controle o que gera todo o fenômeno da dominação cultural”. A conclusão de Lauer é de que a “chave cultural da dominação, a contrapartida da liberação econômica, é o acesso aos níveis de objetivação que hoje detenha a subcultura dominante da cultura dominante”.
O livro de Lauer tem três partes, que se distinguem nitidamente: uma introdução, em que explica seu método e localiza suas fontes teóricas; um núcleo, que é propriamente a história da pintura peruana e, finalmente, um minucioso levantamento da bibliografia peruana de arte. O índice do livro está dividido em duas partes – as fronteiras externas e as fronteiras internas. As primeiras são estabelecidas pelos artistas nacionais que emigram para a Europa, e que depois retornam ao país como “triunfadores”. São as tentativas encetadas pelas classes dominantes locais de criar núcleos artísticos à europeia (“toda uma vertente de nossa história cultural é esta impossibilidade de reprodução local de formas artísticas importadas”), tal como ocorreu com a Missão Artística Francesa, no Brasil. E o debate entre “el mundo de afuera/universalismo” e o “el mundo de dentro/localismo”. Mas o livro cresce em interesse sobretudo na parte referente às fronteiras internas, ou seja, nos capítulos em que estuda o indigenismo. Nele, Lauer mostra a eficácia de seu método: ao se propor a realizar não uma crítica de arte, mas uma crítica da arte, consegue defender o indefensável: José Sabogal, o mais famoso “pintor de índios” do Peru. É que o defende não como pintor, mas como ideólogo: “não houve luta entre os setores indigenistas e os outros de vanguarda, entre outras coisas porque a teoria do indigenismo não foi propriamente plástica, mas diretamente ideológica”.
No seu livro, destaca o pioneirismo da escola indigenista em relação ao muralismo mexicano, ao mesmo tempo que procura distinguir uma da outra, em termos de motivações sociais e políticas. Sua conclusão, porém, a de que a “tragédia da escola indigenista do Peru é que passou, quase sem transições, da rebeldia vanguardista ao oficialismo, primeiro no sentido estatal e, logo, no sentido propriamente pictórico dentro do mercado”. Foi o mesmo que ocorreu com o muralismo mexicano, com Portinari no Brasil e com propostas pseudorrevolucionárias em diversas partes do continente.
Arte popular e libertação
Respondendo à pergunta que formulou no título de seu ensaio – “ ¿Qué significa socializar la crítica de arte? –, incluído no número citado de Artes Visuales, Néstor García Canclini diz que “se considerarmos que o fato estético é um processo constituído pelos artistas, as obras, os intermediários e o público, a crítica deve ser um juízo sobre as relações entre esses componentes, suas transformações, a maneira como se articula para configurar o gosto e as tendências da sensibilidade em cada momento histórico”. E na medida em que a obra de arte encontra sua explicação última “na estrutura social que a condiciona, uma crítica de arte integral deverá entender o sentido das obras e do processo artístico como parte da formação socioeconômica na qual surge”. Estas ideias, e outras que desenvolveu no ensaio “Para una teoría de la socialización del arte latinoamericano” (Casa de las Américas, 1975) são retomadas no seu livro antes citado.
Diferentemente do que parece sugerir o título, Canclini não estuda no seu livro as manifestações espontâneas da arte ínsita, as formas artesanais da arte popular etc. Tampouco entende que a arte popular seja as formas massificadas de cultura. A sua tese é a de que a arte para as massas é igual à arte de dominação, e que a arte popular é igual à arte de liberação, ou, dizendo de outra maneira, a arte de dependência é reprodução e não produção, sendo a distribuição a chave da dependência.
Fazendo referências a Brecht, Walter Benjamin, Arvatov e a teóricos e artistas latino-americanos na área da literatura, cinema e artes plásticas, Canclini desenvolve seu raciocínio no sentido de mostrar que o problema básico da estética “não é como se situa uma obra de arte diante das condições de produtividade de uma época, mas como se situa nelas”, pois “a arte não somente representa as relações de produção, [mas] as realiza”. Concordando que “o artista burguês é um reprodutor da ordem existente”, Canclini faz a crítica da arte no sistema artístico capitalista, “que está organizado para obter lucro e não para satisfazer necessidades” reais da população, isto tanto ao nível da arte pura, quanto da arte aplicada. E, observa, que “o erro de algumas vanguardas foi exagerar este poder de excitação dos desejos incipientes até convertê-los no núcleo de uma estética idealista que vê na arte o modelo de uma nova sociedade e em cada artista o profeta que, tocando nos desgarramentos de sua subjetividade, seria o único capaz de antecipá-la”. Contra esta concepção utópica, “adere às tendências que buscam inserir utilmente a arte na práxis cotidiana, mas pensamos que ainda nos processos que oferecem melhores oportunidades para esta inserção pragmática, devemos manter o sentido lúdico, o gozo de jogar com o possível”.
O conceito principal operado por Canclini, e que está fadado a converter-se em uma referência importante nos estudos sobre arte latino-americana, é o de arte de libertação, sobretudo por suas possibilidades dinâmicas e abertas, que bem podem se opor a um certo caráter passivo e fechado de resistência. Segundo o autor, “a arte de libertação não se caracteriza apenas por representar a realidade do povo – também o fazem as versões populistas da arte dominante, e isso revela que não é garantia suficiente –, caracteriza-se por representá-la criticamente. Além da representação, produz a linguagem capaz de participar nas transformações impulsionadas pelo povo – a arte verdadeiramente revolucionaria é a que, por estar a serviço das lutas populares, transcende o realismo. Mais que reproduzir a realidade, interessa a esta arte imaginar os atos que a superem: o gozo é um direito de todos os homens. Socializar a arte quer dizer também redistribuir o acesso ao prazer e ao jogo criador”.
Tratando da “sociologia das transformações no processo artístico”, Canclini acrescenta um elemento novo à noção de obra aberta (Eco) quando diz que esta converte o consumidor em produtor. Quando realizei, em 1971, no Museu de Arte Moderna do Rio, a série de manifestações de livre criatividade que denominei “Domingos da Criação”, tinha como meta colocar o consumidor diretamente dentro do processo criador, retirá-lo de sua passividade, tornando-o parte ativa da criação artística. Antecipava, assim, no Brasil, uma crítica ao múltiplo que surgiria como autêntica jogada do mercado de arte, dissimulada na falsa ideologia de democratização da obra de arte. Falsa porque não passava de reformismo, porque não mudava a relação fundamental entre a obra e seu consumidor. A verdadeira revolução (= libertação) seria dar um banho estético na cidade, fazer de cada cidadão um criador, ou seja, socializar o próprio processo criador. Canclini, a este respeito, esclarece que “a diferença básica das experiências de socialização, tal qual se dá, por exemplo, nos meios de comunicação massiva, é que, enquanto nestes o povo é convertido em público, permanece alheio à produção e só se toma em conta os gostos mais fáceis, a arte socializada é aquela que transfere ao público o papel de produtor”. “O verdadeiro artista popular”, diz Augusto Boal, “é o que, ademais de saber produzir arte, deve saber ensinar ao povo produzi-la”. Neste sentido, e esclarecendo melhor seu conceito, diz Canclini, que “a existência da arte de libertação não depende tanto de que se faça um novo tipo de obras por exemplo, realistas ou de conteúdo social nem de que existam artistas politizados, mas de que se gerem novas relações sociais e se organize em forma socializada a produção, distribuição e consumo”. Quanto à arte latino-americana, “sua originalidade não reside numa imagem arcaica que devemos exumar ou na pureza autóctone dos materiais com que foi feita, mas na insolência e na liberdade com que tomamos daqui e dali o que necessitamos para o que queremos ser”. Em outras palavras, nós, latino-americanos, devemos absorver toda experiência que nos é útil, não importa sua origem (um princípio maoísta), devemos ser antropófagos, “só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. / Antropofagia: absorção do inimigo sacro” (Oswald de Andrade, Manifesto antropofágico, 1928).
O Brasil na América Latina
O leitor terá notado que partindo de fundamentos diversos e propondo conceitos diferentes, muitos dos textos acabam por se complementar, um corrigindo os excessos ou carências dos outros. E mais, com frequência, a rigidez inicial sucede uma certa imprecisão à medida que o raciocínio avança e necessita ser nuançado, ou que, muitas vezes, o exame de situações concretas fica muito aquém da elaboração teórica que o precedeu. Sobretudo nos teóricos mais jovens, de formação marxista, chega-se sempre à definição da obra de arte como produto (afinal, trata-se de “uma apropriação e transformação da realidade material e cultural, mediante um trabalho para satisfazer uma necessidade social”), porém nem sempre se consegue precisar a natureza especial deste produto, que escapa frequentemente às categorias vigentes herdadas da sociologia, da antropologia, da psicanálise, e mesmo da estética e da história da arte.
De qualquer maneira, houve um avanço considerável em nossa produção teórica. E a novidade dessa produção reside na tentativa de seus críticos de analisar a produção latino-americana como um todo, a partir da manipulação de alguns conceitos básicos: resistência (Traba), libertação (Canclini), vocação construtiva (Frederico Morais), um pensamento visual autônomo (Juan Acha) ou a adoção de conceitos oriundos de outras áreas, como a teoria da dependência (Mirko Lauer). Este último, mais o brasileiro Ferreira Gullar, não se propuseram propriamente a analisar a produção artística do continente. O primeiro, como vimos, se restringiu à arte peruana, o segundo discutiu questões mais teóricas e gerais, especialmente os binômios nacional/internacional, particular/universal, mas o que disseram em seus livros vale para a arte continental. Senão vejamos. No ensaio que dá nome ao seu livro já citado, diz Gullar que “assim como o universal não existe senão nos particulares, o internacional também não existe senão nos nacionais e são estes, na sua diversidade e na sua identidade, que dão à realidade internacional seu caráter específico. Do contrário, estaríamos concebendo uma Categoria abstrata e vazia”. Isto porque “a arte tem de visar uma superação de singularidade nacional”, ela tem “de transcender as singularidades, porque essa é uma exigência da própria criação artística, do mesmo modo que é também uma exigência estética superar o universal no particular, isto é, o internacional no nacional”. Onde Gullar se aproxima do que poderia ser um projeto de libertação da arte latino-americana é no trecho que se segue: “À medida que estes países tomam consciência de suas próprias especificidades e identidades, essa consciência os leva a se identificarem entre si, a agir juntos, a ter mais poder de modificações sobre a globalidade internacional (...). Sendo assim, quanto maior consciência tenha um país subdesenvolvido de sua realidade particular, mais consciência terá da realidade internacional e melhor poderá atuar nela e contribuir para modificá-la, conformá-la às necessidades das particularidades que a constituem (...). Supera-se, nesse processo, a autocompaixão e a simples denúncia, para descer-se na elaboração de uma visão transformadora, renovadora, revolucionária”.
Toda esta movimentação teórica da crítica latino-americana tem provocado, por outro lado, algumas modificações significativas de posições. Entre outras, a maneira como tem sido enfocada a arte brasileira pelos críticos de outros países do continente e vice-versa. Damián Bayón, depois de constatar, na introdução de seu livro, que “nos ignoramos uns aos outros com absoluta inconsciência”, confessa sua incapacidade em analisar a arte brasileira: “Desde a época colonial”, diz, “o Brasil constitui um caso à parte, é bom que o público comece a tomar consciência disso. Outra língua, outros séculos de conquista e desenvolvimento, enfim, outra imigração e outro destino separam esse grande país de todos aqueles cujo denominador comum poderia ser, pelo menos, o de falar espanhol”. Uma ressalva honesta, ou pelo menos tática. Com isso, Bayón evitou cometer erros como os cometidos por Marta Traba no tocante à arte brasileira, que ela só conhece através das bienais, nas quais o “peso” oficial é sempre muito descaracterizador. Mas se Bayón sai pela tangente, Traba assume o erro e se propõe a corrigi-lo na comunicação que fez ao Simpósio de Caracas. Depois de definir o muralismo mexicano como a conquista de um espaço político e o modernismo de Tarsila do Amaral como espaço cultural, dizendo que no primeiro caso (cita García Ponce) “se confundiu o nacional e o Estado” e que no segundo “foram as elites que criaram este espaço culto como ‘linguagem’, desde uma perspectiva nitidamente classista, na qual o que importa é assumir a representação do nacional dentro do marco das possibilidades expressivas da burguesia”, conclui com precisão, que “assim como foi férrea a estatização do nacional como espaço político, no México, é transitória a definição do nacional como espaço cultural étnico e formal no Brasil”.
Mas voltemos um pouco atrás, à observação feita por Bayón. Sem dúvida, a colonização de nossos países foi bem diferente: os espanhóis realizaram sua conquista de forma extremamente violenta. Encontraram toda a sorte de resistência, mas ocuparam o continente de ponta a ponta e, em nome de Deus, destruíram tudo o que encontraram à sua frente. Não conseguiram destruir a cultura indígena, deixando, contudo, marcas profundas de sua própria cultura. Os portugueses não revelaram o mesmo pathos: nostálgicos e litorâneos, preferiram não adentrar muito o território. Quando tiveram que penetrá-lo por força das circunstâncias (o ouro das Minas Gerais), foram derrotados. A realidade urbana e mercantil de Vila Rica não se enquadrava na mentalidade medieval-agrária de Portugal. E do choque de duas mentalidades, resultou um dos momentos mais significativos da cultura brasileira: a obra de Aleijadinho. E junto com os portugueses, vieram os escravos africanos, diluindo ainda mais a presença cultural portuguesa, acrescentando novas nuanças de comportamento e criação no brasileiro. Natural, portanto, que os brasileiros se voltassem para o outro lado do Atlântico – para a Europa, para a África – mais que para seus vizinhos latino-americanos. Por isso, também, são mais receptivos às novidades vindas de fora, de outros continentes, inclusive porque as tradições pré-colombianas aqui são menos marcantes. Por outro lado, certamente motivados pela língua comum, como também por razões tanto psicológicas quanto certamente econômicas e políticas (a diáspora de exilados no momento atual), os hispano-americanos circulam muito mais no seu continente, emigram mais. Os brasileiros, na sua timidez, mal se deslocam dentro de seu próprio país. Na história hispano-americana encontramos muitos líderes políticos que tiveram atuação continental. Bolívar e Guevara, para citar dois exemplos. Críticos e artistas seguem agindo da mesma maneira. O intercâmbio entre hispano-americanos (inclusive ao nível das galerias e museus) é muito maior que entre brasileiros e o resto da América. Já é tempo, porém, de as coisas mudarem de rumo.
Redescoberta da América
E crise da vanguarda
A redescoberta da América Latina coincide com o arrefecimento que se nota na atividade de vanguarda no plano internacional. Porém, se a crítica europeia, na maioria dos casos, limita-se a constatar e a lamentar a ausência de novidades e de novos caminhos (Pierre Restany: “os artistas não querem propriamente ‘fazer’ coisas novas, mas ‘usar’ meios novos, o que lhes serve de atenuante na constatação de estarem hoje prolongando propostas anteriores”; Tommaso Trini: “estamos numa situação em que nada mais se faz do que continuar antigas propostas”), ou, contrariamente, rejubila-se pelo fato de que “finalmente nada de novo acontece” (Achile Bonito Oliva), o que permite um exame mais frio da produção atual, caracterizada por uma sensibilidade microemotiva, a crítica latino-americana vê a crise de vanguarda como uma situação irremediável. Daí a veemência com que tem condenado os descaminhos da vanguarda dos anos 1960 para cá, ao mesmo tempo que se preocupa com os seus reflexos em nosso continente: Traba (o terrorismo das vanguardas no vazio), Ida Rodríguez (o perigo que representa para nós a adoção do irracionalismo Dada), Gullar (passado o tempo da grande badalação e do show volta a reinar a calmaria) e Mário Pedrosa (regressão patética sem retorno: decadência).
A rigor, uma coisa não está vinculada a outra. Ou não deveria. O risco que se corre ao vincular a redescoberta da América Latina e a crise da vanguarda, é a condenação rasteira de toda vanguarda, inclusive aquela, já histórica, e cuja contrapartida e a defesa de tendências conservadoras ou superadas de arte em nosso continente, ou, em outras palavras, estagnação. Atitude ao mesmo tempo reacionária e maniqueísta. Curioso, aliás, como nesta condenação se juntaram críticos de formação e atuação tão diferentes, alguns, outrora francamente comprometidos com os movimentos de vanguarda. E o que é mais lamentável, o conteúdo de suas novas posições está sendo manipulado justamente pelo mercado de arte e pelas forças mais reacionárias. Por outro lado, pode-se perguntar se existe, de fato, uma crise. O que há, sem dúvida, é uma diferença no comportamento desta década, mais reflexiva e crítica em relação à própria produção artística, e à anterior, vitalista, criativa e dinâmica. Ausência de novidades ismos, escolas e tendências não significa necessariamente crise. E quem sabe, a crise está é na incapacidade dos críticos de acompanharem estas mudanças de comportamento?
Se é certo também que esta ausência de novidades ou esta sensação de crise pode favorecer uma reflexão mais atenta sobre aquilo que nós próprios estamos criando ou podemos criar, é preciso estar alerta para os subprodutos desta atitude, que são os acima mencionados: a valorização de tendências ou estéticas regionais decididamente superadas diante da nova realidade política e social do continente, ou a valorização de artistas ditos “progressistas”, mas de produção medíocre. No Simpósio de Caracas, a crítica e historiadora de arte Ida Rodrigues Prampolini fez de sua comunicação “Dada e América Latina”, “uma chamada de atenção para o perigo que encerra, para a América Latina, as manifestações que, em forma de vanguarda, se apresentam em espetáculos, atitudes e obras que recorrem à irracionalidade de um movimento aparentemente inofensivo e inocente: Dada”. Seu texto é uma enérgica condenação do Dada. Fala de “um complô burlesco e irracional dos dadaístas alemães e do cinismo cético, desiludido e frívolo de Marcel Duchamp”, e por aí vai. Ora, o Dada tem mais de meio século e mesmo quando se diz que “hoje, tudo é mais ou menos Dada” (uma simplificação feita por Restany), não se pode reduzir toda produção atual ao “modelo” Dada. Queiramos ou não, Duchamp e a arte conceitual são os dois cortes mais profundos ocorridos na arte do século XX e balançaram todo o sistema da arte. Mesmo os quadros pintados a óleo sobre tela são, hoje, diferentes. Ver no Dada apenas a irrupção do irracional e do individualismo é um reducionismo tacanho: a liberdade criadora proposta pelo Dada teve profundas implicações culturais e políticas. O “irracionalismo” de ontem pode ser o racionalismo de hoje, assim como a subjetivação da realidade proposta pela arte apenas aguarda o momento de ser objetivada e tornar-se uma forma metódica de análise da realidade. Dada não foi um movimento, foi uma explosão criativa. Do asco inicial a um mundo que ruía e apodrecia e no qual muitos identificaram apenas o não, se avançou até o sim, que era a certeza de que a liberdade de criação é um bem coletivo, que cada indivíduo experimenta e afirma à sua maneira. Nenhum movimento artístico pode fugir à sua circunstância. O Dada-Nova York não é o mesmo Dada-Hanover, como não seria o mesmo se existisse em Chapultepec, Berna ou Barcelona. A vanguarda na América Latina terá inevitavelmente um caráter diferente da vanguarda europeia ou norte-americana, pois estará muito mais atada ao social e ao político. O que não podemos é prescindir dela. O novo é uma fatalidade em nosso continente. Até mesmo Ferreira Gullar, hoje um crítico severo das vanguardas, percebeu isso. Na introdução de seu livro, Vanguarda e subdesenvolvimento, diz: “Mas essas ‘vanguardas’ trazem em si, embora equivocamente, a questão do novo, e essa é uma questão essencial para os povos subdesenvolvidos para os artistas desses povos. Precisamos da indústria e do know-how que eles têm, mas com essa indústria e esse know-how, de que necessitamos para nos libertar, vem a dominação. Assim, o novo é, para nós, contraditoriamente, a liberdade e a submissão. Por isso mesmo é que a luta pelo novo, no mundo subdesenvolvido, é uma luta anti-imperialista”.