Colecionismo e consciência histórica
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Julia Buenaventura (2012)
Relato crítico do encontro América Latina e Arte Contemporânea: Curadoria e Colecionismo,
Instituto de Estudos Avançados – Universidade de São Paulo
Texto originalmente em português
Fonte: Fórum Permanente http://www.forumpermanente.org/event_pres/encontros
Depois de arrumar a casa durante o século XIX, os países latino-americanos começaram a construção de seus passados, uma edificação da história que foi resolvida bem longe; isto é, cujo tempo e geografia aconteciam na Europa. Dessa forma, surgiram grandes coleções de cópias: desde o esforço de Roberto Pizano que levou à Colômbia uma centena de reproduções em gesso de esculturas das coleções do Louvre e do Museu Britânico, até a carta, escrita em 1950, de Alejandro Miró Quesada solicitando a Nelson Rockefeller um acervo de cópias para a Universidade de Lima – coleção, hoje, recolocada sobre a mesa pelo artista Fernando Bryce.[1]
As repúblicas nasciam já bastante velhas, na procura de uma tradição que sustentasse seus nomes e suas insígnias. Porém, dois casos são particulares nesse panorama, o México e o Brasil. O México porque, mal tinha terminado o século XIX, quando teve uma revolução que lhe supôs construir uma outra história, uma história própria que, então, encontrou seu começo muito antes da chegada de Colombo ou do nascimento de Cristo. O Brasil porque nunca se tornou independente – foi Portugal que se tornou independente do Brasil: o rei tinha nascido nestas terras –, o que levou a uma história que acontece aqui e ali ao mesmo tempo. “Nossa independência nunca foi proclamada”, diz Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago, ao tempo que propõe: “Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César!”.
A quase cem anos desses episódios, em 5 de setembro de 2012, foi organizada por Martin Grossman, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, uma reunião de várias pessoas envolvidas na tarefa de construir coleções de arte latino-americana contemporânea; tarefa, esta, que leva implícito um questionamento sobre como organizar o presente, estabelecer vias de comunicação e de conhecimento mútuo, mas que também precisa de uma revisão do passado, passado que na América Latina sempre está se movimentando, mudando seus períodos e sua geografia.
Assim, a constituição de coleções de arte latino-americana foi o foco do encontro, tendo como contexto específico, um mercado global que na última década cultivou o interesse nessa origem. A problemática é, então, nova, pois hoje o “latino-americano”, longe de ser uma procura pela identidade – como aconteceu durante o século XX, gerando uniões e brigas –, está se propondo como produto da demanda, consequência da procura dos compradores pela etiqueta Made in América Latina.[2]
Desde essa perspectiva, saltam as perguntas: Assumimos a etiqueta? Que podemos tirar desse jogo? E, finalmente: Existe esse conjunto ou trata-se de uma demanda efêmera, produto de um mercado cujo capital financeiro está à procura de novos objetos para especulação?
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Martin Grossman, diretor do Instituto de Estudos Avançados, deu as boas-vindas explicando como a conjuntura da 30a Bienal de São Paulo possibilitou o encontro, cujo caráter extraordinário radicava na convergência do tema e a multiplicidade dos lugares de procedência dos participantes. Na verdade, é difícil reunir um leque semelhante, a bagagem de muitos dos presentes era certamente ampla, envolvendo décadas de pesquisa e de trabalho na área de estudo: Arte na América Latina, tanto em história, crítica e curadoria, quanto em colecionismo e mercado.
O que segue é um conjunto sintético de algumas das intervenções do encontro, sem uma ordem cronológica, na tentativa de estabelecer eixos de diálogo.
1. Mercado
A peculiaridade do panorama atual consiste em estarmos em um mundo onde tudo – o imaginável e o inimaginável – está sendo convertido em mercadoria. Um contexto em que a arte tem virado excelente cofre para a acumulação e especulação de capital e, hoje, o turno parece ter chegado à América Latina, o que traz vantagens mas também problemáticas.
Justo Werlag, ex-presidente da Bienal do Mercosul, explicou como de fato estamos vivendo um momento em que uma grande liquidez está na procura da arte, um período em que existe a oportunidade expressa de formar novas coleções, para concluir que a ação pública há de vir depois do mercado.
Essa posição resulta interessante, de fato, a Bienal do Mercosul, como seu nome o indica, surge de um pacto comercial, e não de uma procura de identidade histórica – como era o “Nosso norte é o sul” de Torres-García. Assim, do projeto de abrir uma rede de intercâmbio comercial, nasce a proposta de um encontro nas artes, e, na verdade, tem tido excelentes frutos. Contudo, a possibilidade de movimentar o fator público a posteriori não fica clara: depois de feitas as coleções privadas, será possível movimentar a constituição dos acervos públicos?
Nesse assunto, Aracy Amaral, crítica e historiadora de arte, respondeu negativamente: a doação de Cicillo Matarazzo à Universidade de São Paulo,[3] é a exceção que confirma a regra, não é a regra, explicando que os acervos privados não se abrirão espontaneamente.
Desde o ponto de vista de Cristina Tejo, coordenadora e curadora da Fundação Joaquim Nabuco, existem duas realidades paralelas; de um lado, as instituições públicas, carentes de recursos; de outro, um mercado que avança de vento em popa. Onde estão os recursos das primeiras? – questionou. Pergunta que leva implícita sua resposta: em uns impostos que, sem passar pelo Estado, vão diretamente às instituições privadas.
Nesse contexto, Amílcar Parker, de Capacete, afirmou que a saúde do mercado da arte é um bom termômetro para medir a desigualdade social, para daí chamar a atenção sobre como o mercado incide na realidade histórica. Fazendo uma releitura do dito por Amílcar, o ponto consiste em como o mercado está determinando tanto o passado como o rumo a seguir, enquanto está marcando aquilo que seria “latino-americano”.
Vai daí que se, de um lado, é positivo ter uma liquidez procurando a arte, de outro, é preciso se perguntar até que ponto essa liquidez está incidindo na arte mesma, está modificando-a, assim como modifica, segundo suas demandas, os denominadores comuns. Questão que traz consigo o problema profundo entre público e privado, essa privatização do público que tira a autonomia em uma série de determinações e de escolhas. Tema que foi abordado por Gabriel Pérez-Barreiro, diretor da Coleção Cisneros.
O começo da intervenção de Gabriel faz cair na conta de um fato, imagem do acontecido nos 1990 e primeira década de 2000. Se esta mesma reunião, diz, tivesse acontecido vinte anos antes, seria um simpósio de professores universitários e representantes de instituições públicas, enquanto hoje todos os convidados vêm de entidades privadas, o que, certamente, é produto de uma mudança, do processo de privatização, consequência direta da entrada de capital financeiro no continente. Esses âmbitos privados, agregou Pérez-Barreiro, levam consigo conflitos de interesses que não estão sendo tratados, os investimentos e os gastos não fazem parte das agendas dos colóquios. E sendo uma rede de investimentos aquilo que está determinando as decisões, esse tipo de temáticas resultariam fundamentais.
Em resumo, se investidores – não historiadores, curadores, nem críticos – estão impondo as regras, deveríamos nos reunir para falar de cifras e de negócios, junto com as problemáticas de identidade e de significado, pois o silêncio sobre esses dados está levando às três instâncias mencionadas – história, crítica e curadoria – a serem uma espécie de verniz e não uma problematização real das questões que regem o movimento da arte hoje.
Dessa forma, como assinalou Justo Werlag, se existe uma grande liquidez na procura da arte hoje, teríamos de falar disso: que capital é, onde está e que implicações tem no panorama teórico e crítico da arte que estamos produzindo neste momento, seja ou não latino-americana.
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II. Brasil-América Latina-Brasil
Um dos paradoxos de nosso momento consiste em que quando finalmente deixamos de nos proclamar latino-americanos – vale lembrar da insistência de falar de “arte na América Latina” durante a década de 1990 –, os investidores começaram a procurar arte latino-americana. Não é à toa que a discussão sobre esses motes voltou à tona.
Eugenio Valdés, curador da Casa Daros no Rio de Janeiro, afirmou que, de qualquer forma, a América Latina sempre tinha sido produto de organizações econômicas do mapa, indicando que consequentemente nunca tínhamos tido certeza diante da pergunta sobre o que era aquilo que nos caracterizava: “Ontem fomos barrocos, hoje somos geométricos, amanhã seremos conceituais”, agregou. Os outros participantes responderam, sorrindo, que esse amanhã já tinha chegado; assunto que ele aceitou, não sem dizer que “o desafio para os latino-americanos consistia em não ser de novo um boom”. Rafael Pereira, assessor de coleções, enfatizou essa posição assinalando que não podemos cair de novo em um realismo mágico, primeiro porque qualquer desses booms é efêmero, segundo, porque esse tipo de denominação costuma eliminar a dissidência.
Na sequência, José Roca, cocurador adjunto de arte latino-americana da Tate Gallery, indicou que estamos vivendo um momento post latino-americano, em que não tem sentido realizar uma coleção cujo indicador seja territorial, por exemplo, as aquisições de arte latino-americana cujo único propósito é demostrar certa democracia geográfica, e que costumam terminar arquivando as obras, pois suas peças não encontram um sentido além da origem. Portanto, explicou, os denominadores não devem ser geográficos, mas temáticos. Posição que ficou estabelecida na 8a Bienal do Mercosul, curada por Roca, onde as mesmas fichas careciam da nacionalidade dos artistas, o que induzia o visitante a percorrer conjuntos de obras que assumiam justamente a pergunta sobre “como se estabelece o conceito de nação no momento presente”, sem que esse questionamento implicasse dividir as obras pelas nacionalidades dos artistas.
Acho válida essa posição, no entanto, é preciso levar em conta que o momento presente não é completamente “pós latino-americano”, pois estamos sendo agrupados sob essa denominação no mercado da arte. De fato, a metade dos presentes na reunião levavam, querendo ou sem querer, o adjetivo “latino-americano” em alguma linha de seu cartão de visita.
Nesse eixo de discussão, apareceram procissões diversas, Amílcar Parcker insistiu na questão de pensar a América Latina, voltar sobre essa temática que atravessou o século XX. Cauê Alves, do Museu de Arte Moderna de São Paulo, duvidou sobre o tema do boom latino-americano: será que, de fato, existe, ou trata-se de uma ilusão? Pela sua parte, Rosângela Rennó, artista brasileira, falou que, pelo menos na sua experiência, o interesse pela América Latina era alto, mas não sabia até que ponto era correspondido pelos países de língua espanhola.
Acontecendo a reunião em São Paulo, a questão sobre a participação do Brasil na América Latina não se fez esperar. Se a nova integração está diretamente relacionada com o Mercosul, o que envolve a possibilidade de futuro conjunto, também leva consigo um passado de relacionamento, de lidarmos uns com outros.
Nesse contexto, a anedota que abriu a intervenção de Cecilia Fajardo-Hill, curadora-chefe do Museu de Arte Latino-Americana da Califórnia, resultou, além de engraçada, pertinente. Durante um simpósio realizado por Cecilia sobre uma temática semelhante, mal tinha começado a reunião quando brasileiros e mexicanos quase saíram no tapa, pois enquanto os primeiros afirmavam que não tinham nada a ver com a América Latina, os segundos respondiam: porém, quando o assunto é vender as obras, em um mercado interessado pela arte que leva essa origem, viram latino-americanos de sangue sim!
Daí Cecilia passou a explicar que o problema não consistia na criação de um padrão – daquilo que Rafael Pereira chamaria de um novo realismo mágico –, mas no estabelecimento de uma rede de colaboração, capaz de resolver questões básicas, por exemplo, o transporte de obras entre nossos países, logística que não tem sido resolvida, o que dificulta em extremo o conhecimento mútuo. De igual forma, afirmou que não há uma gestão e não existe um empenho de aquisição de obras entre vizinhos, nem de parte do Brasil nem dos países de língua espanhola. Para fechar sua intervenção com uma problemática geral e urgente: não está sendo desenvolvida uma capacidade de pesquisa, nem consequentemente, uma circulação de conhecimento.
Moacyr dos Anjos, diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, apoiou o ponto comentando que, no Brasil, o tema da América Latina parecia não fazer sentido, tal como se o país estivesse em uma história global, flutuante. Pela sua parte, Aracy Amaral indicou que, de fato, o Brasil não tem um interesse na América Latina, o que vêm de uma postura colonial permanente. No entanto, continuou, o problema também vem dos países do outro lado, da impossibilidade de manter uma unidade, por exemplo, uma associação de museus latino-americanos capaz de ultrapassar os cinco anos de funcionamento.
A intervenção de Hans Michael Herzog, diretor da casa Daros no Rio de Janeiro, foi relevante nesse sentido. O colecionismo de arte latino-americana, diz, é novo; o interesse na produção dessas latitudes não existia faz algumas décadas, e o ponto estaria em construir mecanismos para não fazer da conjuntura uma questão passageira. Desde o percebido por Herzog em cinco anos de trabalho no Rio de Janeiro, o Brasil não tem identificação com a América Latina, não se ajusta nesse mapa, aspecto que ligou a um problema fundamental: existe uma profunda falta de consciência da história.
Daí Herzog fez ênfases em como, aproveitando o mercado, era possível começar trabalhar nessa carência: em vez de publicar e publicar, formar vínculos, criando uma capacidade de impacto para o circuito, por meio de encontros de críticos e de uma discussão que transpasse o círculo elitista que costuma discutir sobre arte latino-americana, diálogo que seria de uma importância já não para este continente, mas para o mundo todo, agregou.
Recapitulando, hoje o termo latino-americano está sendo dado por um interesse do mercado, mas abre uma possibilidade de estabelecer ou reestabelecer vínculos entre nossos países, pois em muitas ocasiões, na discussão das artes, bem parece que a Cidade do México encontra-se mais perto de Santiago, do que São Paulo de Montevideo.[4]
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Em resumo, das coleções públicas de cópias europeias às coleções privadas de originais latino-americanos, há um lapso impressionante de produção. No começo do século XX, todos na América latina saímos comprando as mesmas cópias – repetidas de universidade em universidade –, com fundos públicos, no começo do século XXI todos saímos vendendo obras – que se repetem de galeria em galeria – a entidades privadas. A arte já é nossa, mas não somos nós os compradores.
Disso decorre que a organização, catalogação, sentido da arte latino-americana continue sendo fruto de fatores importados, ditados de fora. Se bem que na reunião não tenha havido conclusões, poderia concluir que a problemática geral estaria em como aproveitar o contexto, para virar esse panorama. Mas isso implicaria, num mundo regulado pelo mercado, que na discussão histórica, teórica e crítica comecem a sair esses conflitos de interesses que estão embaixo das entidades privadas, da oferta e a demanda. Implicaria começar a falar de preços, da origem do capital, da privatização do público, do destino dos impostos, na tentativa de conseguir compreender, entrar em profundidade numa história da configuração da arte “latino-americana” (1960-70), “na América Latina” (1980-90) ou “Made in Latinoamérica” (2000).
Notas
[1] Vale lembrar aqui de uma outra carta. A de Rockefeller a Sérgio Milliet, em 25 de novembro de 1946, comentando a doação de originais, não de cópias. Episódio que, ainda cronologicamente simultâneo, está historicamente distante da outra solicitude. Milliet tinha na mente fazer um museu moderno, e não uma história clássica. Ver o texto de AMARAL, Aracy: Do MAM ao MAC: a história de uma coleção. In: Textos do Trópico de Capricórnio, v. 2. Circuitos de arte na América Latina e o Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006.
[2] Expressão empregada, durante a reunião, por Hans-Michel Herzog, quando explicou como essa etiqueta podia ser aproveitada, em vez de rejeitada. Hans fez o paralelo com a etiqueta Made in Germany que, após a II Guerra, era uma espécie de advertência para não comprar o produto, e hoje é certidão de qualidade. Concordo com seu ponto, e assim como explicarei adiante, com a possibilidade de aproveitar esse Made in, na construção de vínculos e, mais do que nada, de uma consciência histórica.
[3] Francisco Matarazzo Sobrinho – conhecido como Cicillo Matarazzo –, fundador da Bienal de São Paulo e do Museu de Arte Moderna, SP, em 1963, decretou a extinção dessa última instituição doando seu acervo à Universidade de São Paulo, onde foi criado o Museu de Arte Contemporânea, MAC-USP. Daí a seguinte curiosidade, em São Paulo, o Museu de Arte Contemporânea tem um acervo moderno, enquanto o Museu de Arte Moderna, que fora resgatado mais tarde, tem um acervo contemporâneo.
[4] Nós, os de língua espanhola, não conhecemos Mário Pedrosa, enquanto, os brasileiros não conhecem José Luís Romero, o que gera uma barreira, pois resulta impossível enxergar a utilidade do saber do vizinho, como pode nos ajudar já não em compreendê-lo, mas nos compreendermos a nós mesmos. Embora carecer de notícias uns dos outros tenha sido um programa de séculos e de décadas. De séculos, pois durante a Colonização espanhola e portuguesa, só era possível ter notícia do vizinho – da Nova Espanha (México) à Nova Granada (Colômbia, Panamá, Venezuela e Equador), por exemplo – a partir de Madrid ou de Lisboa, os centros. De décadas, pois durante os 1960 e 1970, as ditaduras vedaram os esforços de escrita de uma história e uma arte conjunta; com o Golpe, Pedrosa foi do Brasil para o Chile, e com o novo Golpe, teve de sair do mapa. De igual forma, acabando de publicar Latino-América: as cidades e as ideias (1976), José Luís Romero teve de ir para o México, onde morreria no ano seguinte. O desconhecimento mútuo não é gratuito, os diferentes regimes encarregaram-se de cortar sistematicamente os vínculos, claro está que com a ajuda de nós mesmos.