Cartographies
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Ivo Mesquita (1993)
Tradução: Eduardo Rebelo
Fonte: MESQUITA, Ivo. Cartographies (Catálogo). Winnipeg: Winnipeg Art Institute, 1993.
I. Introdução[1]
Como evento – uma ação no tempo e no espaço –, a exposição Cartographies visa a dois objetivos: primeiro, apresentar uma seleção da produção artística contemporânea “latino-americana” e participar do debate atual no campo dessa suposta categoria artística; segundo, propor uma metodologia curatorial capaz de abordar a produção artística contemporânea, enfrentando criticamente a tradição institucionalizada e preservando a especificidade dos discursos plásticos. Por um lado, o projeto pretende examinar se o que convencionalmente recebe o nome de “latino-americano” nas artes visuais é capaz de descrever e interpretar de forma íntegra e produtiva a arte produzida no continente correspondente; por outro, tenta submeter a debate o papel do curador de arte contemporânea considerando a sua institucionalização como ponto de referência do conhecimento e poder no circuito das artes visuais na atualidade.
Embora o título da exposição sugira mapas, não se refere à elaboração de mapas úteis para cruzar os territórios geográficos de onde provêm as produções dos artistas nela apresentados. Tampouco se a propõe mostrar mapas feitos por artistas. Refere-se, isso sim, a mapas imaginários, elaborados a partir das relações e circuitos estabelecidos para que Cartographies se realizasse, os quais também romperam os limites dados pela geopolítica e pelas relações institucionalizadas. Desde 1989, quando se iniciou este projeto, as sucessivas viagens do curador por toda a América, redes de comunicação (fax, telefone, correio e mensageiros) entre os envolvidos no projeto (Winnipeg Art Gallery, curador, artistas e patrocinadores), a rede de colaboradores (colecionadores, serviços, produção de obras e outras entidades que contribuíram) montada para apoiar e divulgar a documentação e os registros elaborados durante o desenvolvimento, foram delineando trajetos reais e mentais que constituíram um território diferente do espaço físico real. São mapas virtuais. Por outro lado, junto a esses mapas imaginários, a exposição também se refere a mapas do imaginário, pois considera que as obras dos artistas são projeções de suas mentes, concretizações de desejo – pulsão primária e anterior a qualquer forma. A mente, neste caso, é imaginada como um vasto prado de onde as obras emergem como demarcações de um território em constante transformação.
Dessa forma, a exposição requer do visitante a atitude de viajante: um ser com história e identidade, guiado pelos sentidos através dos territórios que percorre e descobre. Propõe que cada visitante se torne um cartógrafo e invente seu próprio território, já que, por extensão, pretende também explicitar uma atitude perante a vida: ser viajante significa buscar uma existência quase permanente no tempo presente, em constante deslocamento e em condição de eterno estrangeiro, com raízes não na nacionalidade, mas naqueles territórios sob o domínio do desejo, sensibilidade e conhecimento. Afinal de contas, é da vida que falamos quando pensamos em Arte.
II. O curador como cartógrafo
Topography displays no favourites; North’s near as West. More delicate than the historians’ are the map-makers’ colors.
(Elizabeth Bishop, The Map, 1946)
No circuito internacional das artes plásticas, a figura do curador de arte contemporânea se assemelha a um viajante que, percorrendo várias paisagens, descreve rotas, assinala passagens, estabelece demarcações, delimitando assim um território específico que compreende a natureza da arte contemporânea. Dessa forma, os curadores lembram aqueles artistas itinerantes que acompanhavam os descobridores das novas terras e que legaram à posteridade as imagens, narrações e mapas que constituem agora a primeira identidade visual das áreas recém-descobertas. Hoje em dia, os curadores experimentam a inexistência de barreiras entre as questões de que se ocupa a produção artística e se tornaram cidadãos transnacionais, responsáveis por uma cartografia da dissolução das fronteiras culturais. Porque o curador é, sobretudo, um caminhante que percorre ateliês, galerias de arte e museus, que procura e investiga questões problematizando-as, a fim de revelar os traços, as qualidades e sistemas de configurações que se vão inventando no processo de criação artística. O curador é um profissional que coleciona pedaços, fragmentos de mundos novos; que reúne partes de universos particulares que constituem a produção artística e aponta para sensibilidades e concepções; que organiza conjuntos de significantes desordenados, estabelecendo direções e marcadores para elaborar os mapas da arte contemporânea.
A cartografia – arte e técnica de confecção de mapas – é um método de trabalho com dupla função: percorrer e detectar a paisagem, seus acidentes, suas transformações e, ao mesmo tempo, apresentar as condições necessárias para seu conhecimento e assinalar as vias de acesso através dele. Ao contrário do que acontece com os mapas tradicionais, que delimitam as áreas tal como eram definidas pela geopolítica, a cartografia se constrói ao mesmo tempo que o território. Ou seja, ela relata, descreve uma experiência do olhar que descobre e registra simultaneamente, proporcionando, ao final da viagem, uma leitura que é, em si, o espaço de compreensão e superação do território.
Dessa forma, o conceito de cartografia é útil como um método de trabalho que fundamenta um procedimento do olhar do curador na produção artística do presente, porque mantém um olho sensível aos confrontos internos que a arte representa para si mesma, no esforço para se constituir como uma visualidade contemporânea. Por essa razão, o curador/cartógrafo não segue nenhum tipo de protocolo normativo ou qualquer a priori: sua profissão nasce da observação das transformações que ele percebe no território que percorre. O que ele procura é situar-se nas proximidades dessas transformações, uma posição que lhe permite perceber o caráter dinâmico do processo de produção do conhecimento. Sob a perspectiva da pós-modernidade, este curador abandona, portanto, a busca da verdade, traço que caracterizou o tradicional exercício do pensamento no Ocidente, para se lançar na busca de sistemas de percepção, de diversas formas de inteligibilidade, desenhando outros mapas e revelando outros mundos. A produção de cartografias é diferente da produção da verdade porque cada olhar inventa seu significado e indica uma possibilidade de compreensão do território. No entanto, não se chega a um final, uma origem ou fim. As possibilidades de expressão e representação são ilimitadas: sempre se está criando linguagem, marcando novas posições, abrindo novos territórios.
A prática do curador/cartógrafo está vinculada, fundamentalmente, às estratégias de produção artística e à sua inserção no campo social. Seu objetivo é narrar as batalhas na busca de matérias expressivas, de composições de linguagens, de constituição de configurações, e permitir-lhes a existência, proporcionando-lhes visibilidade. Como o cartógrafo, o curador não mede, mas avalia. Seu trabalho não revela sentido (significação), mas o cria (significante), porque procura capturar o estado das coisas, seu clima, a fim de traçar as estratégias artísticas que vai encontrando. Em seu exercício, ele quer participar da constituição de uma amálgama do viajante com o território, compartilhando a invenção de uma realidade específica, a Arte.
É evidente que a cartografia, como método de trabalho, permite a abordagem de qualquer fenômeno cultural, seja social ou individual, pelo fato de possibilitar uma leitura a partir da pluralidade de interpretações de que é composta a realidade. Além disso, qualquer teoria é sempre uma cartografia, pois descreve uma experiência única e delimita um território cujo conhecimento se orienta por essa experiência. Emprestado de um conceito metodológico proposto pela psicanalista brasileira Suely Rolnik[2] no estudo da produção do desejo na cultura industrial, sua transferência para o campo das artes visuais não se dá para validar a tradição representada pela história e pela crítica da arte como disciplinas que estudam a visualidade contemporânea. Pelo contrário, dado que pretende ser uma posição de pesquisa e leitura da produção artística que é, ela mesma, o meio de compreensão dessa produção, constitui-se em uma estratégia de confronto aos processos de produção e institucionalização do conhecimento, promovendo o acesso às transformações no território e indicando as possibilidades de constante transição para novas leituras e pesquisas.
O trabalho do curador/cartógrafo é, assim, uma espécie de diário de viagem em que ficam registradas as paisagens descobertas, as estradas percorridas. Dessa forma, em uma exposição – o objetivo final da expedição desse curador – encontram-se identificadas as práticas criadoras, os sistemas de percepção, os elementos que conquistaram um território para se exercer e as direções para a sua inteligibilidade. Essa exposição se oferece, ela mesma, como sua própria explicação. O que ela quer dizer em um dado momento será sempre a partir da obra de arte que reverbera no silêncio das galerias. Não existe aí um pensamento que se desdobre antes, previamente à amostra; ao contrário, só pode dar-se simultaneamente a ela, pontualmente em cada momento em que é percorrida e vista.
III. América Latina: uma cartografia diferente
(...) comme si la noblesse de ces instants leur restituait leur pleine identité.
ROY, Gabrielle. La détresse et l’enchantement, 1988.
No quadro da civilização ocidental, a América Latina aparece como resultado da expansão empreendida pelos descobrimentos e como uma imagem do fracasso do projeto de colonização europeu que acabou por relegá-la à condição de “o outro” na periferia. Embora esta situação não seja exclusiva da América Latina, já que os discursos dos centros hegemônicos distribuíram generalizações de todo o tipo para o mundo todo, dela surgem certas peculiaridades e distorções que a história ocidental atribuiu a essa parte do mundo: por um lado, a noção de território do eterno primitivo, do exótico, do folclórico e do inocente; por outro, o espaço de eternas revoluções e convulsões sociais, da falta de vontade política e de exercício democrático da cidadania, assunto que desqualifica essas sociedades como preparadas para pensar em uma utopia. Não obstante, apesar da instabilidade política, dos graves contrastes econômicos, da diversidade de identidades culturais coexistentes em um mesmo espaço, a urgência dos problemas sociais e as flutuações da moda que apresentam a América Latina como mais um dos produtos de consumo que estão na ordem do dia, cada país latino-americano continua pensando suas utopias como uma sociedade constituída a partir das heranças e tradições do Ocidente, tentando tornar-se visível e reivindicando seu lugar na história. A presença da América Latina na cena política e cultural dos nossos dias leva sempre a marca da urgência de sua situação política, social e econômica, e de alguns estereótipos que foram construídos sobre sua forte e variada tradição cultural.[3]
A América Latina não existe sob uma única identidade. Nela existem, pelo menos, seis diferentes grupos culturais: a Amazônia e o Caribe (a Venezuela, o norte do Brasil e o leste da Colômbia, as Guianas e o Caribe); o Cone Sul (o Chile, a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o sul do Brasil); o grupo andino (a Bolívia, o Peru, o Equador e a Colômbia); o México; a América Central; e o nordeste brasileiro.[4] No entanto, “latino-americano”, como conceito, supõe uma integração do continente que muitas vezes não existe nos próprios países, quer seja por diferenças sociais e econômicas ou por diferenças raciais e culturais. Os esforços das instituições políticas e culturais para promover a integração continental se restringem a acordos formais, selados pela diplomacia, e nunca se transformam em uma relação efetiva no desenvolvimento de projetos comuns que contemplem o intercâmbio de experiências e conhecimentos. Existe, no quadro do pós-colonialismo, por exemplo, muito mais intercâmbio e cooperação entre cada um dos países e as antigas e novas metrópoles, que entre eles mesmos. Assim, “latino-americano” torna-se mais uma das categorias operacionais da antropologia pós-moderna, nada diferente das grandes noções de centro e periferia, Primeiro e Terceiro Mundo etc., uma vez que, como se observou anteriormente, existem muitos centros e periferias com relações distintas e complexas entre si, assim como há um Terceiro Mundo em cada Primeiro Mundo e um Primeiro Mundo em cada Terceiro.[5]
No território das artes plásticas, desde o advento do Modernismo, a América Latina sempre foi registrada e qualificada pela historiografia e crítica de arte como geradora de dois segmentos da imaginação visual:
1) Por um lado, sua produção artística é abordada a partir de uma postura interpretativa que delimita um conjunto de obras inspiradas na tradição popular e que busca recuperar a nacionalidade oprimida. Nessa produção existe latente a ideia do resgate do popular como restaurador da natureza (pura) esquecida pela civilização ocidental (impura). Apoia-se nas figurações referidas nas mitologias continentais (pré-colombiana, afro-americana, ameríndia), na iconografia religiosa e mística, e na evocação das imagens conhecidas do repertório surrealista. Do ponto de vista formal, opera com metamorfoses, alegorias ou representações de caráter onírico, metafóricas, mais ou menos conseguidas como figurações ilusionísticas do real. Essa produção opera com uma diluição do Surrealismo, embora seja reconhecida regional e internacionalmente como “Realismo Mágico” ou “Arte Fantástica”, e cria imagens que reforçam a visão mítica do continente como a terra do bom selvagem, de El Dorado perdido para sempre pela civilização;[6]
2) Por outro lado, sua produção artística é reconhecida como um espaço de militância política que cria uma arte comprometida, a serviço da educação e da conscientização das massas, e que constitui um meio para a transformação da sociedade. Vinculada à tradição fundada pelo Muralismo mexicano, único movimento artístico latino-americano reconhecido pelos compêndios da história da arte ocidental, esta produção procura atender mais às demandas das emergências políticas e sociais do que ao debate de questões intrínsecas à produção da linguagem e conhecimento.
Não se trata de pensar que essas produções não existam ou não sejam constitutivas de um certo “latino-americano”. Existem e configuram parte da atividade artística do continente. No entanto, como conjunto representativo da produção artística na América Latina, se equivocam em sua tentativa de delimitar um território para o latino-americano, pois afirmam a existência atual de uma cultura autóctone, de conteúdos de identidade que expressam a autenticidade de uma cultura pura e revolucionária. Eles incorporam o discurso do outro sobre “nós” e criam sistemas de representação que rapidamente se cristalizam em ícones de identidade esvaziados pela dinâmica violenta da realidade em que se inscrevem: um território intermediário entre as culturas do passado pré-colombiano e a utopia irrealizada proposta pela arrogância dos conquistadores.
A América Latina talvez seja aquele espaço do “meio”, território sem margens fixas onde a pluralidade é, ao mesmo tempo, esperança e fracasso, oportunidade e dificuldade, utopia e catástrofe. Somos o espaço do cruzamento de culturas, do encontro de viajantes, de profecias e de quimeras. Figura inquieta, que é anciã e jovem ao mesmo tempo, parece recrutar todas as épocas para poder sonhar uma identidade latino-americana, uma espécie de arquétipo que uniria todos os habitantes ao sul do Rio Grande. No entanto, ao quebrar-se o espelho, descobrimos que nossa realidade sempre se constituiu entre os fragmentos, olhando, quase no mesmo ato, para dentro e para fora, e descobrindo o caráter labiríntico e babélico de nossa identidade.[7]
Em um passado mais recente, sob a égide do pós-moderno e da ideologia do politicamente correto, uma série de produções artísticas colaboraram intensamente na conquista de espaços importantes para questões como a identidade das minorias – políticas, étnicas, sexuais –, o meio ambiente – natural e social –, as relações sociais e culturais, a miscigenação, o multiculturalismo etc. Dessa forma, emergiram no debate cultural novas categorias que pretendem explicar a especificidade dessas produções: feministas, gays, lésbicas, verdes, afro-americanos, nativos, hispânicos, chicanos etc. No entanto, essas novas categorias acabaram criando espécies de guetos onde essas produções deveriam existir. Ao abrigo delas, o conceito de “arte latino-americana” se empoderou e ganhou um maior espaço de vigência, mas sem que essa situação acarretasse uma mudança significativa na compreensão das produções artísticas e dos países no continente. Não houve um deslocamento produtivo e crítico dos conceitos sobre ele até então vigentes.[8] Ao contrário, esse processo se mostrou muito mais reiterativo do já institucionalizado que promotor do surgimento de novos focos de diferenças, de práticas singulares que pudessem colocar em tensão as relações entre a produção artística e os circuitos em que ela se inscreve.[9]
Pensar a Arte na América significa propor um confronto das estratégias de produção artística com as políticas das instituições culturais. A plástica “latino-americana” é uma figura cujas condições de manifestação dependem do grau de articulação das instituições que produzem sua necessidade. A única maneira de definir uma posição que abarque as peculiaridades dessa plástica é fortalecer as táticas institucionais transversais entre as múltiplas entidades que estão trabalhando na dissolução das novas formas de “primitivismo moderno”.[10] Se o mundo ocidental procurou essa produção artística – e não nos interessa aqui discutir os propósitos que persegue com esta ação – cabe a nós, latino-americanos, o esforço para tornar-nos visíveis através das características de pluralidade da nossa cultura. Se o passado nativo, o católico e/ou religião sincretizada, as línguas latinas, a mistura étnica são um background comum, as práticas artísticas apontam para o território da diferença, da singularidade. O fato de viver na periferia obriga-nos ao cosmopolitismo como único meio para escapar da asfixia imposta pela geopolítica e, assim, evitar o confinamento de nosso desejo. Sem um local fixo – e é isso o que nos faz interessantes – residimos na mobilidade e vivemos em um constante estado de redefinição, em que a questão da identidade cultural é perpetuamente aberta. “No meio das fraturas e das decadências, perplexos perante nossa história e nosso presente, desprovidos de uma identidade autossuficiente, nós, latino-americanos, especialmente os artistas e intelectuais, encontramo-nos perante uma oportunidade inédita: pensar nossa época a partir do ecumênico, retalhando o provincianismo cultural, recuperando o legado de um Ocidente esclarecido e cosmopolita, mas entrincheirados, isso sim, nos saberes que emanam de nossos próprios fracassos, de nossa suspeita cética daqueles sonhos que nos prometeram a utopia americana”.[11]
Desta forma, propor outra cartografia para a arte contemporânea produzida na América Latina é investigar as possíveis transformações na compreensão dessa produção por meio da desterritorialização dos conceitos que se cristalizaram sobre ela, no decorrer da história da arte no século XX. O importante é promover a possibilidade de que a arte que aí se produza deixe de ser o outro de que se fala para lhe garantir o pleno exercício das linguagens, preservando a especificidade e autonomia das poéticas. Assim, o curador/cartógrafo parte em uma expedição procurando descrever as estratégias na produção de arte, de modo que se revele o embate dessas produções nas questões que constituem a contemporaneidade. O que efetivamente interessa é perceber o poder de fogo da produção artística da América Latina para constituir estratégias que possibilitem o surgimento de alguma forma inteligente e original de arte contemporânea na América Latina.
IV. Cartographies
As obras dos artistas convidados para Cartographies não pretendem ilustrar uma ideia, um tema ou revelar qualquer espécie de verdade definitiva sobre a arte produzida na América Latina. Ao contrário, as obras se perdem um pouco à deriva na exposição, completamente sob o domínio e risco de suas prerrogativas. Eles mesmos – e não qualquer ideia, imparcial e externa, que possa se colocar sobre eles – são responsáveis pelas zonas de tensão que instauram, pelas leituras que possibilitam.
Assim como o partido adotado pela curadoria – uma cartografia pessoal e única – configura a exposição como um campo questionador no qual a própria situação curatorial estaria em jogo, necessitando refazer-se a cada instante em que é contemplada, estes trabalhos revelam a possibilidade de percorrer, com um grau máximo de sensibilidade, as irregularidades do território narrado por Cartographies, sem evitar as rachaduras ou concavidades não exploradas, propondo eles mesmos o desenho de muitas outras cartografias. Não importa de onde vêm, mas o que apresentam como saber e com que estratégia buscam se inscrever na cena contemporânea. Rejeitam a perspectiva de distanciamento dos saberes institucionalizados e também o conforto de uma Gestalt configurada por limites apenas vislumbrados e indecisos.
No entanto, existe um elemento unificador capaz de explicar a reunião, em um mesmo espaço, desses artistas. O processo de seleção que se levou a cabo com eles assume toda a arbitrariedade do gesto de escolher. Assim como o artista está marcado pela subjetividade das suas preferências desde o primeiro instante em dá forma a uma ideia, a curadoria assume como dado de realidade em seu campo de trabalho a arbitrariedade de seu gesto. A tarefa do curador também é excluir. Outros curadores fariam outras seleções, desenhariam outros mapas.
Cartographies se propõe traduzir, através do agrupamento inédito de artistas, os diferentes estados de espírito da nossa época. Sem questionar o caráter individualista e irredutível a uma ideia generalizadora de toda a exposição, a reunião desses artistas procura a sua significação no debate da contemporaneidade e abre um espaço particular a cada uma das obras (daí a adoção de densos núcleos de trabalhos destinados a permitir uma melhor compreensão do artista). O objetivo é expor trabalhos empenhados na inteligência de sua especificidade, disponíveis para atravessar o social sem prescindir do seu próprio regime de funcionamento, sem desejar refletir-se nele, resistindo à obrigatoriedade da correspondência a todo o custo com o real. Ao contrário, cada um desses artistas instala uma diferença, singular e irredutível. Esses artistas emergem como outros marcadores reconfigurando o território já́ constituído pelo academicismo contemporâneo. Propõem um alargamento do campo de reflexão para permitir o aparecimento de outros pontos de vista, de outras cartografias.
Notas
[1] As ideias, conceitos e posições expressas neste texto formam uma espécie de inventário das minhas atividades nos últimos sete anos. No entanto, nesse período, muitas delas foram examinadas, registradas e levadas a debate, embora de forma diferente, em outros projetos em que trabalhei, às vezes simultaneamente: Imaginários singulares (exposição e catálogo), Fundação Bienal de São Paulo, 1987 (com Sônia Salzstein-Goldberg); O desejo na Academia (exposição e catálogo), Pinacoteca do Estado, São Paulo, 1991; Identidade artística e cultural na América Latina (simpósio), Memorial da América Latina/Arts Internacional, São Paulo, 1991; O desenvolvimento de artes plásticas contemporâneas na América Latina (conferência), I Encuentro Iberoamericano de Universidades, Bogotá́, 1992.
[2] ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 1989.
[3] Se considerarmos que o passado pré-colombiano é muito mais amplo do que as culturas inca, maia e asteca, que os povos que aqui viveram nesse período desenvolveram diferentes graus de civilização, que nem todos os países tiveram a escravidão, que os fluxos migratórios da Europa e do Oriente se dirigiram em momentos diferentes, em diferentes épocas, para diferentes regiões do continente, temos que à herança cultural – tradição latina e católica – se somaram tantos fatores de diversificação, que resulta extremamente redutor invocar um background comum na formação e desenvolvimento dessas sociedades. Por exemplo, a “Grande América” sonhada pelos libertadores hispânicos e da qual o Brasil não faz parte por ter sido colonizado por portugueses, se fragmentou em muitos países e cada um deles habita uma multiplicidade de identidades e culturas. Em todos os países, em maior ou menor grau, coexistem brancos, negros, índios e uma variadíssima miscigenação entre eles. No entanto, note-se que essa pluralidade racial e cultural não é um privilegio da América Latina, mas da América como um todo – o Novo Mundo.
[4] Esta é uma divisão puramente ilustrativa do que é proposto neste texto. Está fundamentada na minha ampla experiência de viagens e estudos sobre a arte contemporânea produzida na América Latina, mas não pretende ser uma organização das produções artísticas dos países. Ao contrário, baseia-se em topografia, clima, gosto, vestuário, hábitos alimentares, enfim, numa série de afinidades apresentadas ao viajante e que, inicialmente, não pertencem ao território específico das artes visuais, mas que apenas o compõem. Outros autores adotam diferentes divisões, também funcionais para a exposição de suas ideias. Marta Traba, uma crítica de arte argentina sediada na Colômbia, propõe para o estudo das artes visuais no continente, por exemplo, uma divisão entre “Áreas abertas” (Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Venezuela), “Áreas fechadas” (Colômbia, Peru, Paraguai, Bolívia, Equador e América Central), México e “as ilhas” (Cuba, Santo Domingo e Porto Rico). Essa divisão, segundo a autora, corresponde ao grau de abertura e resistência dos países às correntes internacionais da arte contemporânea. Ver TRABA, Marta. Dos décadas vulnerables en las artes plásticas latinoamericanas 1950-1970. México: Siglo Veintiuno Ed., 1973.
[5] Sobre este tema ver, entre outros: FERGUSON, Russel; GEVER, Martha; MINH-HA; Trinh T.; WEST, Cornel (eds.). Out There: Marginalization and Contemporary Cultures. New York/Cambridge: New Museum of Contemporary Art/MIT Press, 1990; LIPPARD, Lucy R. Mixed Blessings. New York: Pantheon Books, 1990; MARTIN, Jean-Hubert. Magiciens de la terre (catalogue). Paris: Centre National d’Art Moderne Georges Pompidou, 1989; MOSQUERA, Gerardo. Presentación Ante América (catálogo). Bogotá: Banco de la República/ Biblioteca Luís Ángel Arango, 1992; RICHARD, Nelly. La estatificación de los márgenes. Santiago: Francisco Zegers Editor, 1989; SAID, Edward W. Orientalism. New York: Vintage Books, 1979.
[6] Essas figurações podem ser percebidas a partir do Surrealismo. Não é necessário lembrar a importância de André Breton na revelação de um número significativo de artistas originais e importantes oriundos da América Latina. Além do mais, essas produções apoiam-se atualmente na crença da subsistência do movimento surrealista internacional como o emulador de uma posição surrealista universal e intemporal. Embora essa sobrevivência de uma “mentalidade surrealista” se justifique na rejeição – teórica – de considerar o surrealismo como estilo (só assim, a partir dessa negação, será possível a sua permanência histórica), todas as produções ligadas, de alguma forma, a essa crença denunciam seu próprio anacronismo ao converter, no final, em estilo os dispositivos formais mais originais e transgressivos do Surrealismo. Não é coincidência que grande parte dessa produção se tenha dedicado às representações da evocação onírica, principalmente a partir da vertente daliniana. Esse era o flanco mais vulnerável do Surrealismo perante o risco de uma diluição pela via do estilo ou do gosto, a qual seria ainda mais acelerada, na medida em que a ideia revolucionária de automatismo se encontra aí convertida em infinito e monotonamente reprodutível. Além disso, nessas produções geralmente existe um mito latente da divisão do mundo real em imaginário no qual o sujeito só́ se exerce como liberdade no último, por um dispositivo de evasão sonhadora. Trata-se de uma compreensão anedótica e mecânica do inconsciente psicanalítico, nada próxima daquela que foi fixada pelo Surrealismo mais revolucionário, na qual trabalhava como um mecanismo (real!) capaz para destilar certas desordens (reais!) no cotidiano (real!). (Cf. SALZSTEIN-Goldberg, S.; MESQUITA, I. Imaginários singulares. São Paulo: FBS, 1987, p. 16).
[7] Cf. FORSTER, Ricardo. Latinoamérica: el diálogo desde los márgenes (paper). Simpósio Identidade artística e cultural da América Latina. São Paulo: Memorial da América latina/Arts Internacional, 1991 (sem publicação).
[8] É curioso perceber que essas categorias criadas pelo politicamente correto procuram mapear, deste lado do mundo, as diferenças e peculiaridades que comporiam um quadro americano, ou seja, das três Américas (quando empregamos o termo “americano”, devemos sempre enfatizar que nos referimos às Américas e não apenas/somente aos norte-americanos). No entanto, esse procedimento resulta tão arbitrário e meramente operacional como todas as categorias mencionadas acima: centro e periferia, Primeiro e Terceiro Mundo etc. Se assim não fosse, por que, quando se fala do latino-americano, o Québec não está incluído? Os quebequenses não são uma cultura latina, católica, produzida na América? Não haveria semelhanças ou afinidades entre suas reivindicações políticas, sociais e culturais e as dos povos ao sul do Rio Grande? Minha experiência de viajante no Canadá me diz que sim, e tenho certeza de que eles encontrariam uma solidariedade muito maior em suas reivindicações, nos países latino-americanos, do que encontraram na Europa, por exemplo.
[9] Na maioria das exposições sobre arte proveniente da América Latina – The Art of the Fantastic in Latin América, Indianapolis (1988); The Latin American Spirits, New York (1988); Latin American Art, London (1989); Twentieth Century Artists from Latin América, New York (1992-1993), por exemplo, a apresentação se dá sempre a partir de uma “pesquisa” com um ponto de vista unívoco que homogeneíza todas as peculiaridades da sua produção visual. Nessas exposições prevalecem os conceitos de um pensamento hegemônico sustentado pela geopolítica e incapaz de revelar os confrontos na constituição de uma visualidade moderna e contemporânea.
[10] Justo Mellado refere-se ao interesse atual dos centros dominantes pela arte do Terceiro Mundo como a busca de um novo primitivismo. Ver PASTOR MELLADO, Justo. Un caso de producción de identidad artística (paper). Simpósio identidade artística e cultural da América Latina. São Paulo: Memorial da América Latina/Arts Internacional, 1991 (sem publicação).
[11] FORSTER, Ricardo. Latinoamérica: el diálogo desde los márgenes, op. cit.