Arte latino-americana em xeque
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Ticio Escobar (1997)
Tradução do espanhol: Henrique Codonho
Fonte: Livro. ESCOBAR, Ticio. El arte en los tiempos globales. Assunção: Ediciones Don Bosco, 1997.
O conceito “arte latino-americana” deve ser problematizado. Esta afirmação está sendo repetida há décadas e é lembrado com mais ênfase diante de cada nova situação epistêmica. Agora, a crítica à modernidade e o momento global obrigam a reconsiderá-lo. Neste capítulo, eu gostaria de coletar os resultados de algumas discussões que poderiam ser úteis para avançar no debate sobre sua validade.
Aracy Amaral, uma das figuras mais importantes da crítica latino-americana, se aborrece cada vez que ouve pronunciar o termo “arte latino-americana”. “Esse vocábulo não indica realidade alguma”, disse mais ou menos nesses termos, “é incapaz de definir um contorno próprio acima de tantas singularidades que engloba”. Entendo que Aracy quer enfatizar o risco de idealizar tal conceito. Tratando de evitar este transe, hoje se tem o cuidado de não dotar o termo de um referente ontológico nem, consequentemente, imaginar que nomeia uma realidade homogênea e compacta, possível de se expressar em formas específicas.
Nos próximos pontos irei me referir a esses esforços por desconstruir os fundamentos (essencialistas) da arte, tanto me referindo a considerações variadas quanto nomeando rapidamente as posições que assume a chamada “arte latino-americana”, diante das investidas da modernidade e algumas questões que esses movimentos suscitam.
I. Desmontagem
Para dessubstancializar o latino-americano, vem-se trabalhando, em diferentes frentes, contra certos postulados tradicionais da historiografia e da crítica de arte. Refiro-me, rapidamente, ao questionamento de quatro importantes eixos conceituais:
1. A leitura dos processos artísticos como momentos de desdobramento lógico. Ou seja, a explicação das obras e movimentos a partir da evolução dos estilos formais que se concatenam entre si, empurrados por impulsos internos e orientados para um fim necessário. Esses estilos e tendências repetem, por sua vez, as racionalidades artísticas europeias: por exemplo, o Pós-impressionismo coloca problemas de conteúdo e forma que serão confrontados, respectivamente, pelo Expressionismo e pela geometria em um movimento que se repete, desbotado e tardio, adulterado, às vezes apropriado, na América Latina;
2. A explicação do movimento histórico a partir de oposições binárias definitivas e anteriores ao próprio movimento mesmo (por exemplo, as disjunções entre o latino-americano e o internacional, o erudito e o popular, o dominante e o dominado);
3. A consideração do fazer artístico como solução para tais oposições. Aqui opera a ideia de vanguarda: a arte resolveria os sucessivos conflitos por meio da ação de frentes iluminadas. A síntese das contradições exige uma tarefa de contínuas inovações e rupturas: a arte avança, encerrando e abrindo fases por intermédio de negociações e renovações radicais;
4. A construção de ideias omnicompreensivas – como Nação, Identidade, Povo etc. – que fundamentam a latino-americanidade e lhe atribuem uma origem. Essas megafiguras são apresentadas como base de toda a história (e, consequentemente, sintetizam no nível teórico essas oposições).
A desmontagem destes quatro quadros conceituais procura, por um lado, reformular alguns de seus temas básicos (como estilo, arte, identidade, utopia) e, por outro, desconstruir as dicotomias que as sustentam (forma – conteúdo, arte local – global etc.). A desconstrução perturba a estabilidade dos grandes conceitos, perturba seus fundamentos e torna complexo o tratamento das contradições. Encara os conflitos nos termos não de uma alternativa dualista fundamental – que deve ser resolvida em uma instância superior –, mas como momentos de um movimento não previsível, não indispensável: nem sempre conciliável em suas tensões e, tampouco, redutível em sínteses triunfais.
Essa possibilidade de analisar jogos de oposições provisórias e resultados variáveis, parciais, leva a uma visão mais errática do devir histórico e permite leituras ramificadas, sobrepostas e fragmentárias de seus processos. Ajuda, também, a desestabilizar os conceitos essencialistas e totalizantes, mobiliza a compreensão da história (das histórias) e a abre para interpretações plurais e cruzamentos multidisciplinares distintos. (Detenho-me um instante nesta encruzilhada: hoje é fecundo considerar o terreno artístico latino-americano como um lugar acessível a diferentes perspectivas e métodos, mas também como um campo aberto às contaminações multidisciplinares e espaços epistemológicos. Aqui é repensado o velho desafio de delimitar a especificidade do artístico sem sacrificar seus vínculos com outras dimensões do real).
II. Posturas
Para debater a validade do termo “arte latino-americana” é essencial levar em conta a discussão sobre suas modernidades, que se constituem em um eixo firme em torno do qual novas questões giram e velhos temas são repensados. É inevitável, portanto, que as diferentes formas de arte hoje sejam consideradas de acordo com os lugares que ocupam diante da posição moderna.
Posições modernas
Neste ponto, estão incluídas as situações, visões e sonhos típicos das modernidades latino-americanas (modernizações incompletas, fragmentárias, periféricas, em grande parte reflexas, como se sabe). A gestão de um conceito de nação definida como uma unidade compacta, forjada nos moldes do Estado e definida como contorno estável da produção artística, a sacralização das ideias de desenvolvimento e progresso e a vigência de grandes utopias totalizadoras e emancipatórias constituem as bases programáticas da modernidade. A partir delas, as vanguardas têm a missão de iluminar “o caminho certo” e transgredir constantemente o limite dos códigos de arte para acelerar o advento da redenção histórica. Os projetos latino-americanos modernos (variados, desiguais) recapitulam esse esquema de acordo com os diferentes ritmos de seus próprios tempos. Obviamente este quadro, simplificado neste texto até a caricatura, não significa, no instante da produção artística, mais do que um condicionamento: as obras que puderam assumi-lo e ultrapassá-lo constituem momentos significativos da chamada “arte latino-americana”.
Posturas diferentes
Em princípio, certos sistemas artísticos desenvolvidos na América Latina nada têm a ver com o grande projeto moderno, embora acabem enredados mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor grau, nos diferentes momentos desse projeto. Eles crescem para além dos esforços ilustrados. Apoiam-se em memórias antigas ligadas a territórios e tempos próprios, a discriminações que têm marcado sua autopercepção coletiva com os sinais de um “nós” diferente, diferido. Refiro-me às expressões que ocupam posições de exclusão, marginalização ou, pelo menos, desvantagem em relação àquelas assumidas pela arte erudita. Correspondem a setores excluídos de uma participação social efetiva: populações camponesas, indígenas e suburbanas; comunidades e coletividades marginalizadas, no geral.
O termo “arte popular”, no qual essas manifestações são usualmente entendidas, sempre foi um criador de conflitos. Para os modernos, o conceito não é viável na medida em que seus traços não coincidem com os da arte ilustrada, erguidos em padrões de validade universal (autonomia formal, gênio individual, originalidade e unicidade). As produções estéticas “pré-modernas” são consideradas, portanto, sob as categorias menores de “arte aplicada”, “artesanato”, “folclore” ou “cultura material”.
Os pós-modernos olham com mais indulgência para esses sinais marginais, mas acabam comprometendo sua especificidade. E isso por dois motivos. Primeiro, porque eles desconfiam dos fundamentos que os garantem (Povo, Território, Comunidade, Classe). Segundo, porque desafiam o dualismo usado para definir o popular (como contraposto a “iluminado”, “internacional”, “moderno”, “hegemônico”, “'massivo” etc.): é que em um mundo desterritorializado, todos os signos misturam-se e acabam por se tornar semelhantes em excesso.
Os modernos arriscam a diferença com o objetivo de atingirem grandes sínteses capazes de superar as posições contrárias: isto e aquilo terminam reconciliados em algum momento superior e necessário. Os pós-modernos arriscam essa mesma diferença aderindo a uma ideia apocalíptica de hibridização generalizada: a cultura-mundo acaba convertida em uma grande desordem em cujo interior agitado é impossível detectar qualquer particularidade e, portanto, reconhecer as diferenças. Talvez fosse necessário argumentar perante os primeiros o direito (e o fato) da alteridade: da existência de outros registros estéticos, de caminhos traçados à margem ou ao oposto dos indícios ilustrados ou cibernéticos. Enquanto teríamos que sustentar ante os segundos que nem tudo é misturado nos “desterritórios globais”: que existem núcleos duros capazes de conservar a memória e o desejo próprio em territórios teimosamente limitados em plena barganha planetária. E que a miscelânea, quando há (e há muita), sempre permite a ação de matrizes configuradoras de sentido próprio: maneiras particulares, alternativas, para reordenar o intricado estoque dos signos mundiais.
Por isso, as posições alternativas cruzam com naturalidade os ambientes pré, pós e a-modernos, assim como os modernos, aos que acessam por caminhos próprios e lançando mão de suas imagens por diferentes rumos. Por um lado, a partir da vigência de códigos profundamente enraizados em suas tradições culturais, certas comunidades étnicas tendem a preservar modelos simbólicos particulares. Por outro lado, numerosos setores subalternos e periféricos desenvolvem suas próprias respostas aos desafios da modernidade; respostas que, em muitos casos, acabam transcendendo o próprio programa moderno e coincidem, de fato, com os pressupostos pós-modernos (hibridismo, despreocupação com originalidade, inovação, bom gosto, validade etc.). Mas nenhuma posição é exclusiva ou conclusiva: os registros mais duros à influência moderna se apropriam de inovações e conquistas para reanimar seus imaginários fatigados e responder a novos desafios. E os sistemas mais transculturais não hesitam em olhar para o fundo de alguma ilhota estável da memória coletiva e extrair daí algum símbolo arcaico, que parece novo sob as luzes ambíguas da vitrine global.
Colocações pós-vanguardistas
As ambiguidades do termo “pós-modernidade” já foram suficientemente apontadas, cujo prefixo “pós” denota a pretensão (muito moderna, é claro) de constituir um estágio de superação da modernidade. Mas acho que não deveríamos ter medo dessa palavra estridente: por um lado, seu (ab)uso torna-a hoje inevitável e, como tal, quase confortável; por outro, é justo reconhecer que, enfraquecido pelo som desse prefixo, o conceito é cada vez mais entendido como um viés da própria modernidade. Como seu lado desencantado, talvez, seu rosto iluminado subtraído dos fatos tecnológicos e racionalistas, de suas pretensões de construir explicações totais e redentoras.
As “posturas pós-modernas” compreendem certas tendências da chamada “arte erudita” latino-americana desenvolvida durante as duas últimas décadas em uma direção questionadora da modernidade. Estas tendências apresentam alguns pontos comuns:
a. Reconsideração da borda crítica da arte. Após do primeiro momento mais radicalmente antiutópico e light das pós-modernidades, tenta-se recuperar o ângulo crítico de arte, agora desprovido de suas pretensões revolucionárias e totalizantes. Essa nova crítica volta a intensificar a minguada carga expressiva das primeiras pós-vanguardas e experimenta modelos não propensos à denuncia de contestação social e questionamento pessoal. Em vez de transformar a sociedade por meio de esforços retóricos ou argumentos expressivos, diferentes propostas estéticas procuram colocar questões para mobilizar os significados dessa sociedade. Mais do que esclarecer a compreensão da realidade a partir de sua conciliação com a linguagem, tais propostas procuram tornar esse entendimento mais complexo por meio dos enigmas que trazem consigo a colocação em cena do real. O utópico é reformulado como horizonte do desejo (e se volta, portanto, em sua própria origem etimológica: deixa de ser terra prometida, onde as contradições efetivamente se resolvem, tornando-se não lugar, ponto de fuga, referência reguladora com lembranças kantianas). A partir dessas posições, a emancipação da arte não é mais considerada um monopólio de agentes privilegiados e princípio de redenção universal e necessária: diferentes sujeitos se autoconstituem e se expressam em busca de projetos emancipatórios que podem ser particulares e conjunturais, provisórios e variáveis; que podem ou não se cumprir.
b. Interesse em fragmentos e alteridade. Ao recusar o modelo unilinear de temporalidade, formas paralelas aparecem: são imagens e discursos desenvolvidos na margem do trajeto único da Razão Moderna. Abandonando a pretensão de encontrar o Todo, os fragmentos e curvas, as histórias menores, tornam-se importantes. Anulados os compromissos libertadores da arte, ela perde sua seriedade dramática e pode voltar-se, irresponsavelmente, a aspectos considerados irrelevantes pela epopeia iluminada. Assim, o interesse pela “alteridade” cultural se destaca. Em teoria, pelo menos, as formas da arte hegemônica ocidental perdem seu monopólio exemplar. Isso acelera a preocupação com obras subalternas, facilita o surgimento de novos sujeitos produzindo arte e ilumina além dos limites da racionalidade moderna.
III. Elogio do oportunismo
Reformular o termo “arte latino-americana” implica, então, problematizar os fundamentos da arte da América Latina e tornar mais complexo o modelo binário em que as tensões são ordenadas. Essas tarefas abrem a possibilidade de entender esse termo em uma direção aberta a sentidos plurais, dependentes de contextos diversos, de oportunidades.
Trata-se, portanto, de entender a arte latino-americana como o resultado de um corte temporário correspondente a uma opção, uma estratégia provisória capaz de traçar perfis diferentes de acordo com as posições assumidas pelas diversas forças em jogo. Por isso, falar de “arte latino-americana” pode ser útil para nomear, não uma essência, mas uma seção, arbitrariamente retalhada por conveniência política ou histórica, por comodidade metodológica, tradição ou nostalgia. Enquanto o conceito for frutífero, é válido: serve para afirmar posições comuns, explicar e confrontar as tramas de uma memória indubitavelmente compartilhada, reforçar projetos regionais, acompanhar programas de integração transnacional (Mercosul, NAFTA etc.). Serve, talvez, como um horizonte de outros conceitos conquistados com muito custo: conceitos que, em posições-chave de poder, explicam particularidades e defendem diferenças. Conceitos que nomeiam o lugar do periférico e questionam as radiações pós-coloniais do centro.