Arte latino-americana a partir do Reino Unido: política, ética e estética
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Valerie Fraser (2012)
Tradução: Cássia Perez da Silva
Fonte: University of Essex. Disponível em: <https://www1.essex.ac.uk/arthistory/research/pdfs/arara_issue_11/fraser.pdf> (Última consulta, dezembro de 2020)
Este texto foi lido no simpósio Zones de convergence: l’actualité de la recherche en théorie et histoire de l’art latinoaméricain, organizado por Berenice Gustavino e Catalina Piñeda Catalán, que ocorreu no dia 7 de março de 2012 na Université de Rennes, na França.
Esta apresentação sobre o crescente interesse pela arte latino-americana no Reino Unido, enfoca necessariamente a minha universidade, a Universidade de Essex, que desempenhou um papel importante – na verdade central – no crescimento desse interesse. Portanto, peço desculpas antecipadamente se, por vezes, este texto parece algo autobiográfico. A Universidade de Essex foi fundada em 1964 (entrei na instituição como estudante de graduação em 1968) e o objetivo do presidente fundador foi criar um programa de estudos em artes e humanidades essencialmente interdisciplinar e comparativo entre diferentes regiões geográficas. Os primeiros quatro departamentos na Escola de Estudos Comparados foram Governo, Sociologia, Literatura e História da Arte, e todos os alunos admitidos ali tiveram que estudar os assuntos dos quatro departamentos. Isso explica por que me tornei historiadora da arte quando cheguei em Essex para estudar literatura. As regiões inicialmente escolhidas para a nova Escola de Estudos Comparados foram a URSS (era a época da Guerra Fria) e a América Latina (a Europa era pressuposta), e para todos os alunos foi oferecida a oportunidade de aprender russo ou espanhol por meio de um programa intensivo de estudo. Cada departamento solicitou como requisito o recrutamento de especialistas da URSS e da América Latina que puderam ensinar pelo menos um assunto na área. Ao mesmo tempo, estabeleceram-se centros de estudos latino-americanos e russos para facilitar a pesquisa e o estudo interdisciplinar.
Um indicativo da falta de pesquisa sobre a arte latino-americana na década de 1960 é que, quando o departamento de História da Arte selecionou a professora Dawn Ades, especialista em Dada e Surrealismo, também se esperava que ela desenvolvesse um curso em arte latino-americana. É difícil entender hoje a pouca informação disponível – muitos poucos livros, não havia internet para procurar imagens, o que obrigou Dawn a tornar-se uma pioneira do campo. Em 1970, a Universidade a enviou para o México e o Peru, com o objetivo de ver e fotografar exemplos de arte e arquitetura moderna, clássica e colonial. Acho importante mencionar que, durante as décadas de 1960 e 1970, a América Latina estava “na moda” por razões culturais e políticas: a Revolução Cubana, Che Guevara, Allende e sua “rota democrática para o socialismo”, o Muralismo mexicano, cartazes cubanos, cinema e romances latino-americanos. Estes não eram nichos para especialistas em América Latina, mas parte de um interesse mais geral no que foi chamado de o “Terceiro Mundo” e um sentimento geral de solidariedade com o “oprimido”. Líamos autores como Frantz Fanon e Régis Debray, por exemplo; estas leituras nasceram de interesses particulares e não de uma bibliografia imposta na aula. Uma fonte importante para nós, os interessados na cultura latino-americana, foi o livro The Modern Culture of Latin America: Society and the Artist, de Jean Franco, de 1967. Jean foi professora do Departamento de Literatura da Universidade de Essex nesse tempo. Mas no campo da história da arte, havia muito pouco material, especialmente em inglês, acessível aos alunos de graduação:
– Pelican/Yale History of Art Volumes on pre-Columbian (Kubler, 1959) e Colonial art (Kubler and Soria, 1962);
– Art in Latin America since Independence (1966), catálogo da exposição curada por Stanton Catlin;
–Alguns textos genéricos de Leopoldo Castedo (especialmente aqueles de 1969);
– E uma série de livros sobre arte mexicana: A Guide to Mexican Art from its Beginnings to the Present, de Justino Fernández (1961, trad. 1969); e textos mais específicos sobre os Olmecas (Ignacio Bernal, 1969), os Astecas (Miguel León Portilla) e o Muralismo mexicano (Mexican Mural Renaissance, por Jean Charlot, 1963 e A History of Mexican Mural Painting, de Antonio Rodríguez, 1969).
Estes foram os textos que formaram a base do curso de arte latino-americana desenhado por Dawn Ades durante os anos 1960.[1] No início, o curso de Dawn focou principalmente no México velho, colonial e nos muralistas. Esta concepção de “arte latino-americana”, em sentido cronológico, correspondia ao momento histórico como é exemplificado em History of Latin American Art and Architecture: from Pre-Columbian Times to the Present de Castedo.
Entrei para o Departamento como membro do grupo de ensino em 1979, e entre Dawn e eu, expandimos o programa de estudos latino-americanos para incluir dois cursos de graduação, um sobre arte e arquitetura pré-colombiana e outro na arte colonial e moderna. Também iniciamos cursos de especialização baseados em fontes latino-americanas originais e na cultura dos povos indígenas das Américas; o último, com os colegas do Departamento de Literatura. Gordon Brotherston, especialista em romance latino-americano, foi uma figura importante nestes cursos e ficou fascinado pelas diferentes formas de literatura indígena americana.
O campo realmente proliferou na véspera de 1992, o 500 aniversário (sic) da “descoberta” da América, foi comemorado por meio de uma série de exposições importantes na Europa e nos Estados Unidos, tais como: The Art of the Fantastic: Latin America, 1920-1987 (Indianápolis, 1987); Magiciens de la Terre (Pompidou, Paris, 1989 – uma exposição não exclusivamente latino-americana); America: Bride of the Sun, Amberes (1991); Circa 1492: Art in the Age of Exploration (National Gallery, Washington, 1991).
No Reino Unido, Dawn Ades curou Art in Latin America: the Modern Era (Hayward Gallery, Londres; Moderna Museet, Estocolmo; Palacio Velázquez, Madrid, 1989). E no ano seguinte, Guy Brett curou Transcontinental: Nine Latin American Artists (Ikon Gallery, Birmingham, 1990).
Tanto Magiciens de la terre quanto Art in Latin America de Dawn Ades, embora de uma maneira diferente, buscavam uma visão inclusiva da arte que se apresentava, incluindo trabalhos de autores que não receberam educação formal e que geralmente não eram de ascendência europeia, bem como tipos de arte ocidental mais familiar para o público europeu. No caso da América Latina, a tendência era, e ainda é, marcar uma distinção entre “arte” no sentido ocidental/europeu e “artesanato”; entre arte culto e arte popular. Devido à ignorância geral sobre América Latina na época e os preconceitos sobre o que constitui arte “boa” ou arte “real”, em sua exposição, Dawn estava ciente que incluir exemplos dessa arte “outra” (popular/indígena etc.) envolvia um risco real de que os artistas, cujo trabalho estava mais ou menos dentro da tradição ocidental/europeia, foram contaminados por isso e que a sua arte fora julgada como provinciana, derivada ou folclórica. A solução de Dawn foi tentar ser o mais aberta e receptiva possível, e incluir tal variedade de material que se tornasse impossível uma generalização sobre a arte “latino-americana”. Uma parte da exposição, com curadoria de Guy Brett, enfatizou alguns dos desenvolvimentos mais radicais do momento na América Latina, material que não poderia ser classificado como provincial ou derivado. Guy Brett foi outro pioneiro no Reino Unido durante este tempo, interessando-se por arte contemporânea na América Latina. Em sua exposição Transcontinental, de 1991, ele destacou a tremenda criatividade do continente, apresentando-nos artistas que nos resultavam desconhecidos na maioria dos casos.
Este grupo sem precedentes de exposições generais de arte latino-americana gerou tal interesse no campo da história da arte, que resultou na criação de diferentes publicações dedicadas à arte latino-americana, especialmente durante a década de 1990, tais como: Edward Lucie Smith (1993), Edward Sullivan (1996) e Jacqueline Barnitz (2001). Concentro-me no material em inglês, mas também houve desenvolvimentos paralelos em francês. Logo, no início do século XXI, publicaram-se uma série de dicionários sobre artistas latino-americanos, tais como: Encyclopedia of Contemporary Latin American and Caribbean Cultures (2000), que também incluiu, além da arte, literatura, cinema e música; Latin American and Caribbean Artists of the Modern Era, McFarland (2003); Grove Encyclopedia of Latin American and Caribbean Art (2006) e St. James Guide to Hispanic Artists (2002). A descrição do escopo do último é interessante: “Este guia fornece análise crítica de [...] artistas hispânicos do século XX do México, Porto Rico, Cuba, América do Sul e Central e artistas americanos de ascendência espanhola” . Vou voltar ao tema das relações entre os Estados Unidos e América Latina mais à frente.
Paralelamente a esse interesse acadêmico, no campo do mercado comercial da arte também se registrou um interesse similar pela América Latina. Até meados dos anos 1990, a Sotheby’s e a Christie’s costumavam contar com uma única venda dedicada à arte latino-americana. Desde meados dos anos 1990, começaram a ter dois, e uma maior quantidade de obras em cada leilão. A feira de arte especializada em arte latino-americana, PINTA, foi aberta em Nova York em 2006 e uma versão em Londres foi inaugurada em 2010, incluindo, entre seus participantes, galerias comerciais na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina.
É claro que, de mãos dadas com o crescimento do interesse em exposições e na produção de livros gerais e dicionários sobre arte latino-americana, e o interesse de colecionadores privados, houve também um crescimento na pesquisa especializada, na análise, a geração da teoria e a produção de crítica.
Obviamente não vou tentar resumir isso em detalhe, somente vou tentar identificar alguns pontos importantes, especialmente aqueles ligados ao Reino Unido. O primeiro tem a ver com a exposição Art of the Fantastic, realizada em Indianápolis em 1987. Esta exposição reuniu uma seleção de exemplos de arte latino-americana, feita durante os sessenta anos anteriores, classificada pelos curadores como exótica, diferente, mágico-realista e fantástica.[2] Como esperado, a exposição gerou respostas aquecidas, especialmente na América Latina, onde muitos viram-na como uma caricatura condescendente por parte de seu poderoso vizinho do norte. Uma resposta particularmente grave foi o volume editado por Gerardo Mosquera em 1995, Beyond the Fantastic, que reuniu textos de artistas e críticos da América Latina e ofereceu uma caracterização mais sutil da arte da região. Publicado em inglês, mas em Londres, não nos Estados Unidos, o livro foi importante para reforçar as ideias estabelecidas por Dawn Ades em Art in Latin America: (1) que o Reino Unido poderia ser estabelecido como uma plataforma alternativa de língua inglesa para a análise e interpretação da arte da América Latina; (2) que poderia oferecer um espaço menos combativo que aquele dos Estados Unidos, com seus repetidos clamores de autoridade sobre a América Latina desde o estabelecimento da Doutrina Monroe à frente, ou que o terreno traçado pelas tensões pós-coloniais em Portugal ou Espanha. No entanto, a saga das Malvinas nos lembra que o Reino Unido tem seus próprios problemas na região. Mosquera aprofundou sobre o assunto em seu artigo (frequentemente citado) “Goodbye Identity, Welcome Difference: from Latin American Art to Art from Latin America”[3] publicado em Third Text, em 2001. Neste texto, Mosquera defendeu um distanciamento do uso descritivo e adjetival do termo “latino-americano”, que sugere a existência de algo identificável como “latino-americano” nesta arte, em favor de uma determinação mais geográfica desde América Latina.[4] Certamente, este é apenas um dos muitos textos produzidos desde os anos 1990 em relação ao problema de classificação dessa área.
O crescente interesse pela arte latino-americana no Reino Unido de 1989 em diante gerou um crescimento no número de estudantes de pós-graduação que vieram para Essex, alguns do Reino Unido, mas também outros da América Latina, especialmente do Brasil e do México.[5] A energia desta comunidade de estudantes de pós-graduação foi fundamental para a fundação de nossa coleção, ESCALA, anteriormente conhecida como UECLAA.
Mas, primeiro, um pouco de contexto. Desde a sua fundação, um aspecto central do Departamento de História da Arte em Essex tem sido a ênfase em estudar obras de arte diretamente, em primeira mão. Visitas a museus e galerias em Londres, e uma visita de estudo à Itália são parte integrante de nosso programa de graduação. Mas isso, no caso da arte latino-americana, era simplesmente impossível. Nos anos 1970 e 1980, além das coleções de material arqueológico mexicano hospedadas pelo Museu Britânico, não havia realmente arte latino-americana exibida no Reino Unido. Esta foi uma das razões pelas quais Dawn Ades organizou a exposição na Hayward Gallery, em Londres, em 1989, que foi projetada para expor ao público britânico, incluindo os estudantes de Essex, obras de arte em primeira mão, além de gerar mais interesse no campo. Para Dawn, também foi uma oportunidade de explorar o campo com mais profundidade (foram necessários quatro anos de pesquisa para a exposição, incluindo viagens para ver e selecionar trabalhos).
Assim, quando em 1993, um de nossos alunos, Charles Cosac, ofereceu doar uma obra de arte que poderíamos usar em nossas aulas, aceitamos com entusiasmo. Nós decidimos, então, que este poderia ser o início de uma coleção dedicada à arte latino-americana que apoiaria nossas aulas e geraria projetos de pesquisa. O trabalho intitulado Memória, 1990-1992, é uma pintura do artista brasileiro Siron Franco. É uma intrigante pintura polivalente, em que o espectador é atraído por uma superfície prateada radiante que, após uma inspeção minuciosa e detalhada, deixa de ser uma comemoração. Seus detalhes apontam para dois aspectos distintos, mas igualmente destrutivos: a relação entre o Brasil e a economia global. Os animais nas sombras e as peles deles se referem ao comércio ilegal de peles na selva amazônica, enquanto a sugestão do caixão de uma criança e da mesma pintura prateada comemora um desastre que ocorrera recentemente no distrito de Goiânia, onde Franco morava. Em 1987, uma empresa internacional descartou ilegalmente contêineres de elemento químico radioativo (césio-137) em Goiânia e as crianças, atraídas pela substância resplandecente, começaram a brincar com ela. Como resultado, muitos morreram e vários ainda sofrem de problemas de saúde. Memória faz parte de uma série de obras – a série Césio – que Franco realizou para chamar a atenção para esse escândalo. Poderia afirmar que a superfície de prata linda e brilhante atrai o espectador, mas ela não poderia ser apreciada por meio de uma reprodução, o que reforça a importância de ver obras de arte em primeira mão: reforça a importância de ter a capacidade de ensinar a partir de obras de arte reais e, portanto, reforça a importância de ter uma coleção de arte latino-americana para poder ensinar adequadamente o assunto. E quiçá ainda mais importante, como doação fundamental, Memória serve como uma metáfora sobre as responsabilidades daqueles que estão no comando da criação de uma coleção de arte latino-americana no Reino Unido. O mercado global explora aos pobres. Explora àqueles que ficam excitados pelas possibilidades oferecidas pelos ricos e poderosos. A intervenção internacional casual pode ser devastadora. Uma universidade britânica, como guardiã de uma coleção de arte latino-americana, deve levar essas responsabilidades a sério. Podemos teorizar sobre como a arte da América Latina não precisa ser classificada como “tão boa” quanto a arte feita em outros lugares, em como ela não precisa ser integrada ao mainstream determinado pelos centros de cultura tradicional de Ocidente Mas na prática, para muitos artistas na América Latina é proveitoso fazer parte de uma coleção de arte em uma universidade britânica; às vezes, pode até ser uma honra. Não acho que Charles tivesse a intenção de que Memória agisse como uma advertência contra a exploração quando ele a deu para nós, mas gosto de usá-la como um lembrete de que construir uma coleção como nós fizemos – isso é, principalmente por meio de doações – deve ser visto como um contrato: é a nossa responsabilidade investigar as obras sob nosso cuidado, devemos levá-las a sério; tentar entender, como sugiro no título, suas dimensões políticas, éticas e estéticas, e comunicá-las aos nossos alunos.
É interessante que entre as primeiras doações existissem várias que se concentravam na ideia de uma coleção de arte latino-americana na Europa, ou na história ambivalente das relações entre os dois continentes. Um bom exemplo é uma doação antecipada feita pelo colecionador argentino Marcos Curi, que nos deu um desenho a tinta do Oscar Curtino chamado Cristóbal Colón [Cristóvão Colombo], datado de 1966. A obra – feita como uma história em quadrinhos – mostra um Colombo ganancioso e lascivo, enquanto outros conquistadores apunhalam-se nas costas e lutam pelo controle de novos territórios; por outro lado, os crédulos nativos recebem relógios inutilizáveis como presentes e louvam uma pirâmide feita de bens importados.
Voltando à criação da coleção, Memória foi a nossa primeira doação, mas dificilmente constituía uma coleção. Outro estudante de graduação, Gabriel Pérez-Barreiro, que retornava de uma viagem de pesquisa na Argentina, ficou chocado ao saber que estávamos propondo lançar uma coleção de arte latino-americana com uma pintura, uma pintura brasileira. Ele tinha bons contatos em Buenos Aires e solicitou várias doações para colecionadores e artistas. A ideia funcionou. Josefina Durini, uma galerista argentina que na época acabava de abrir sua galeria em Londres, facilitou várias doações importantes, incluindo uma de Szyszlo. Vários artistas doaram seu próprio trabalho e o trabalho de outros. Assim, por exemplo, a colombiana Emma Reyes, doou um desenho de Juan Soriano mexicano. E Siron Franco doou uma gravura do mexicano José Luis Cuevas. Foi um momento emocionante e resultava bastante prazeroso que os artistas gostassem de ser incluídos – suponho que acreditavam que levaríamos o seu trabalho a sério (espero que tenhamos feito, e continuemos fazendo isso). Em mais de uma ocasião, nos disseram que as pessoas queriam nos dar doações porque estamos na Europa, no Reino Unido, e não nos Estados Unidos.
Após a euforia inicial (oficialmente lançamos a coleção seis semanas depois de receber o trabalho de Siron Franco – tínhamos, então, 48 obras) rapidamente percebemos que tínhamos de ter uma política para colecionar, que não iríamos formar uma coleção confiável se aceitássemos qualquer doação. Estabelecemos um comitê no qual tivemos discussões interessantes e, muitas vezes, acaloradas. Quanto à classificação da “arte latino-americana”, assumimos que se as pessoas quisessem doar sua arte para uma coleção de “arte latino-americana”, então estaria satisfeita com essa designação. Assim, se um artista nascido na Venezuela e residente em Londres, por exemplo, ou nascido no Japão, mas residente no Brasil, queria ser incluído, então isso seria suficiente para nós. E de acordo com o amplo espectro curatorial exemplificado por Art in Latin America de Dawn Ades, tendíamos a ser inclusivos em termos de definições de “arte”. Tivemos uma reunião muito interessante, na qual debatemos se devíamos ou não incluir obras feitas por Warmi, artista peruana sediada em Londres. Cuauhtémoc Medina, agora na UNAM no México, não estava interessado. Lembro que ele olhou pela janela enquanto o resto da comissão falava sobre essas vasilhas, o uso de textos em espanhol, quíchua e aimará, ideias sobre a linguagem e diferentes tipos de literatura. Depois de um tempo, ele disse: “Você falou sobre isso por 15 minutos, então deveríamos aceitá-las”. Ele queria dizer que se pudéssemos encontrar coisas suficientes para dizer sobre um trabalho, se fosse suficientemente interessante, então devíamos incluí-lo. Poderíamos, por exemplo, usá-los na sala de aula ou em nossas investigações. Se alguém não tem algo a dizer sobre uma obra, não importa o quão agradável fosse esteticamente, então deveríamos considerar seriamente não aceitá-la. Este é um critério de aquisição que ainda usamos.
Às vezes a questão da “arte” vs. “artesanato” ficava muito tensa. Em uma ocasião, alguém nos disse com muita firmeza que, se aceitássemos material que fosse percebido como “artesanato”, alguns dos colecionadores privados, mais esnobes, que nos apoiavam com “boas” doações, deixariam de doar e talvez convenceriam outros colecionadores a fazerem o mesmo. Temos tentado ser cautelosos nesta área, e temos aceitado peças que se relacionam com outras obras da coleção – por exemplo, uma gravura de Hermosilla e trapelacucha mapuche – ou que podem ser relacionadas a outros aspectos significativos da arte da América Latina. Por exemplo, seguindo a maravilhosa polivalência do termo bicho, os “bichos” do Recife, fornecem um ponto de partida para a discussão sobre os Bichos de Lygia Clark.
E assim a coleção cresceu. Tem crescido de forma desigual, porque as doações têm sido associadas, frequentemente, aos nossos interesses de pesquisa e aos dos nossos alunos. Mas isso está bem, a coleção tem uma história e, portanto, uma lógica interna. Nós temos muitos trabalhos da Argentina e do Brasil, por exemplo, mas não muitos do México. Temos trabalhos em diferentes mídias. Em particular, temos trabalhos em papel, porque são fáceis de transportar. Pela mesma razão, temos muitas obras de artistas latino-americanos que vivem no Reino Unido e na Europa, por exemplo, Cruz-Díez ou Armando Varela. Atualmente temos cerca de 700 obras de mais de 17 países, a maioria feita nos últimos 30 anos, mas com algumas peças mais antigas como as de Olalde e Sacerdote.
Também expandimos nossas definições de arte latino-americana incluindo uma pintura do artista da Guiana, Aubrey Williams, e uma série de gravuras da artista chicana Yolanda López que, estritamente falando, não se encaixa no que é agora a nossa definição oficial de América Latina, que é mais geográfica do que cultural: “todos os países ao sul do Rio Grande e suas ilhas adjacentes, independentemente da língua”. Nos Estados Unidos é provável que López seja classificada como “latina”, enquanto ela se considera chicana.
Arte “latina” é atualmente um assunto amplo e complicado nos Estados Unidos. Por um lado, está o Smithsonian American Museum em Washington D.C., que defende uma “inclusão pioneira” reconhecendo os latinos como americanos e incluindo suas obras em seu museu. Isso é bom, mas eles fazem isso em uma seção dedicada à “arte folclórica, arte afro-americana e arte latina”. Esta seção inclui artistas como Ana Mendieta, Carmen Herrera e Vik Muniz. Imagino que Mendieta se considerasse cubano-americana. Não sei como Herrera ou Muniz pensam a si mesmos, mas duvido que seja como “latinos”, e muito menos como artistas “folclóricos”. Isto é, naturalmente, porque as pessoas têm razão em se sentirem desconfortáveis com perguntas sobre arte culta e arte popular – depende de quem está usando as categorias e com quais intenções. Por outro lado, há um tremendo entusiasmo e sentimento de empoderamento entre os artistas latinos. Muitas coisas estão acontecendo simultaneamente.
A questão do “latino” nos Estados Unidos é um bom exemplo de como um campo de pesquisa pode parecer completamente diferente de outro ponto de vista. Nos Estados Unidos este termo gera perguntas e questões éticas e políticas muito reais. A partir da Europa, podemos nos dar ao luxo de ver a questão do “latino” de uma perspectiva mais acadêmica, como um tema de pesquisa.
O que me permite retornar rapidamente a Essex. Meu mais recente projeto de pesquisa foi Meeting Margins: Transnational Art in Latin America and Europe 1950-1978, uma colaboração entre a Universidade de Essex e a Universidade das Artes em Londres. A premissa que guiou o projeto foi, de várias formas, um desenvolvimento da premissa de Serge Guilbaut desenvolvida em seu livro How New York Stole the Idea of Modern Art/Comment New York vola l’idée d’art moderne de 1983. Embora Nova York gostasse de pensar que roubou a ideia de arte moderna, a história não é tão simples e em áreas que, do ponto de vista norte-americano são marginais, acontecem muitas coisas interessantes. Nas décadas do pós-guerra, as trocas entre a Europa e a América Latina foram muito proveitosas. Arte, artistas e ideias mudaram de um lado para o outro. Aqui está uma rápida série de exemplos:
– Pierre Restany, cujos arquivos estão em Rennes, é um excelente exemplo de alguém que viajou incessantemente pela América Latina e pelo mundo e facilitou os intercâmbios transnacionais. Ele escreveu sobre arte postal, era amigo de Mário Pedrosa etc.;
– Mário Pedrosa, que, exilado do Brasil, emigrou para o Chile, tornou-se a energia por trás do Museu da Solidariedade, atraindo doações do mundo todo como suporte para o projeto Allende no Chile;
– Felipe Ehrenberg mudou-se em 1971 do México para a Comualles, Reino Unido, onde fundou a editora Beau Geste junto com David Mayor;
– Trocas transnacionais por meio de exposições, bienais e arte postal;
– O impacto dos escritos de Herbert Read sobre a América Latina, o impacto dos cineastas venezuelanos em Paris etc.
A atmosfera criativa da época foi em parte motivada por um sentimento compartilhado de oposição, tanto política quanto cultural, frente aos Estados Unidos, especialmente durante a era anticomunista de McCarthy. Certa vez, perguntei a Cruz-Díez por que ele escolhera Paris em 1955 em vez de Nova York, e ele respondeu: “Por que eu iria querer ir para Nova York? Não havia nada para mim lá”. Ele estava genuinamente surpreso com a minha pergunta. Para outros, é claro, acontecia o contrário. Obviamente nós não queremos apagar Nova York da história da arte latino-americana do século XX; no entanto, o Meeting Margins tem trabalhado para um melhor entendimento complexo e nuançado sobre a história da arte latino-americana.
Para mim, um dos resultados mais importantes do projeto Meeting Margens foi o estabelecimento do fórum sobre Arte Latino-Americana Transnacional que organizamos em colaboração com a Universidade do Texas em 2009. Este evento foi destinado a jovens pesquisadores e envolveu mais de 60 participantes dos EUA, Reino Unido, Europa e América Latina, com esta última região muito bem representada. Tratou-se de uma exitosa reunião de mentes, em que espero que ninguém tenha se sentido como se ele ou ela estivesse trabalhando em um campo de pesquisa marginal. Certamente o encontro ajudou a gerar ainda mais interesse no campo e estimulou a criação de outros simpósios que seguiram numa linha similar. Em abril de 2012, realizamos um encontro em Madri. Em outubro acontecerá o terceiro fórum no Texas.
Toda esta atividade está nos ajudando a refinar nossa compreensão de um panorama mais amplo do que queremos dizer quando dizemos “arte latino-americana”. Acho que ainda precisamos dessa ampla categoria, não apenas como um andaime para a produção intelectual, mas temos que questionar onde, quando e como a usamos.
Este evento é hoje uma contribuição importante para a expansão deste campo de estudo, mas ainda há muito trabalho emocionante por ser feito.
Muito obrigada e parabéns.
Notas
[1] Havia também outro material em espanhol, especialmente escrito por Damián Bayón e Marta Traba; e em português, por exemplo, o trabalho de Aracy Amaral.
[2] Não vi a exposição, mas é importante notar que, embora a premissa fosse falha, o catálogo permitia o acesso a uma vasta gama de obras de artistas, das quais nunca tínhamos ouvido falar. “Esta foi uma exposição extremamente interessante, mas apenas parcialmente bem-sucedida”, como Edward Sullivan disse em sua resenha para Art Journal, n. 47, Winter 1988, p. 4.
[3] (NdE) O texto de Mosquera está nesta compilação.
[4] Esse foi o desenvolvimento do seu ensaio de “El arte latinoamericano deja de serlo” publicado no catálogo de ARCO Madrid de 1996; reimpreso em Arara, n. 10 como “Latin American Art ceases to be Latin American Art”. Para mais informação, ver: METLISS, Miriam. Critical Debates Concerning Latin American Art and the ‘Mainstream’: A Brief History. In: Arara, n. 10, 2011, ambos ensaios disponíveis em: <www.essex.ac.uk/arthistory/research/arara.aspx> (Em dezembro de 2020 o site não estava mais disponível).
[5] México e Brasil oferecem agora mestrados e doutorados em História da Arte que não existiam nos anos 1990. É interessante que agora tenhamos estudantes da Bolívia e de Porto Rico. Talvez, em dez anos, haja programas de pós-graduação nesses países também.