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A arte latino-americana: um falso apocalipse

 

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Marta Traba (1965)

Fonte: Jornal El Nacional. Caracas, Venezuela, 2 de maio de 1965.

Tradução: Eustáquio Ornelas Cota Jr.

 

A arte latino-americana tem sofrido, nos últimos cinco anos, um processo visível de “despersonalização”. Isso faz sentido se for interpretado como o resultado de uma reação vertical contra o nacionalismo estético ditado por decreto nas paredes do México e obedecido por um amplo volume de artistas do continente.

 

A reação que empurrou para o universal de uma maneira muito abrupta e aguda (dentro da qual se incluiu o desprezo pela “cor local” resolvida em formas vergonhosamente turísticas ou ridiculamente sociais) é, no entanto, apenas um dos motivos para a despersonalização. Outro igualmente válido é a ida permanente dos melhores artistas para fora de seus países e o estabelecimento temporário ou definitivo dos mesmos na Europa ou nos Estados Unidos, com o objetivo de se colocarem lado a lado de europeus ou de americanos e conquistar a partir do exterior, com a notória desvantagem de virem de uma região em que ainda não aparece nas histórias da arte, senão pelas linhas breves, geralmente erradas, pelos mesmos mercados, mesmas galerias e notas críticas semelhantes.

 

Por último, também incide na despersonalização, o crescente internacionalismo da arte que afeta por igual não apenas os artistas latino-americanos, mas todos os artistas contemporâneos. Com o agravante, no nosso caso, do artista não adquirir linguagem própria, exclusivamente sua, de seu país ou região, na qual eles reconheçam formas singulares de expressão ou a continuidade de um certo temperamento, mas modalidades híbridas, importadas, que não vale a pena defender.

 

Não há, em outras palavras, uma conduta estética latino-americana, como existe, por exemplo, no Mediterrâneo, na Europa Nórdica, na Ásia, na Alemanha ou no Sião. Destes três fatores que determinam e condicionam a despersonalização dos últimos anos, o mais novo é o de artistas latino-americanos no exterior, não apenas viajando, como sempre ocorreu e como desde o início do século têm feito pintores e escultores, contudo ao chegarem a Nova York ou Paris, com a vontade de incorporar-se, acabam mimetizando o grupo existente; sendo patrocinados pelas galerias, eles se tornam perfeitamente colonos disciplinados de territórios que não lhes pertencem. As exposições dos latino-americanos em Nova York, por exemplo, mostram artistas que antes tinham personalidade ou erros próprios quando trabalhavam em outro ambiente, mas que depois foram submetidos a uma docilidade assombrosa e niveladora dos sinais da moda: expressionismo figurativo, letras, colagens, relevos, pop e op[tical] arte, formas múltiplas do novo realismo são digeridas por esses atentos e dedicados discípulos.

 

A última exposição de latino-americanos que trabalharam em Nova York (México, Palácio de Bellas Artes, novembro de 1964) me pareceu um espetáculo repugnante.

 

Com exceção de Fernando Botero, um colombiano, leal às suas enormes figuras grotescas, e de Armando Morales, um nicaraguense, que em seus quadros expostos defendia bem a poesia simples e solitária, os demais haviam vendido sem nenhum pudor a alma ao diabo da mimetização. A pintura se recuava como um ato vergonhoso. O sorriso de ceticismo com que os esnobes ultramodernos olham para a pintura (O que é a pintura? O que significa trabalhar sobre uma tela? O que quer dizer buscar espaços ou formas da escultura? Que termos obsoletos, fora de moda e parecidos são estes? Agora tem que se falar de ação, gesto, nova realidade, alguma coisa, qualquer coisa, o que eu quero, “disso”...) dobra os pintores. É então necessário dissimular o fato indecoroso de ser um pintor. E todos eles se disfarçam, ficam atrás das portas e se limitam com os seus gestos miméticos, assegurando que aprenderam a lição.

 

A atitude atual da maioria dos pintores latino-americanos importantes, nada mais faz do que ratificar a tese de que nossos artistas foram, são e serão discípulos, enquanto os nossos países, em particular a região latino-americana como um todo, não tiverem uma fisionomia própria, que logicamente só pode ser a consequência – e nunca o precedente – de sua evolução política e de seu desenvolvimento econômico. O discípulo é um produto do subdesenvolvimento econômico e político. Você não pode ter personalidade sem ser uma pessoa. Aí reside todo o problema.

 

Dentro do nosso continente, o país que mais se aproxima dessa identidade própria é o México, daí as suas justificadas e inflamadas defesas da personalidade artística. É natural que o México tenha pretendido forçar o curso de criação de uma personalidade, que a tenha armado artificialmente, subordinando a estética às estruturas políticas e colocando a arte, pela força, em formas ideológicas. Os artistas plásticos fracassaram por causa desse esforço para administrar politicamente a livre invenção do artista, mas nos escritores, entre os quais não havia nenhuma imposição invasiva e compulsiva de uma estética política, são notados os sintomas inequívocos da personalidade de um país que soube estruturar-se de acordo com uma fisionomia peculiar.

 

A condição de discípulos, portanto, acaba por ser uma postura inevitável em nosso meio atual, menos equivocada, é claro, que o empenho insensato de se alienar gratuitamente à arte social, comprometida, patriótica, nacionalista ou política, em países com problemas sociais intocados, carentes de consciência nacional, com políticos dominados por grupos antipatrióticos. Mas aprender a pintar aceitando o ingresso tranquilo em uma estética contemporânea é completamente válido, na minha opinião, e favorece o desenvolvimento de bons artistas, enquanto a América continua nessa espécie de prólogo de qualquer decisão, preferindo se submeter ou concordar em vez de sacudir-se e atuar com energia para qualquer objetivo que a descongele e permita entrar em uma dinâmica. Aprender a pintar, repito, ou aprender o ofício da criação estética, é válido; já o mimetismo progressivo e crescente é, por outro lado, tão desconcertante quanto perigoso.

 

Forçar a arte a adotar uma personalidade, uma idiossincrasia americana antes que tal idiossincrasia exista, é, sem dúvida, um ato de coerção perfeitamente irrelevante. Mas a radicalização do problema na direção oposta, isto é, a rendição incondicional antes de lutar uma batalha, a abdicação de qualquer individualidade sem ter tentado ser de alguma forma individual, é um erro tão protuberante e patético quanto o primeiro.

 

Não estou especulando sobre teorias gerais. Nos últimos cinco anos, tenho visto uma pintora forte e misteriosa como María Luisa Pacheco (boliviana) chegar em Nova York, até uma pintura gestual completamente vazia de significado. O argentino Antonio Seguí, em Paris, converteu-se em um brilhante epígono dos neofigurativistas europeus; os extraordinários coloritmos de Alejandro Otero transformaram-se em portas de armários velhos (em Paris); o colombiano Miguel Ángel Cárdenas (na Holanda) voltou-se a um “nieuwe realisten” capaz de infiltrar-se entre os maiores inventores de extravagâncias. A argentina Sarah Grillo preencheu os seus lisos e signos com superfícies poéticas de letras e sinais sem sentido (em Nova York); o mexicano Gironella abandonou a sua matéria enorme e dramática por montagens ridículas de pernas de cadeira; e assim eu poderia continuar a apontar casos de mimetismo de uma lista interminável.

 

Assim como na literatura de ficção científica, dos quadrinhos abomináveis ​​às grandes histórias de Ray Bradbury, que invadiu o nosso mundo em pouco tempo, a pintura parece ter se transformado em pintura-ficção ou arte-ficção. Não se trata, que fique bem entendido, da arte de Jean Dubuffet na França, que admiravelmente desenvolveu diferentes soluções propostas pelos melhores do “pop” norte-americano, tampouco da arte derivada de investigações espaciais, luminosas ou auditivas, tal como vêm desenvolvendo os artistas relacionados às recherches de l’art visuel na Europa, ou um gênio isolado como Tinguely. Não, trata-se da arte mais incomum em uma soma gratuita e não premeditada, em plena contradição com o dogma da infância, que nos era repetido incansavelmente: “Não é possível somar dez laranjas com quatro sapatos”, “não se pode somar quatro homens com seis carros” etc. A arte-ficção acrescenta “arte” (elementos potenciais de criação, espírito inventivo, ânimo de ordem ou desordem), mais “qualquer coisa”, significando qualquer coisa os fragmentos visíveis da realidade (mangueiras, vassouras, dentes, letras, luvas), e também as atitudes contraditórias com a própria noção de arte: fazer porque se cria conflitos aparentes e gratuitos, apela-se ao gesto de utilizar o choque, o abrupto ou a pornografia.

 

A este estado geral do submundo da pintura e escultura contemporâneas (que se ergue um mundo ainda indene, de inquestionáveis valores estéticos) os miméticos aderem submissamente.

 

Este esquema desalentador não é, no entanto, total. Algumas reações individuais propõem uma solução ao dilema que afronta a arte latino-americana entre tratar de ser, abusivamente e a priori, uma arte com identidade equivocada, e declarar-se por fora de qualquer tentativa de individualidade.

 

As soluções são pessoais. Elas não têm, não podem ter, qualquer ambição de generalidade.

 

Também não são as únicas. Refiro-me a dois os quais conheço bem o desenvolvimento de seus trabalhos: a obra de Alejandro Obregón, colombiano, e a obra de Fernando de Szyszlo, peruano.

 

A obra de Obregón mantém com a América, e mais exatamente com o seu país, a Colômbia, uma referência direta de imagem geográfica. A de Szyszlo procura uma relação indireta com a história pré-colombiana no Peru.

 

Obregón aceita os elementos da paisagem, situando-os em suas antíteses: cordilheira e mar, vulcões e praias. Para habitar a paisagem, não recorre ao homem, mas a animais e plantas. Na cordilheira, ele coloca o condor e, em seguida, mistura o touro com o condor até quase chegar a um ser híbrido: o touro-condor.

 

Na praia encontra-se o peixe e a iguana, às vezes os pássaros, e finalmente, o mangue. Nada do que ele escolhe, nem flora nem fauna, pertence ao mundo trivial da vida possível e cotidiana. Seus seres correspondem às noções radicais de extrema força ou extrema fragilidade e sempre com magia e mistério. Nem a paisagem, nem os seres ou a flora são plenamente identificáveis. Para extraí-los de seu realismo e conferir-lhes uma verdade pictórica e poética, Obregón integra-os com o seu espaço irreal, o espaço superpovoado, entrelaçado e barroco, cheio de formas, montanhas, condores e vulcões, ou o espaço invertido de praias e mar, onde o céu parece uma praia e a praia é tão transparente e atônita como se fosse um céu de cabeça para baixo, insistindo ambos, céu e praia, em tornar-se pontos de fuga, absolutos, desafiantes e perturbadores.

 

A conversão de uma geografia real em mito, somente pela força das soluções pictóricas, parece-me uma proeza de insuspeitável magnitude.

 

É por isso que quero sublinhar, destacar, pôr bem em relevo.

 

Assim, será compreendido que o trabalho de Obregón não é uma explicação de paisagens com temas laterais, mas a suposição de um certo fato, uma terra, um âmbito inescapável onde se vive e morre, para dar poder expressivo a um existir estético tão coerente e forte que permite deduzir dele um temperamento não apenas de artista. Obregón, mas também as circunstâncias: a circunstância colombiana que ele declara e explica. Solidão e irracionalidade, contradições, batalha sonâmbula e sem sentido, a vida fugaz de coisas, fugaz e explosiva, mortes súbitas, esplendor não contaminado das coisas em si toda vez que o homem está ausente. E quando aparece, raramente, o homem está sempre na vocação da morte. Não de qualquer morte. Da morte estupefata, morte em vez de inocência (Violência, 1962), morte em luta, por quê? Defendendo a quem? Atacando o quê? (Violência, 1963). Obregón dá o testemunho mais dilacerante do homem colombiano: vida e morte sem nenhuma motivação lógica.

 

Passa pelos riscos da descrição, do folclore, da acusação de fazer pintura de maneira seca (isto é, hoje, pintura antiquada). Não cai em nenhuma dessas armadilhas. Ele as evita magnificamente com uma linguagem leal a si mesmo, nunca abalada por outras alterações, além de sua própria paixão, que ele expande ou reprime ao seu bel prazer. O problema que enfrentou Fernando de Szyszlo no Peru foi tão difícil quanto o de Obregón na Colômbia, embora de natureza diferente. Voltar-se para os incas em um país estático como o Peru, apoiado nas suas linhagens pré-colombianas e coloniais, e justificar como quase todos os países latino-americanos ricos em tradições viviam na inércia atual, era um empreendimento desesperado. Por que o que são os incas para um peruano contemporâneo? Um argumento sofista sobre a continuidade das tradições? Uma maneira retórica de ser “alguém” com uma árvore genealógica? Uma repetição de formas geométricas austeras? O encontro de um sinal? O descobrimento de um espírito?

 

Talvez essa tenha sido a última coisa que aconteceu com Szyszlo. Para ele, tinha mais caráter de descoberta do que para um verdadeiro peruano. Szyszlo é filho de uma mãe peruana e de um pai polonês, tal como o maior pintor cubano, Wifredo Lam, que é filho de uma mãe cubana e de um pai chinês; e não é uma simples coincidência que ambos tenham visto com estranha lucidez e profunda curiosidade a melancolia e a magia subjacentes aos seus respectivos povos. A verdade é que Fernando de Szyszlo encontrou na história, nos textos e na poesia provindos dos incas, o sentido que daria razão e significado às suas formas ásperas, peças quebradas em uma luta vã sobre cores densas e atmosféricas. Sua obra, que levantava o combate de formas, foi carregada da busca de significado, vinculando-se aos textos incas, dessa poderosa nostalgia e receptividade, algo incompreensível e passível de morte, que era desde o princípio, talvez inconscientemente, a sua verdadeira vocação. Mas ao mesmo tempo em que encontrava em um grande drama estático a sua mais autêntica afinidade, a obra de Szyszlo dava à toda a pintura peruana uma dimensão épica, de canto e epopeia reencontrada. Ele fazia uma pintura de linhagem: densa, altamente sombria, cheia de hermetismos sem chaves, desdenhosa de qualquer explicação.

 

A obra de Obregón define um país, uma existência ainda primitiva, entre a realidade e o signo, sem chegar a revelar qualquer um dos dois termos. A obra de Szyszlo define uma raça, uma negação dilacerante de todo o ser, uma insistência na antiga tradição ainda existente.

 

Citei Lam e devo acrescentar que este admirável cubano foi um descobridor da América na pintura, com um talento que muitas vezes tocava o genial. E o mesmo pode ser dito de Matta ou de Tamayo. Mas a geração de Matta, Tamayo e Lam entrou no campo da pintura sem conflito porque a frente de oposição dos realistas americanistas era fraca demais para incomodar os seus talentos firmes. Era proclamada a pintura, quando os europeus e americanos estavam na mesma, procurando-a e encontrando-a. Coincidiam com uma explosão geral surrealista que reorganizava a desordem dentro da ordem mágica e da livre invenção inclinada aos significados irreversíveis da poesia.

 

Os casos de Obregón e de Szyszlo são completamente diferentes. Eles não correspondem a nenhuma escola ou atitude geral, e se expressam em uma linguagem de superfície pintada que foi pisoteada pela avalanche de ficção artística e pelos neofigurativistas com tendência ao monstruoso e ao grotesco. Seguem denunciando uma afiliação poética quando a poesia pictórica parece ter sido brutalmente cancelada. Eles não são sobreviventes cegos; claro que não. Permanecem conscientes de sua localização, além disso, sofrem, mas se negam ao ambiente de mimetização. Se esta é uma luta pública, eles perderam-na, pelo menos temporariamente: o oposto é esmagador em números, com poder de invenção e mistificação, interesses investidos, mercado. Se isso é um combate pessoal, um corpo a corpo com o anjo, eles ganharam. Só eles verão o alvorecer enquanto os vociferantes miméticos, enredados em suas próprias artimanhas, não perceberão essa luz indecisa.

 

Nos momentos em que a estética admirável e geral do século parece devorada por uma histeria coletiva momentânea, não há mais fundamento do que convicções pessoais. Isso é muito difícil porque, além de tudo, o apocalipse é terrivelmente sedutor. A maioria dos bons pintores e escultores latino-americanos contemporâneos decidiram se tornar os anões e os bufões do Grande Apocalipse. Mas não observaram um tremendo fato, que envolve completamente as suas contorções estéreis: a América está no limbo e não vê, nem ouve, nem apresenta, os trombeteiros e suas trombetas.

 

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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