Uma vizinhança inesperada: Salvador Muñoz Viñas e Kunihiko Aizawa
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Provavelmente Salvador Muñoz Viñas e Kunihiko Aizawa não se conhecem. Nem a especialidade de cada um faria supor alguma proximidade. No convite feito a ambos para publicarem um texto nesta edição GECAC do Periódico Permanente, houve um grau de aleatoriedade. Havia a expectativa por um conteúdo que ultrapassasse a ortodoxia da conservação, uma formulação para além dos propósitos técnicos e científicos, considerando que o conjunto das obras contemporâneas convoca, nos envolvidos em sua preservação, uma compreensão à altura de sua complexidade. Ou, nas palavras de Eduardo Kac1: “uma visão de longo alcance que reconheça, em um único gesto, o valor cultural da obra e sua irredutível materialidade”.
Apesar da crescente produção contemporânea made in Brazil, as discussões sobre sua preservação no âmbito institucional não são intermitentes nem periódicas, mas ocorrem por surtos, atrapalhando o alargamento e aprofundamento de questões candentes e que exigem uma revisão das práticas museológicas atuais. Questões como: documentação de processos e poéticas artísticas não convencionais, metodologias em preservação e exibição de obras digitais, conservação e comunicação de criações efêmeras como as performances e a conservação de obras, intencionalmente ou não, autodestrutivas.
Na edição de 14 de dezembro de 2021 do programa online INCCA Talks2 o artista mexicano Raphael Lozano-Hemmer, propôs que os museus assumam a inviabilidade da conservação de certas obras e ofereçam à estas. uma “morte digna”, com uma última exposição ritualística da obra e sua documentação completa incluindo registros textuais, fotográficos e audiovisuais dos materiais que a constituem, processo de criação, todas as exposições, intervenções de restauro, publicações e entrevistas com o artista, curadores, historiadores e até com o(s) público(s). Claro que a proposição de Lozano-Hemmer abdica da (intervenção de) conservação. Então, a questão é: de qual conservação está se falando, ou melhor, conservação do quê?
Muñoz Viñas é um conservador filósofo, sem deixar a prática e a docência, é grande a sua produção teórica, e o seu livro Teoria Contemporanea de la Restauracion tornou-se um clássico. Embora tenha escrito textos sobre a conservação de arte contemporânea3, o texto que integra esta edição não é específico, discorre sobre as implicações dos atos de conservação, uma vez que a conservação sempre altera o objeto, frequentemente para melhor. Tema este pouco presente, se não totalmente ausente, das ementas dos cursos e debates da área. O paradoxo apontado por Viñas é que em arte contemporânea trata-se de “conservar a alteração”4, uma contradição em termos.
Já Aizawa, não é teórico nem docente. No entanto, sua formação em ciências sociais, fato raro na área, aplicada à experiência de décadas como conservador nos principais museus de arte contemporânea do Japão, possibilitou uma percepção dialética, assumindo as contradições envolvidas nas operações de conservação que considera a obra como criação única, mas cuja existência está inserida em uma instituição, em uma sociedade e em um tempo. As decisões de conservação não se sujeitariam aos dogmas da conservação tradicional tais como o da “reversibilidade” (aplicado a materiais e procedimentos) mas seriam resultantes de análises caso a caso e compromissos institucionais e sociais.
A vizinhança inesperada desses conservadores distantes revela a existência de pensamentos heterogêneos, necessários à uma fundamentação prática e epistemológica da conservação de arte contemporânea, em processo de eclosão. E principalmente, necessários à uma mudança nas instituições e nas abordagens, para além das intervenções limitadas às estruturas existentes.
1 Arte contemporânea: preservar o quê? / organização Cristina Freire. São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2015.
2 International Network for the Conservation of Contemporary Art. https://incca.org/incca-talk-raphael-lozano-hemmer
3 MUÑOZ-VIÑAS, Salvador; The artwork that became a Symbol of itself: reflections on the conservation of modern art, in Theory and Practice in the Conservation of Modern and Contemporary Art, London: Archetype, 2010.
4 Ibidem.