O que conservar?
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Tradução: Joana Asseff Neves
A noção de ‘autenticidade’ é um problema complexo; talvez por sua relação com a ideia de ‘verdade’. No final de 1994, o Japão convocou uma reunião internacional de especialistas em Nara para discutir sobre a noção de autenticidade. A Noruega, antecipando-se, convidou no início do mesmo ano, um pequeno grupo de investigadores, em Bergen, para discutir temas relacionados. A prova de autenticidade era considerada até então, pelas Diretrizes Práticas do Patrimônio Mundial, fundamentalmente na sua relação com a forma e a estrutura original (desenho, materiais, mão de obra e entorno); ainda que incluísse todas as modificações e adições posteriores (que em si mesmos possuem valores artísticos ou históricos) ao longo do tempo.
A reunião de Bergen propôs ampliar estas referências: 1) desenho/forma, 2) material/substância, 3) técnica/tradição, 4)objetivo/ intenção – função, 5)contexto/ entorno – espírito. (JOKILEHTO, 2020, p. 77)
Essas referências estão conectadas diretamente com as causas propostas por Aristóteles por volta de 300 a.C. Aristóteles considerava que toda mudança tem uma causa; dito de outra forma, que algo segue sendo o mesmo, se nenhuma dessas causas mudam1. Os tipos de causas segundo Aristóteles são: a formal, a material, a eficiente e a final. Essas quatro causas têm uma correspondência direta com as referências propostas em Bergen: desenho/forma - causa formal, material/substância - causa material, técnica/tradição - causa eficiente, objetivo/intenção – causa final. As duas primeiras são intrínsecas (constituem o ser) e as outras duas se consideram extrínsecas (explicam a transformação), assim como a quinta referência de Bergen; contexto/entorno-espírito. As duas primeiras causas estão no objeto, enquanto que as duas últimas estão nos sujeitos, ainda que a relação objeto-sujeito se dê em determinado contexto, o entorno espaço-temporal condiciona a sensação, percepção e cognição do sujeito em relação ao objeto.
Essas causas foram incluídas na Carta de Nara destacando que “o termo ‘autenticidade’ aplicado ao patrimônio cultural tangível não é relevante ao identificar e salvaguardar o patrimônio cultural imaterial”; já que se considera que será “recriado constantemente por comunidades e grupos em resposta ao seu entorno, sua interação com a natureza e sua história, lhes proporcionando um sentido de identidade e continuidade” (JOKILEHTO, 2020, p. 79).
Algo é autêntico quando é fiel ao que é e ao que representa, enquanto que algo é idêntico quando é igual a si mesmo. Poderíamos dizer que o ‘estado de autenticidade’ está relacionado com o objeto e a eficácia simbólica com o sujeito (enquanto as possibilidades semânticas, comunicativas, do objeto).
Todas as teorias da Restauração: Restauro (C. Brandi), Restauração Estilística (Viollet-le-Duc), Restauração Romântica - anti-restauro - (Ruskin y Morris), Restauração Histórica (L. Beltrami), Restauração Moderna (C. Boito), Restauração Contemporânea (S. Muñoz-Viñas), Teoria da Restauração Evolutiva, etc., tentam responder a mesma pergunta: Qual deveria ser o estado de autenticidade final? Ambos conceitos, identidade e autenticidade, ainda que expressem ideias diferentes, são complementares e de exigência lógica recíproca. A dificuldade de ambos os termos para a definição da autenticidade: identidade e verdade, está nos pressupostos de saída: científicos ou humanísticos; os que Muñoz Viñas considera como objetividade dura e suave, respectivamente, e que se resolve com uma nova subjetividade (intersubjetividade); algo que se explica com respostas à uma simples pergunta teleológica: Porque se Restaura? “Não se Restaura para o Objeto. Não se Restaura para a verdade. Não se Restaura para a Ciência. Se Restaura para os sujeitos” (MUÑOZ VIÑAS, 2020)2. A autenticidade é um problema de identificação e atribuição, enquanto que a identidade é um problema ontológico.
O autêntico é entendido como certo e verdadeiro quando atesta a identidade e a verdade de algo. É considerado como certo, não oferece dúvidas. O idêntico é a circunstância de ser de uma coisa em concreto e não outra, determinada por um conjunto de traços ou características que a diferenciam de outras.
Figura 1. Estudo estratigráfico de Anjos tocheiros. (BONADIO, 2003).
Walter Benjamin trata a autenticidade através da aura segundo a qual “O conceito da autenticidade do original está constituído pelo seu aqui e agora; sustentado pela noção de que uma tradição conduziu esse objeto como idêntico a si mesmo até o dia de hoje” (BENJAMIN, p. 42)
A imagem da figura 1 corresponde aos diferentes estados de autenticidade da escultura de madeira policromada Anjos Tocheiros, documentados pela restauradora Luciana Bonadio em outubro de 2001 (BONADIO, 2003). Esta imagem nos mostra que essa igualdade e identidade em si mesma não é perene, e sim variante e que, ainda que esteja ligada à certa historicidade, não implica em nenhuma hierarquia de valor. Poderíamos dizer que a aura também se transforma, mas essa é uma ideia baseada unicamente na materialidade do objeto. Não existe uma autenticidade imutável e sim diferentes estados de autenticidade através do tempo. A autenticidade atua como garantia, na medida em que a identidade de um bem coincide com a qual lhe foi atribuída; mas não é objetiva e a conservação-restauração, nesse sentido, deve manter-recuperar determinado estado de autenticidade da obra. A figura 1 nos mostra os cincos estados de autenticidade pelos quais transitou a obra. Nenhum deles é mais verdadeiro que o outro; nenhum é mais essencial ou transcendental que o outro.
O Brasil, no fim do ano de 1995, convocou uma reunião internacional de especialistas em Brasília para fomentar a discussão acerca da noção de autenticidade. Na carta de Brasília, no entanto, a ideia de autenticidade foi entrelaçada com a intersubjetividade e sustentabilidade; “nos encontramos diante de um bem autêntico quando existe uma correspondência entre o objeto material e seu significado”; quer dizer, algo é autêntico enquanto conserva ou sustenta determinada relação com seu significado para os sujeitos e determina: “o suporte tangível não deve ser o único objetivo da conservação”; quer dizer, “deve se conservar a mensagem original do bem” o que supõe “assumir um processo dinâmico e evolutivo”, fluído, no qual intervém o objeto e o sujeito.
O que conservar então, a autenticidade ou a identidade? A autenticidade não é uma qualidade de valor universal e cultural, nem tem um caráter científico; “a análise científica não consegue demonstrar a autenticidade” (PEÑUELAS, 2014, p. 156); no melhor dos casos, pode apenas refutá-la.
[Um objeto] A é autêntico e idêntico a si mesmo na sua totalidade; em todos seus atributos. Se A=B, B é uma cópia de A igual em seus atributos. B não é único, existe A, mas é idêntico à A e autêntico. A e B são agora membros de uma nova classe cujos membros compartilham todos seus atributos; uma classe cuja essência é a multiplicidade. B é autêntico em relação à A, porém [a autenticação no] mundo da arte condiciona a autenticidade de B se é autorizada, se é legal (algo distante de A e B, extrínseco [externo] e não em termos dos atributos de A e B, intrínseco [interno]) apesar de que esta múltipla identidade é possível graças a reprodutibilidade mecânica, a repetição, porque a identidade requer sempre uma adesão. A incerteza e a tolerância da igualdade entre A e B dos produtos fabricados em série está determinada por normas e padrões de fabricação. Desde o ponto de vista objetivo pode haver atributos intrínsecos, definidores ou concomitantes. A = B se os atributos definidores de ambos são idênticos. As propriedades extrínsecas só podem ser concomitantes e, portanto, a igualdade de A=B ou a desigualdade A ≠ B se fixa apenas desde de um ponto de vista subjetivo.
Na maioria dos casos não é possível dispor de uma descrição completa da classe pela qual a identidade deve ser julgada em termos de seus atributos definidores ou concomitantes. O valor outorgado aos atributos, relações, etc., do todo, a dimensão axiológica do objeto implica sempre escolhas na tensão indivíduo-coletivo, subjetivo-objetivo, conhecimento-desconhecimento, etc. (GARCÍA, 2020, p. 229).
Para conhecer um objeto, diz Wittgenstein em sua proposição 2.01231, certamente não é necessário conhecer todas suas propriedades externas, mas todas as suas propriedades internas devem ser conhecidas (WITTGENSTEIN, 1973, p. 59); ainda que Wittgenstein priorize, com certa cientificidade, as propriedades internas do objeto para conhecer sua identidade, deve-se conhecer pelo menos ambas as propriedades definidoras ou concomitantes e imperecíveis: internas e externas. As propriedades internas, relacionadas com as causas material e formal são objetivas; estão no objeto. As propriedades externas, relacionadas com as causas eficiente e final são subjetivas; estão nos sujeitos.
Identidade, unidade e finalidade.
As ideias de ‘identidade’, ‘unidade’ e ‘finalidade’ estão internamente conectadas. Unidade e identidade são conceitos análogos, não unívocos, entre os quais é possível estabelecer múltiplas conexões. Se consideramos que o objeto analisado não é simples, e sim múltiplo (composto de múltiplas partes), que não está ilhado, mas imerso em uma rede ou contexto de relações com a qual estabelece uma inter-relação, a ideia de unidade poderia definir-se a partir de algo que tenha a ver com o objeto em si (que é intrínseco, autocontido) e com o sujeito (que é extrínseco, projetado sobre o objeto) – sem o qual o objeto não tem sentido algum. Segundo Bertrant Russell: “uma coisa [dintorno, todo complexo em determinado entorno] deve ser limitada e o limite [contorno] constitui sua forma”. Se a identidade de uma coisa está determinada em termos de um conjunto de propriedades internas e externas, definidoras, concomitantes e imperecíveis3 capazes de certificar que trata-se de uma coisa e não de outra, a unidade é a qualidade de que tal coisa é, conforme uma configuração, um todo único, que não se repete, sozinho, singular. A unidade é esse dintorno material4, com seu contorno formal que existe, é, em um determinado entorno. As propriedades internas que determinam a identidade de uma coisa correspondem a uma unidade (objeto: dintorno e contorno, ‘a coisa em si’), enquanto as propriedades externas que determinam a identidade de uma coisa correspondem ao entorno (espaço-tempo e sujeito: ‘a coisa para si’). A visão hilomorfista aristotélica permite definir a unidade e por consequência, determinar parte de sua identidade em termos objetivos e holísticos; embora o todo pode não ser definido unicamente por propriedades estatísticas (configuráveis), mas também por processos dinâmicos na relação com suas partes (processuais).
A unidade do todo tem a ver com o todo e com a conexão das partes e a identidade do todo tem a ver com as partes que estão dentro do todo e fora do todo e a finalidade do todo nos todos processuais […] tem a ver […] com a maneira como se conectam as partes (ALVARGONZÁLEZ, 2022).
A ideia do objeto como sistema (do ‘todo’ como estrutura holística) é, portanto, fundamental para entender essas relações entre identidade, unidade e finalidade. O objeto constitui uma totalidade atributiva cuja unidade é definida pela relação sinalógica entre suas partes, posto que sua unidade vem da composição entre ‘partes’ diferentes que desempenham funções atributivas, específicas e distintas5. O objeto, no contexto interpretativo do sujeito, constitui uma totalidade distributiva cuja unidade é definida pela relação isológica entre partes semelhantes, que desempenham funções análogas às de qualquer outra parte (outros objetos). Poderíamos afirmar que o problema da conservação é um problema de unidade, identidade e finalidade, que por sua analogia e inter-relação, admite uma simplificação a um problema de identidade.
Segundo Brandi, a partir do ponto de vista fenomenológico, “a matéria se apresenta como ‘o quanto serve a epifania da imagem’. [...] A matéria como epifania da imagem, nos fornece, então, a chave para desdobramentos que já haviam sido apontados e que se definem assim como estrutura e aspecto” (BRANDI, 2002, p. 19). Para Brandi, o todo (objeto de arte), a ‘coisa em si’, é suscetível de se decompor em ‘suporte’, que funciona como estrutura e ‘imagem’, que funciona como aspecto. Ambos, suporte e imagem, são todos complexos compostos de partes, ou seja, sistemas de diferentes naturezas.
O suporte é um sistema tecnológico, enquanto que a imagem é um sistema simbólico. O suporte constitui o dintorno do objeto enquanto que a imagem corresponde ao contorno, a superfície do meio. Do ponto de vista semiótico, a estrutura funciona como suporte, continente, Gestell ou testemunho da imagem (significante que porta a mensagem). O aspecto funciona como imagem, conteúdo, Gestalt ou texto (mensagem que porta significado). A imagem não existe sem o suporte, mas também, não são a mesma coisa, são sistemas inter-relacionados e concomitantes.
O conceito de ‘imagem’ está, portanto, entre o objeto e o sujeito, o físico e o metafísico, o real e o virtual, os feitos e as ideias, o objetivo e o subjetivo, o material e o imaterial, o ‘mundo sensível’ e o ‘mundo inteligível', a ‘coisa em si’ e ‘a coisa para si’; na relação do dois mundos de Platão, o ‘mundo exterior’ e o ‘mundo interior’ (mundo e mente, mundo real e fenômeno, natureza e computação no cérebro) e, em consequência, ligado a todos os processos de inter-relação entre ambos os mundos; no qual, segundo Bruno Latour, é “impossível de isolar e purificar duas zonas nítidas denominadas humano e mundo” (LATOUR, 2007). A imagem é a pele dos objetos e ao mesmo tempo a representação dos objetos; se expande em uma dualidade objeto-sujeito, na combinação de ambos em um ‘novo objeto único’, como diria Scheler, com determinada identidade, unidade e finalidade. A conservação-restauração é, fundamentalmente, um problema de conservação-restauração da imagem.
A imagem ‘no objeto’ segundo essa perspectiva, é uma totalidade atributiva, enquanto que a imagem ‘no sujeito’ é uma totalidade distributiva6. A identidade da imagem, por sua vez, está relacionada às ambas totalidades; a causa material e formal com a totalidade atributiva e a causa eficiente e final com a totalidade distributiva, enquanto que o contexto/entorno (a possível quinta causa aristotélica), determina a qualidade da relação objeto-sujeito7. O todo (objeto), por sua vez, pode ser configurável (estático, estável, independente do tempo, partes simultâneas) ou processual (dinâmico, instável, dependente do tempo, partes sucessivas).
É necessário assinalar que nesse texto, um sistema é um todo composto por partes, que por sua vez constituem subsistemas, compostos por subpartes até chegar à subpartes indivisíveis, possíveis de serem consideradas como elementares. A relação entre as partes do sistema se dá através das subpartes, sob o controle de determinados sistematizadores. Atendendo à sua relação com o todo, as partes podem ser materiais ou formais, enquanto que atendendo sua relação com outros todos, as partes podem ser distintivas (diferença) ou não distintivas (semelhança). A identidade está nas partes distintivas e formais. A unidade de algo não é configurável e sim processual, porque o todo cobra sua unidade como unidade processual e por isso, torna-se fundamental a finalidade. A finalidade determina o télos do todo e em consequência, a unidade. O todo tem um contorno (fronteira), um dintorno (dentro do todo) e um entorno (fora do todo). A unidade do todo pode estar definida pelo dintorno (pelo ‘o que é’, por sua homogeneidade), ou pelo entorno (pelo ‘o que não é’, pela heterogeneidade que possa ter o dintorno). A unidade tem a ver com as conexões das partes, enquanto que a identidade tem a ver com as relações entre as partes. Para tratar a unidade e a identidade é preciso administrar o todo atributivo e distributivo de uma só vez. (ALVARGONZÁLEZ, 2022), o ‘novo objeto único8’. Um todo pode ter várias identidades9. A escolha do estado de autenticidade final do objeto conservado-restaurado (protoestado) é também uma escolha de identidade10. É preciso destacar que a identidade está categoricamente organizada (existe uma multiplicidade de identidades).
Um objeto de arte (todo antrópico processual) é criado pelo homem; assim a sua unidade é construída (existe uma intencionalidade, ou finalidade; os todos antrópicos estão costurados com alguma finalidade). O fim organiza tudo, é a última fase de um todo processual; nos todos antrópicos a finalidade dá a unidade e a identidade de maneira automática. O suporte é um sistema cujo fim é produzir determinada imagem. A imagem é um sistema cujo fim é simbolizar. 11
A imagem é uma totalidade atributiva (objeto) e a arte é uma totalidade distributiva (objetos inter-relacionados por sujeitos). A identidade da imagem não está no objeto, nem nos sujeitos, mas na relação objeto-sujeito, na dualidade objetividade-intersubjetividade. Mas o suporte, segundo Brandi, está subordinado à imagem. Sua finalidade é ‘garantir’ a epifania da imagem; ao que sua unidade (atributiva, configurável - processual) e identidade, está determinada por sua finalidade propositiva (demiurgo) constitutiva. A identidade e a unidade da imagem, no entanto, é determinada por sua finalidade simbólica; o que determina essa unidade e a identidade híbrida do ‘objeto único’, em parte atributiva, configurável-processual, em parte distributiva processual.
É essa unidade e identidade o objeto da conservação-restauração. O protoestado determina o estado de autenticidade (verdade) preferido, desejado (MUÑOZ VIÑAS, p. 88); é o modelo escolhido para levar o objeto do estado de autenticidade atual (antes de aplicar os processos de conservação-restauração) ao estado de autenticidade final (depois de aplicar os processos de conservação-restauração). No exemplo da figura 1, poderia ser qualquer um dos ali representados, incluindo outros pelos quais nunca tenha transitado a obra (por exemplo, um estado ideal, prístino), porém deveria ser um estado ‘escolhido’.
Documentação da identidade
A formação virtual do protoestado passa pela documentação da unidade, identidade e finalidade do objeto de conservação-restauração (‘novo objeto único’). O objeto pode ser configurável (como é o caso de uma pintura de caráter autógrafo) ou processual (como é o caso de uma performance de caráter alográfico); pelo qual a documentação poderia ser entendida como um sistema de notação. A documentação, pela natureza do objeto, é, a princípio, também dual: suporte e imagem; exceto naqueles casos onde o suporte e a imagem são indivisíveis.
A figura 2 mostra a obra de Tunga, True Rouge, exposta permanentemente no Instituto Inhotim. Esta é uma obra complexa de grandes dimensões (3150 x 7500 x 4500 mm) composta por vidro fundido, esponja marinha, poliamida, poliéster, cerdas naturais, madeira, resina fenólica, colorante, água, cobre, etc. Segundo sua descrição:
O levantamento de um corpo inerte é uma marionete. Como consequência, True Rouge inicia o grupo de obras elevadas. Essas obras fornecem um repertório de elementos de separação conectivos e ao mesmo tempo conectam o corpo da marionete com o corpo do marionetista. São cabos, varetas, ganchos, correntes e taças. A diferença de uma marionete de corpo e um contrapeso levantado é a ilusão de que a marionete sustenta seu próprio corpo, fazendo com que suas conexões sejam por vezes, invisíveis.
Na versão grande de True Rouge, os bastões em forma de cruz se multiplicam em uma estrutura de três peças de madeira vermelha que, no lugar de sustentar apenas uma rede, suporta agora entre oito e doze redes. Essa versão da obra exige 130 redes penduradas por doze cruzes. Em razão da sua malha aberta, a rede não esconde os elementos que existem na parte interior. A rede transparente conversa com o cristal transparente e oferece os elementos para uma correta apreciação. No seu interior, encontramos pentes, esponjas do mar, bolas de sinuca, feltro e contas de vidro vermelho. E, entre os objetos transparentes, podemos ver taças, garrafas e funis, todos de três tamanhos, além de bolas de cristal. As garrafas e taças estão cheias de líquido vermelho. Com respeito às três versões grandes, foi feita uma representação na ocasião da inauguração da obra. Homens e mulheres despidos distribuíam cubos de gelatina vermelha através das redes, que lentamente se depositavam no chão formando grandes poças. (TUNGA).
Figura 2. Tunga, True Rouge, 1997. Instituto Inhotim /Imagem licenciada pelo Instituto Tunga.
Pelo texto se entende que existem três unidades que compartilham a mesma identidade e finalidade em contextos diferentes. Como é possível garantir a identidade e a finalidade dessas obras não apenas no momento de sua produção, mas também em qualquer reprodução posterior? O que se deve conservar?
Esta obra em particular é bastante interessante porque a unidade é uma totalidade configurável-processual12 constituída por partes claramente diferenciadas (redes, cruzes, cristais, pentes, esponjas do mar, bolas de sinuca, feltro, contas de vidro vermelho, taças, garrafas, funis, bolas de cristal) conectadas de determinada maneira. Como extrair a ordem do caos? Como capturar a essência das relações entre as partes heterogêneas? Como documentar True Rouge de maneira que ela possa ser versionada mantendo sua identidade?
A documentação do objeto ou a totalidade atributiva passa não só por estudar o que faz com que ele seja o que é (ontologia) mas também por capturar as relações entre as partes do que é (mereologia); tanto das partes com o todo, como das partes com outras partes. Existem propriedades internas das partes definidoras, concomitantes e imperecíveis como: posição, dimensão, forma, material, distância, função, etc.; com suas respectivas margens de tolerância, assim como da relação entre as partes. Existem propriedades externas relacionadas com a totalidade distributiva da arte de Tunga (conjunto de obras elevadas que aportam um repertório de elementos de separação conectivos, por exemplo) e também com a totalidade distributiva da arte em geral onde se insere a obra (contexto).
A documentação deveria servir como uma espécie de sistema de notação que garantisse a identidade da obra, como ocorre com as obras processuais ao uso ou alógrafas. É possível um sistema de notação para obras autógrafas13? Ainda que necessite de um valor prático, tal sistema teria um valor inestimável para a atividade de conservação-restauração. Os sistemas complexos possuem uma representação direta como redes, onde as partes funcionam como elos e as conexões entre as partes como laços. As redes possuem certas propriedades estatísticas e topológicas não triviais, que nos permite estudar a estabilidade da identidade e aspectos tais como determinação do grau de influência de cada parte sobre o resto ou a proximidade de uma mudança de fase (uma mudança de identidade onde o que é deixa de ser para ser outra coisa). Essas redes são mais simples para definir o dintorno (causa material e formal) e mais complexas para definir o entorno (causa eficiente e final).
A documentação para que seja útil, deve conter aquela informação objetiva (na relação com o objeto, totalidade atributiva, atributos autocontidos) e subjetiva (em relação com o sujeito, totalidade distributiva, atributos projetados) que permita responder a pergunta teleológica: Porque conservamos? Se a conservação é um problema de conservação da identidade, a resposta para essa pergunta, nessa nova subjetividade, passa, portanto, pela documentação de ambas: a identidade atributiva e distributiva do objeto cultural14.
O que devemos conservar? A conservação-restauração é um problema de identidade da imagem. A identidade não é um problema universal e sim cultural. Não existe um estado de autenticidade mais verdadeiro que o outro. A conservação-restauração é a tomada de decisões. O protoestado deve ser aquele estado autêntico, fiel à identidade da imagem do objeto de arte, talvez aquele estado que minimize o risco da perda de sustentabilidade na totalidade das causas. A entrevista com o artista pode ser um instrumento valioso na investigação da identidade e definição do protoestado, mas não é imprescindível, nem único. Se conserva para os sujeitos, não para os objetos. É preciso que a conservação seja sustentável quanto a conservação de sua mensagem15. O enfoque holístico da imagem permite capturar a identidade do objeto (unidade) e a identidade dos sujeitos (finalidade), do ‘novo objeto único’.
Notas
1 As causas aristotélicas atuam conjuntamente, é necessário falar das concausas.
2 Segundo Salvador Muñoz Viñas, se entende por conservação “ a atividade que consiste em manter [...], em evitar (ou seja prevenir) as alterações futuras de um bem determinado” (MUÑOZ VIÑAS, 2003, p. 18) e por restauração “o conjunto de atividades materiais, ou de processos técnicos, destinados a melhorar a eficácia simbólica e historiográfica dos objetos de Restauração atuando sobre os materiais que o compõem. (MUÑOZ VIÑAS, 2003, p.80)
3 É possível expressar as propriedades definidoras ou concomitantes e imperecíveis, sejam internas e externas, em termos de classe, genéricas, abstratas, potenciais; por exemplo, a cor da escultura dos Anjos Tocheiros, que uma vez instanciados, uma vez que lhes atribuiu um valor, se convertem em propriedades do objeto, particulares, concretas, reais: por exemplo, as instâncias dos diferentes estados de autenticidade que representa a figura 1.
4 O objeto (obra de arte-objeto de conservação) pode ser material ou virtual; mas, para todos os efeitos da discussão essa diferenciação não é relevante. Um objeto virtual carece de matéria, porém possui identidade, unicidade e finalidade.
5 Uma relação sinalógica expressa uma unidade entre partes que mantêm relações de contiguidade (contato), proximidade ou continuidade em oposição a uma relação isológica que expressa unidade entre termos que não necessitam de vínculos de contiguidade (contato), proximidade ou continuidade, e sim vínculos de isomorfia, semelhança, etc.
“A sinologia designa a relação de sínteses, de unidade, com totalidade atributiva, que é possível constatar entre termos unidos mediante vínculos, contatos, relações de afinidade, proximidade ou contiguidade, sejam no tempo ou no espaço [...], sejam de forma estática ou dinâmica [...], seja causal ou acausal [...]. A sinologia identifica relações entre termos conexos...” (GONZALES, 2014, p. 219)
6 Na terminologia de Gustavo Bueno, um todo atributivo (totus, mereológico, partonômico) possui partes diferentes umas das outras casualmente conectadas por contiguidade, enquanto que um todo distributivo (omnis, taxonômico, diairológico) o todo se distribui entre suas partes; cada qual independente das outras, que inclui as propriedades do todo (o todo é a classe e as partes são os exemplares).
7 É necessário levar em consideração que a relação sujeito-objeto se dá em termos de comunicação. O objeto (significante) é o meio portador da mensagem. O sujeito é o receptor da mensagem, aquele que lhe outorga significado. O contexto onde se produz a inter-relação objeto-sujeito condiciona a mensagem (atua como ruído para o meio)
8 Não é possível definir a identidade reflexivamente. A identidade lógica A=A (princípio de identidade) existe no mundo de A, mas não no mundo de não-A. A identidade lógica não é prioritária, nem de maior importância do que o resto das identidades.
9 Segundo Platão no Fedro: a mesma substância pode ser medicinal, pode ser uma droga ou pode ser um veneno. Uma unidade pode ter diferentes identidades da mesma maneira que pode haver uma identidade única com unidades diferentes.
10 A objetividade do protoestado, portanto, deve ser estabelecida sobre as bases dessa nova subjetividade ou intersubjetividade proposta por Muñoz e Viñas. O protoestado é um documento, um estado intangível. A Restauração deve, em primeira instância, definir um protoestado, que corresponda a determinada unidade, identidade e finalidade, e em segunda instância aplicar as estratégias, métodos e processos correspondentes para instanciar o objeto do estado atual a um estado final ‘idêntico’ da classe protoestado. Todas as Teorias de Restauração definem a unidade, identidade e finalidade do protoestado; um estado que gera dúvidas e que não é mais verdadeiro que outros, mas simplesmente o ‘preferido’.
11 Existem opiniões discrepantes que consideram a imagem uma estrutura com nível de complexidade mais alto que a amálgama e mais baixo que um sistema; no entanto, a imagem do ponto de vista semiótico é composta de partes (signos de maior complexidade) relacionados entre si através de subpartes (signos de menor complexidade). Os signos podem ser simples ou compostos: signos que se formam a partir do simples mediante operações. Segundo Max Bense, a aplicabilidade dos signos se relaciona com três operações sígnicas (BENSE, 1972): adjunção (concatenação linear de signos de signos em uma sequência ou cadeia de signos), iteração (convergência dos signos : formação do ‘signo do signo’ ou do ‘signo do signo do signo’) e superação (super-signos: configuração de signos, multiplicação dos signos em suas configurações de signos e estruturas sígnicas; correspondem sempre à uma nova referência de objeto e uma nova referência de intérprete). Os signos compostos (partes) estão relacionados através dos signos simples (subpartes).
Todo signo na referência do intérprete representa a cadeia de semioses ou semiose infinita, na qual, ao interpretar um signo se aprofunda na concepção do objeto. A semiose infinita é um processo aberto de interação e circulação de enunciados que se interpretam de forma contínua, o que reforça o vínculo conceitual do signo e dialogismo. Para Mijaíl Bajtín: “a estrutura dialógica e a dialética do signo pressupõe necessariamente, o diálogo como caráter privado e resulta do próprio fato que para ser signo deve ser ao mesmo tempo idêntico e diferente de si mesmo” (BATJÍN,1995,1989). Para Peirce a superação dos signos conduz aos ícones.
A questão do signo é representar, estar no lugar do objeto. Algo não funciona como signo até ser apossado e interpretado como signo desse objeto. O significado surge necessariamente da interação entre os signos.
12 Observar que existem elementos variantes como o líquido vermelho que enche as garrafas e taças e que poderia alterar as relações configuráveis das partes.
13 A produção é processual.
14 A identidade distributiva, em qualquer caso, é transitiva da identidade atributiva.
15 Mais relacionado com a conservação do significante do que do significado.
Referências bibliográficas
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