Memória (s) do Efêmero arquivo, curadoria e mídias digitais
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Por Priscila Almeida Cunha Arantes
Memória no século XXI
Na paisagem mítica da Grécia antiga, dois rios paralelos cruzavam os limites do Hades: Letes, o rio do esquecimento e Mnemosyne, o rio da recordação. Esse paralelismo não deixa de ser sintomático: memória e esquecimento caminham juntos, de modo que um parece não existir sem o outro.
A história do esquecimento é digna de nota: se na Antiguidade acreditava-se na capacidade de se desenvolver a memória e vencer o esquecimento, o homem moderno está cada vez mais convencido de duas coisas aparentemente irreconciliáveis: a certeza de que tudo o que percebemos se inscreve em nós e o saber de que a maior parte de nossa memória nos é inconsciente - como diria Freud. Tanto na visão antiga quanto na moderna atribui-se ao esquecimento um teor negativo. Não por acaso verdade em grego significa alétheia, ou seja, não esquecimento.
Não podemos perder de vista também de que, a memória e o esquecimento têm relação intrínseca com a construção da autoimagem de grupos, culturas e nações. A memória tem um aspecto que é cumulativo - que armazena fatos - mas ela é também responsável por cimentar grupos: ela nos vincula.
Por outro lado, em uma época marcada pela crise das grandes narrativas e dos postulados universais, a memória se transformou em um espaço importante de reflexão sobre novas historiografias: novas historiografias que procuram colocar luz em outras histórias, muitas vezes soterradas dentro do escopo da historiografia oficial. Walter Benjamim foi um dos primeiros a sinalizar, já em meados do século passado, a importância de criarmos novos métodos historiográficos. O historiador, em diálogo com o montador de cinema, como diria o filósofo, cria uma nova narrativa a partir de novas montagens; produz um curto-circuito ao acoplar realidades aparentemente díspares e nos faz acordar e refletir sobre a realidade existente.
A virada mnemônica nos debates sobre a historiografia parece, no contexto do século XXI, fazer eco em outras áreas do conhecimento. Até pouco tempo atrás confinada aos campos da historiografia, filosofia, neurologia e psicanálise a memória se converteu, no século XXI, em algo elementar no nosso cotidiano, tornando-se algo quantificável:
- Quanto de memória tem seu computador? E sua câmera? E seu celular? Compramos memórias, transferimos memórias, apagamos e perdemos memórias. Nunca se falou tanto em memória e, ao mesmo tempo, nunca foi tão difícil ter acesso ao nosso passado recente.
Se na antiguidade e na modernidade memória e esquecimento caminham juntos, no contexto do século 21 esta relação parece ter se tornado cada vez mais radical: vivemos dentro de uma lógica constante de perda e de renovação. Como diria Wendy Chun em seu livro Programed Vision: software and Memory, vivemos paradoxalmente o passado e o futuro ao mesmo tempo.
Não por acaso os debates sobre o arquivo, e especialmente sobre o arquivo digital, foco deste artigo, tornam-se fundamentais, dentro deste contexto, a ponto de alguns pensadores afirmarem de que vivemos em uma febre de arquivo.
Febre de arquivo
Criado na sua maioria por organizações estatais e instituições assim como por grupos e indivíduos, o arquivo, dentro de uma visão tradicional, constitui um sistema ordenado de documentos e registros, tanto verbais quanto visuais, organizados para um determinado fim. Dentro deste contexto ele é visto usualmente como um depositário de documentos, fixo e localizável, fonte “factual” de uma suposta história a ser contada.
É exatamente esta suposta neutralidade e “imutabilidade” do arquivo, esta ideia de que ele representa mimeticamente um acontecimento do passado, que é colocada em xeque por uma série de pensadores da atualidade.
Para Michel Foucault (2008) é principalmente a partir da revisão da função dos documentos e dos arquivos que a mutação nos paradigmas da história se torna possível. O arquivo, dentro desta perspectiva, seria uma noção abstrata do conjunto de regras de um sistema discursivo e não a noção corrente cuja matéria resume-se aos escritos que documentam ou testemunham o passado.
Em Mal de arquivo: uma impressão freudiana, Jacques Derrida (2005) propõe o alargamento do conceito de arquivo, resgatando princípios de A Arqueologia do Saber, de Michel Foucault. Realiza, à luz da psicanálise, uma interpretação da versão clássica do arquivo presente no discurso da história pela qual enuncia uma concepção original, ou melhor, originária primordial. O mal de arquivo aponta exatamente para seu inverso: o arquivo é sempre lacunar e sintomático; descontínuo e perpassado pelo esquecimento de uma pretensa “originalidade” primeira.
Dentro de perspectiva diversa pode-se destacar a importância que o tema do arquivo ganha em virtude das questões que perpassam a cultura contemporânea, especialmente aquelas relacionadas à febre de arquivamento de informações que caracteriza o nosso século. Dos antigos álbuns de família assistimos a uma febre de produção de arquivos digitais no Facebook, Instagram, no Youtube, dentre outros. Por outro lado, se os mega arquivos virtuais prometem uma suposta perenidade de uma memória coletiva - onde tudo está armazenado - a cultura midiática, dinâmica, mutável, líquida, com seus links e hiperlinks, parece nos colocar em uma onda constante de esquecimento.
Falar em memória e em arquivo em diálogo com o contexto das mídias, portanto, abre uma série de possíveis reflexões.
1. Como lidar com memórias tão instáveis, que se esgotam com a duração dos equipamentos em uma era de obsolescência programada?
2. Qual o lugar do arquivo e da memória que esse universo traz quando os registros de memórias estão baseados em tecnologias e plataformas de softwares dinâmicos e mutáveis?
3. Como pensar a preservação e a memória das produções estéticas que lidam com novas mídias?
Como são muitos os caminhos para esta discussão vou me ater, ainda que rapidamente, em três pontos: arqueologia das mídias, preservação e restauração e curadoria de arquivo. Existem outros pontos que poderíamos abordar, como as discussões concernentes ao museu digital, mas não o farei devido à complexidade do debate.
Arqueologia das mídias: uma breve discussão
Uma das rotas de reflexão para se pensar a memória e o arquivo deste universo tão instável e efêmero da cultura contemporânea tem sido o campo de estudo da arqueologia das mídias.
Descontentes com os discursos canonizados sobre a cultura midiática, e apesar da impossibilidade de não conseguirmos ter uma visão homogênea dos diferentes pensadores que debruçaram sobre este campo de estudo, um ponto de vista comum entre eles é o de incorporar uma visão da história das mídias como uma construção multifacetada e criticar os estudos das novas mídias que muitas vezes desprezam o passado com certo deslumbre em relação ao mundo digital. Este é um campo de estudo que critica a visão de um historicismo linear e homogêneo e que pensa a história e a memórias das mídias dentro de um ponto de vista arqueológico.
Muitas destes pesquisadores, portanto, atentam para uma epistemologia da mídia voltada para o campo da materialidade da mídia e de suas formas de registro cultural. Assim por exemplo, a câmera é uma mídia de captura e armazenamento do movimento através da luz, ao passo que o rádio é a mídia de tradução das ondas magnéticas por meio de transmissão das vozes e sonoridades.
Werner Nekes, por exemplo, em seus famosos documentários como Film Before Film (1986) e Mídia Mágica (1996) nos dá a ver não somente a sua coleção de objetos óticos e cinemáticos, mas também que o advento do cinema está muito além da apresentação dos filmes pelos irmãos Lúmiere; o cinema é produto de muitas invenções associadas, por exemplo, em seus primórdios, à magia e alquimia.
Um teórico fundamental para se pensar a passagem do analógico para o digital é Wolfgang Ernst que discute especialmente a lógica do arquivo digital. Traça as transformações dos sinais analógicos para o mundo dos códigos binários digitais, seja abordando este assunto acerca do que ele nomeia de uma não-memória do arquivo numérico, seja conduzindo o debate para discussões relacionadas ao armazenamento de dados no sistema computacional.
No seu artigo The archive as a metaphor: from archival space to archival time (2004) o teórico argumenta que os arquivos digitais não têm memória própria, isto é, os arquivos digitais não são narráveis como aqueles produzidos a partir de máquinas que executam sinais analógicos. Sob esta perspectiva estes arquivos não têm memória, mas sim a possibilidade de armazenar dados através de uma dinâmica calculável inerente ao sistema computacional: a grande “magia” operada pelo computador é sua capacidade de “esconder” um enorme conteúdo de arquivos disfarçados por representações numéricas.
Há um deslocamento, portanto, a forma tradicional de se pensar o arquivo – espacialização e armazenado em um determinado local físico - para uma nova forma de armazenamento para este tipo de arquivo: que armazena a “representação” destes documentos, isto é, sua representação em código binário.
Por outro lado, a visão do arquivo como um espaço estático, “morto” e fixo, dá lugar para uma visão de arquivo vivo (como tenho nomeado), mutável, dinâmico e temporal: o arquivo no ambiente da rede, por exemplo, está baseado no tempo e nas trocas constantes de informação. Ou seja, pensar a memória e o arquivo neste ambiente significa pensar ao mesmo tempo nos seus processos de arquivamento e na sua dinâmica contextual:
“O espaço cibernético é uma intersecção de elementos móveis (...) em mídia eletrônica digital, a prática clássica de armazenamento quase - eterno está sendo substituída por movimentos dinâmicos (...) a memória arquivística clássica nunca foi interativa, enquanto documentos em espaço de rede sim”, diz Wolfgang Ernest.
É bem verdade que os museus e outras instituições como as bibliotecas e as instituições de memória, sempre tiveram que lidar com questões concernentes à deterioração da conservação de materiais, como é o caso das pinturas ou trabalhos de arte que sofrem com umidade, poluição, entre outros fatores. Daí todo o cuidado, especialmente nas reservas técnicas dos museus com a temperatura, climatização, umidade e manuseio de materiais.
Quando tratamos das mídias digitais, no entanto, além da questão da deterioração propriamente dita, podemos acrescentar sua obsolescência e impermanência constante:
“Arquivos digitais podem ser facilmente copiados sem qualquer perda de qualidade; podem ser reproduzidos, linkados, marcados e repassados a partir de um blog por qualquer pessoa na internet. No entanto eles são também extremamente efêmeros. O fantasma do desaparecimento total está sempre espiando atrás da porta. Mudanças de software, (...) e estruturas de rede podem inutilizar parte de um código e torná-lo uma inutilidade que está ocupando espaço no disco rígido. Serviços on-line bem-sucedidos podem se tornar obsoletos rapidamente e acabar sendo removidos depois de um tempo, sem aviso prévio (....) Equipamentos de armazenamento podem queimar e ser perdidos”. (Quaranta, 2014, p. 240)
Basta lembrar-nos do caso do Geocities, um serviço de hospedagem gratuito de sites encerrado pelo Yahoo que levou consigo boa parte da história da WEB 1.0. Não por acaso os web artistas Olia Lialina e Dragan Espenschied iniciaram o projeto One Terabyte of Kilobyte Age em 2009. Os artistas fizeram download de todo o conteúdo da Geocities, recuperado voluntariamente pelo coletivo Archive Team e vêm não só disponibilizando seu conteúdo na web, como criando mostras temáticas sobre o seu acervo.
Em 2012, o curador italiano Domenico Quaranta realizou uma mostra chamada Collect the WWWorld: the artist as archivist in the internet age, cujo ponto de partida foi o de apresentar um conjunto de produções que colocassem em cena formas de documentar a produção de obras realizas na internet: “A percepção da situação da internet de que o que está na internet hoje pode-se tornar um link quebrado, inativo ou uma página de erro 404 amanhã (...) leva alguns artistas que lidam com este meio, como os artistas de net art, tornarem-se colecionadores” diz Quaranta (2014, p. 242) sobre a exposição. Uma das obras presentes na mostra, A Collection of Images, de Niko Pricen, consistiu em uma lista de nomes de arquivos de imagem, colocando em cena a importância das formas de catalogação e ‘tagueamento’ da informação no ambiente da cultura digital.
Pensar o arquivo e a memória em diálogo com o ambiente digital e das redes implica, portanto, menos o entendimento de algo estático – de uma visão de arquivo centrada no objeto, ou no documento que se arquiva - as, concomitantemente, no entendimento do arquivo e da memória vistos como ambientes vivos e dinâmicos.
Preservação e recuperação de obras digitais
Um tema corrente quando falamos de arte contemporânea em diálogo com o campo das mídias é a questão da preservação. O que é preciso conservar de projetos como os de Waldemar Cordeiro, um dos pioneiros da arte computacional no Brasil. O programa? As suas impressões? O computador e a máquina da época?
E no caso de um trabalho de net art?
Obviamente pensar em trabalhos de artemídia implica no entendimento de que, muitas vezes, são projetos temporais - artes do tempo - e que, portanto, estão para além da objetificação ou do entendimento da obra como objeto. Neste sentido é normal que os modos de preservação e documentação deste tipo de trabalho sejam diferentes.
Além da possibilidade de armazenarmos os dados de um determinado trabalho em múltiplas e repetidas cópias (diríamos quase infinitas), as emulações, ou seja, os processos pelas quais são transferidos rotinas e comportamentos de um objeto a outro- que correspondem a um tipo de programação muito comum no mundo dos jogos de computador - começam a ser utilizadas em experimentos de “conservação” de obras em arte mídia.
Outro recurso muito utilizado é o da migração, ou seja, a adaptação da tecnologia do trabalho ao padrão da indústria do momento. Cabe lembrar que a transposição e adequação de obras para novos equipamentos ou sua reprogramação não resulta obviamente em soluções definitivas, mas obviamente implica em uma prática contínua de atualização.
Este foi o caso, por exemplo, da restauração da obra BEABÁ, desenvolvida por Waldemar Cordeiro e Giorgio Moscati em 1968, para a exposição Waldemar Cordeiro: Fantasia Exata exposta em 2013 no Itaú Cultural.
BEABÁ, é uma das primeiras obras da chamada arte computacional e os autores utilizaram um dos aparatos tecnológicos mais modernos da época: o computador IBM 360 do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.
O trabalho de recriação do trabalho só foi possível devido a longas conversas com Giorgio Moscati, nas quais muitas das informações foram levantadas. Na década de 60, os computadores eram máquinas muito diferentes das que se tornaram populares muitos anos depois. Por exemplo, não existia monitor de vídeo. O resultado do programa era impresso em papel por uma impressora matricial e apenas com caracteres, sem quaisquer outros tipos de elementos gráficos (desse fato pode-se compreender melhor a importância da série de retratos criados, posteriormente, por Waldemar Cordeiro).
Também não havia teclado – para rodar um programa, era necessário perfurar cartões, passá-los por uma leitora, executar o programa e aguardar o resultado impresso BEABÁ criava palavras ao acaso, mas seguindo probabilidades extraídas de um dicionário da língua portuguesa. A obra exibia, impressas em papel, colunas de palavras geradas
segundo algumas regras: cada palavra tinha seis letras, podia começar com vogal ou consoante, que se seguiam de forma alternada (não eram possíveis duplas de vogais, nem de consoantes). A probabilidade de cada par vogal-consoante ou consoante-vogal era determinada pelo espaço que esses pares tomavam num dicionário (especificamente, o Pequeno Dicionário Escolar da Língua Portuguesa).
Com acesso às informações de Giorgio Moscati e ao código original da obra, a tarefa de recriar o programa num computador atual foi relativamente direta: a escolha recaiu sobre preservar a essência da obra, o processo descrito acima, e não o maquinário que a tornava possível em 1968.
Outra obra recuperada foi Desertesejo desenvolvida por Gilbertto Prado no ano 2000 e selecionada para participar da exposição Singularidades/Anotações, em 2014, no Itaú Cultural.
O processo de restauração de Desertesejo era a única opção para que a obra pudesse ser apresentada como havia sido proposta originalmente – e não como mera documentação em vídeo, por exemplo, pois o plug-in da obra criada nos anos 2000 já não funcionava mais e tinha se tornado obsoleto. O trabalho de restauro foi intenso, pois todos os ambientes da obra precisaram ser remodelados em 3D, texturas, sons e iluminação recriados, avatares reconstruídos, etc.
Não é possível generalizar, neste sentido, o que seria um processo “padrão” de restauração para obras de arte que se utilizam de tecnologias relativamente recentes. Tais obras variam muito entre si, tanto em tecnologias como em propostas. Indícios dessas diferenças podem ser observados nos exemplos apresentados acima. Enquanto Beabá executa um processo específico para gerar palavras ao acaso, Desertesejo cria ambientes virtuais que podem ser experimentados por seus visitantes. A restauração dessa última não tratou de reproduzir fielmente um processo, como a da primeira, mas antes de recriar ambientes virtuais que permitissem uma experiência interativa semelhante à da primeira obra.
Curadorias de arquivo
Por outro lado é importante perceber de que o arquivo e as discussões sobre o arquivo têm feito parte não só de curadorias, mas da poéticas de muitas obras contemporâneas.
Obviamente isto não é recente. Desde o século passado podemos detectar produções que colocam em debate a relação entre exposição e arquivo, especialmente no que diz respeito a poéticas que incorporaram uma visão crítica e reflexiva em relação ao papel institucional.
Este é o caso de La Boite-en-valise (1935-41) de Marcel Duchamp, um projeto que pode ser considerado como uma das primeiras reflexões críticas em relação à prática arquivística do museu. La Boite-en-valise é composto por uma série de registros e reproduções fotográficas, bem como de miniaturas da obra do artista colocadas no interior de uma mala. A obra sugere não somente questões relacionados ao espaço do museu como um espaço expositivo itinerante e portátil, mas, também, ao artista como um caixeiro-viajante, que compartilha questões promocionais e estéticas.
Já em Museu Imaginário, André Malraux apresenta, em 1947, uma coleção de reproduções fotográficas de obras de arte de diferentes partes do mundo. Ao tornar a coleção do museu mais acessível ao público, através da fotografia, o projeto incorpora a ideia de um museu expandido, um ‘museu sem paredes’, para além do seu espaço físico. Malraux faz do “museu fotográfico” um local - um espaço de exposição - de confrontação, um espaço “homogeneizado” pelas dimensões da reprodução fotográfica. Por outro lado, o projeto incorpora a ideia da fotografia como dispositivo de registro, memória e arquivo das obras colecionadas pelo museu.
Se em La Boite-en-valise Marcel Duchamp coloca em discussão o papel arquivístico do museu, nos oferecendo a possibilidade de ter acesso a um museu itinerante e portátil, e se em Museu Imaginário André Malraux cria um museu tornando-o mais acessível através da “ruptura” com o espaço “fixo” e físico do museu, em ambos o dispositivo de registro e arquivo desempenham papel fundamental.
Mais recentemente é possível detectar uma série de artistas que desenvolvem produções que problematizam o museu como espaço de legitimação e poder. Com seus trabalhos muitos destes artistas-arquivistas evidenciam as complexidades e ambiguidades inerentes às questões de classificação e armazenamento presentes nas coleções museológicas e institucionais. Desenvolvendo práticas que muitas vezes são atribuídas aos espaços expositivos e museais - como arquivar, catalogar, classificar, identificar, documentar, etc. - muitos destes projetos questionam exatamente o arquivo como princípio de organização fixo e imutável.
Problematizar questões referentes ao arquivo dentro do contexto atual foi a proposta de uma série de projetos curatoriais que desenvolvi junto ao Paço das Artes: Livro/Acervo, MaPA e Ex-Paço que passo a discutir brevemente a seguir.
Livro/Acervo
O primeiro projeto, Livro Acervo, foi idealizado por mim no ano de 2010 em função da comemoração dos 40 anos do Paço das Artes. A ideia inicial do projeto foi a de desenvolver uma “grande” curadoria que não somente pudesse resgatar a memória do Paço das Artes - os atores e agentes que fizeram parte de sua história, - mas a de oferecer ao público a possibilidade de ter acesso a uma curadoria para além do espaço expositivo tradicional.
Foi dentro desta perspectiva que nasceu a ideia de desenvolver não somente uma curadoria no espaço do livro - como uma espécie de curadoria portátil e circulante – mas também de desenvolver uma curadoria a partir do “arquivo” e “acervo” da instituição resgatando um de seus mais importantes projetos: a Temporada de Projetos1.
O projeto foi composto por três partes principais2. Na primeira delas, 30 artistas que passaram pela Temporada de Projetos foram convidados a desenvolver um trabalho inédito em folhas de papel (como é o caso do flip book, Naufrágio, desenvolvido pela artista Laura Belém). Estes trabalhos foram impressos como cópias para distribuição e encartados em conjunto com os outros itens que compunham o projeto. No mesmo encarte dos cadernos trabalhados pelos artistas, temos a Enciclopédia, segunda parte do projeto, com informações sobre cada um dos artistas, curadores e júri que participaram da Temporada de Projetos desde sua primeira edição. A terceira parte do projeto era composta por uma obra sonora de até um minuto de duração, encartado em um CD ROM, desenvolvida pelos artistas e curadores que participaram da Temporada de Projetos. Cabe ressaltar que o projeto (constituído por estas três partes) recebeu a forma de uma caixa/arquivo fazendo alusão exatamente à ideia de que este dispositivo contém uma parcela importante da história do Paço das Artes e de parcela da jovem arte brasileira
Dando continuidade ao projeto Livro/Acervo implantamos em novembro de 2014 o MaPA: Memória Paço das Artes, uma plataforma digital de arte contemporânea que reúne todos os artistas, críticos, curadores e membros do júri que passaram pela Temporada de Projetos desde sua criação em 1996.
A plataforma é composta por um banco de dados com mais de 870 imagens das obras expostas na Temporada de Projetos, aproximadamente 270 textos críticos e vídeos-entrevistas que foram especialmente desenvolvidos, desde 2014, para este projeto. Reunindo mais de 240 artistas, 14 projetos curatoriais, 70 críticos de arte e 43 jurados, a plataforma foi construída como um dispositivo relacional e um work-in-progress oferecendo ao pesquisador a oportunidade de ter acesso às informações a partir das relações existentes na Temporada de Projetos.
Já na home do MaPA o público é apresentado por meio de um sistema randômico a uma série de nomes (de artistas, críticos, curadores e membros do júri que passaram pela Temporada). Ao passar o mouse sobre qualquer um desses nomes-links, o MaPA destaca, por meio de negrito, os demais nomes envolvidos naquela edição da Temporada. É assim que se inicia a pesquisa na plataforma MaPA: como um dispositivo relacional que permite conhecer a trajetória de cada artista juntamente com o crítico que o avaliou e o júri que o selecionou. O destaque atribuído a essa história “relacional” explica-se ao dialogar com a proposta da própria Temporada de Projetos que, ao selecionar artistas, curadores e críticos em início de carreira, atua como um lançador de talentos no cenário artístico. É por essa razão que a organização e referência às informações na plataforma são feitas através dos nomes dos artistas, curadores e críticos, valorizando as trajetórias e o desenvolvimento criativo de todos os envolvidos na produção e sistema da arte contemporânea.
Finalmente o MaPA pode ser visto não somente como um dispositivo de resgate de parcela da trajetória do Paço das Artes e do ‘acervo’ da instituição, mas também, como um dispositivo fértil de pesquisa para todos aqueles interessados nos rumos da jovem arte contemporânea brasileira. Por último, mas não menos importante o MaPA é um veículo disparador para a construção de outras narrativas da história da arte brasileira, da jovem arte brasileira, que muitas vezes não tem oportunidade ou não aparecem nos discursos da história da arte oficial.
Como último projeto desta trilogia gostaria de ressaltar o trabalho Ex-Paço, apresentado em 2020 quando da inauguração do Paço das Artes em sua nova sede em Higienópolis.
O Ex-Paço é uma réplica virtual tridimensional das várias sedes do Paço das Artes, com saídas para computador (local e on-line), celular, card boards e óculos de realidade virtual. Modelado em 3D a partir dos diferentes sedes do Paço das Artes, o ExPaço é não somente um espaço de memória, no sentido que recupera em realidade virtual as várias sedes da instituição, mas um arquivo testemunho de um espaço cultural que tem um histórico instável em relação às políticas culturais do Estado de S. Paulo.
Se em Livro/Acervo e na plataforma digital MaPA o que estava em foco eram as estratégias de acesso e informação ao arquivo do Paço das Artes - no sentido de contribuir para a construção da narrativa da jovem arte contemporânea brasileira - no projeto ExPaço o que está em pauta é lançar luz para a importância do Paço das Artes como espaço de criação e experimentação artística.
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1 A vocação experimental do Paço das Artes é constatada principalmente através da Temporada de Projetos, que foi criada com o objetivo de abrir espaço à produção, ao fomento e à difusão da prática artística jovem concebida em 1996 pelo diretor técnico Ricardo Ribenboim e pela então curadora da instituição Daniela Bousso, a Temporada de Projetos teve sua primeira exposição realizada em 1997 e se tornou, ao longo dos anos, um rico celeiro para a cena da jovem arte contemporânea brasileira.
2 A partir da idéia inicial do projeto, convidamos os artistas Artur Lescher e Lenora de Barros para o desenvolvimento e concepção da primeira curadoria do Livro/Acervo.
Referências
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_____. 2005. Arte @ Mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo, FAPESP/Editora Senac
______. 2013. Arquivo Vivo. São Paulo, Paço das Artes.
______. Livro/Acervo, Para Além do Arquivo e Arquivo Vivo. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/96735 . Acesso em: 20.09.2022
Benjamin, Walter.1993. Magia e Técnica, Arte e Política. In: Obras escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, vol.1, 6th ed., São Paulo: Brasiliense.
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Ernst, W. The archive as metaphor: form. archive space to archival time Disponível em https://s3.amazonaws.com/arenaattachments/542865/8b32821fe0174156942ede0cf145d55c.pdf . Acesso em: 20.09.2022
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