Entrevistando Lino Morales
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Joana Asseff: Quando tratamos de arte tradicional, ao longo do tempo podemos pensar em diferentes estados de autenticidade. Você acredita que na arte contemporânea esse conceito se transforma? Ou deixa de existir? Tal como consta na Carta de Nara, o termo autenticidade não é relevante na identificação e salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, será que não deveríamos tratar as obras de arte contemporâneas, com grande carga simbólica, mais como patrimônio imaterial do que material?
Lino Morales: Qualquer obra de arte, seja ela tradicional ou não, transita por diferentes estados de autenticidade ao longo do tempo, porque a autenticidade é extrínseca à obra de arte. Já na reunião em Bergen, se estendeu a relação entre a prova de autenticidade com aspectos intangíveis como técnica/tradição, objetivo/intenção – função e contexto/entorno – espírito. Nesse sentido, a abordagem de Nara parece uma contradição.
A autenticidade não é, e nem pode ser, absoluta. A autenticidade é ‘identificada’ através de símbolos e preconceitos ou reações de identificação anteriores. O Gold Pavilion Temple em Kyoto é autêntico para os orientais e falso autêntico (em razão das reconstruções pós-incêndios) para os ocidentais. Para os orientais é autêntico porque cumpre com todas e cada uma das referências de Bergen. Para os ocidentais é falso autêntico porque somente consideram em sua reação de identificação aspectos tangíveis como desenho/forma e matéria/substância. A autenticidade não é relevante para a salvaguarda do patrimônio (material ou imaterial) porque não é uma qualidade de valor universal e cultural e nem tem um caráter científico.
A identidade das obras não está somente no físico dos objetos, mas também, no metafísico dos sujeitos, depende das reações de identificação dos sujeitos, da intersubjetividade. A materialidade da Fontaine de Duchamp não é central, se trata de um “jogo” simbólico, conceitual. Duchamp não criou o mictório, o “encontrou”, ele criou somente a Fontaine. Seu ‘gesto’ transformou um objeto mundano de produção industrial em um objeto (indiscernível) de arte. A arte, desde então, depende mais dos sujeitos do que dos objetos.
JA: Embora você comente que tanto as questões da imaterialidade como as da materialidade são importantes para a conservação de uma obra, podemos observar ao analisar a produção acadêmica na nossa área, que nossos colegas se debruçam mais sobre as questões de materialidade. Porque você acredita que isso aconteça?
LM: A cultura ocidental é fetichista. Se o mictório se quebrasse (mesmo que houvessem muitos para substituí-lo), provavelmente a maioria dos conservadores-restauradores ocidentais se esforçariam ao máximo para ‘recuperar’ o original (que no caso, não é). Poderiam justificar sua atuação pela assinatura: o pseudônimo R. Mutt, embora, nem se quer poderiam afirmar com certeza que se trata de sua assinatura (absolutamente desnecessária para seu propósito); inclusive, existem dúvidas razoáveis acerca da atribuição de sua ‘autoria’ e, por suposto, da autenticidade de todas as ‘cópias originais’ existentes. É importante considerar o objeto possuidor de uma carga simbólica tremenda ou se trata apenas de um objeto cuja ausência de significado é o mais importante? Tal subjetividade (ou intersubjetividade) deveria influenciar nos supostos critérios de intervenção?
Todas as obras (incluindo as intangíveis) tem algo de materialidade que Brandi chamou de suporte. A maioria desses ofuscamentos é causada quando se confunde suporte e imagem; quando se esquece que a função do suporte é a epifania da imagem.
JA: Você aborda a questão da importância do sujeito sobre o objeto citando a observação de Muñoz Viñas de que restauramos para o sujeito e não para o objeto. Tendo em vista que a sociedade está em constante transformação cultural, essa premissa não se torna perigosa? Além disso, para qual sujeito-proprietário, curador, marchant, comunidade, etc., estamos restaurando?
LM: Os objetos, sem os sujeitos, não existem. Não é apenas a sociedade, tudo muda continuamente; do mesmo modo, o estado de autenticidade. O que significa que essa premissa se torna perigosa? A conservação-restauração é um problema de tomada de decisões. É necessário optar por um protoestado (que nada mais é do que o estado de autenticidade preferido); Qual estado escolher? Qual é menos perigoso? Para quem é menos perigoso: para o sujeito ou para o objeto? Para o objeto trata-se de ponderar os riscos. O melhor estado é aquele que conserva a identidade com o menor risco. Para o sujeito se trata apenas de um estado, de um ponto de vista, porque não existe um estado mais autêntico, nem mais verdadeiro que outro.
Parece razoável que o protoestado deveria corresponder ao ‘estado inicial’ (é um dos estados de autenticidade possíveis), à decisão do artista. Vamos supor que encontrem os braços da Vênus de Milo. Restauraríamos a escultura lhe devolvendo os braços? Supondo que se descobrisse qual era sua policromia, devolveríamos as cores à escultura? Provavelmente não, e não seria pelo objeto, senão por essa intersubjetividade a que faço referência e que Muñoz Viñas também nos alerta.
Quando se restaura para uma instituição privada fica claro quem é o sujeito. Mas quando se restaura um bem de interesse cultural para uma instituição pública, deveríamos levar em conta essa intersubjetividade sem exclusões.
Apesar de que a Vênus de Milo teve braços e uma poderosa policromia, apesar de que se tivesse toda a informação necessária para tal reconstrução, duvido muito que se realize tal intervenção (talvez em alguma réplica, mas não no original) Por que? Porque a historicidade também pesa e para a maioria dos sujeitos a Vênus de Milo nunca teve braços, nem cor (mas isto é apenas uma suposição, seria muito interessante saber o que pensam os sujeitos a respeito).
JA: Quando pensamos na preservação da arte contemporânea, nos referimos à questão da documentação e entrevista com o artista para tentarmos entender ao máximo a existência imaterial da obra. Gostaria que falasse um pouco mais sobre as entrevistas com os artistas. Discorrer um pouco sobre o papel que as entrevistas deveriam ter para a conservação da arte contemporânea.
LM: A entrevista só é possível para a conservação da arte contemporânea e da arte de novos meios, porque é mais provável que o artista (ou seus herdeiros) estejam vivos. O objetivo principal da entrevista é documentar, nesse sentido, a entrevista é uma ferramenta de documentação. A entrevista deveria revelar qual é a identidade da obra (a identidade da imagem) e isso inclui aspectos tangíveis e intangíveis. A identidade como aquilo que traça os limites do que “é” essa obra e não outra. Nesse sentido, a entrevista é importante para qualquer obra (seja contemporânea ou não; tendo em conta a dificuldade do termo contemporâneo para remeter a uma época ou aos tempos correntes). Uma entrevista deve ser útil: deve ajudar o conservador-restaurador na escolha do protoestado, deve ser capaz de determinar esses “limites” a que faço referência. Uma entrevista deve ser rigorosa e livre de erros: tudo que for dito deve ser contrastado e verificado. Uma entrevista deve ser ampla: deve tratar unidade, identidade e finalidade em conjunto e isso inclui tanto aspectos tangíveis como intangíveis, objetivos e subjetivos, deve capturar quais são os processos que intervém, tanto a nível atributivo, como a nível distributivo.
Uma obra, seja ela contemporânea ou não, é um sistema, um todo que consta de partes inter-relacionadas entre si em diversas escalas. Na arte, essas partes são signos condicionados por operações sígnicas (adjunção, iteração, superação) que permitem a construção de estruturas sígnicas e supersígnos. Signos incrustados no objeto (unidade atributiva) e inter-relacionados nos sujeitos (unidade distributiva). Nesses sistemas, uma mudança fora de determinados “limites” pode conduzir à um falso autêntico (um estado falido no qual o objeto deixa de ser aquilo que é). Trata-se de avaliar qual é o papel de cada signo e das relações entre os signos que determinam a unidade, a identidade e a finalidade.
Haveria muito mais para falar sobre, mas acrescento uma última consideração. Em uma entrevista o papel do artista e do conservador- restaurador deve ser respeitado.
JA: Em relação às obras que foram criadas para serem efêmeras: se em um determinado momento seu proprietário, seja ele público ou privado, acredita que ela deve ser preservada indefinidamente, você acredita que isso pode ser feito, mesmo quando essa não é a intenção original do artista?
LM: No geral, as obras efêmeras são obras alógrafas (como a música, que pode ser reinterpretada uma e outra vez, em diferentes momentos, por diferentes pessoas sem perder sua essência); O problema surge quando o artista concebe uma obra efêmera como autógrafa (única). No primeiro caso, não existe nenhum problema; no segundo caso se dá uma contradição entre o direito do autor (por parte do artista) e o direito que estabelecem as leis de patrimônio (por parte do conservador-restaurador). Que o proprietário seja privado, não lhe confere os direitos de autor, apenas determinados direitos de exploração (entre os quais poderiam ou não estar o consentimento tácito de reprodução indefinida). Nos casos em que o proprietário seja público é diferente, porque as leis de Patrimônio exigem determinadas responsabilidades aos conservadores –restauradores como garantias do patrimônio. Em casos de conflito, a conservação pode ser limitada a um documento, uma sinédoque da obra, que fica como prova da obra mas que, em nenhum caso, a substitui.
As obras com intervenção do artista, como as performances, por exemplo, costumam ser consideradas autógrafas e por isso, se exibe o documento e não a obra (o que também pode produzir uma tendência sensorial-perceptual-cognitiva; se perde o aqui e agora do original). As obras nas quais o artista não intervém poderiam ser consideradas alógrafas, se não entrarem em contradição com a intenção do artista.
Em qualquer caso, as obras efêmeras que pertencem a um arquivo devem ser conservadas (de maneira legal) por um simples fato; para que não se repitam.
JA: Para concluir, a partir do texto, entende-se que toda vez que se restaura temos um ‘novo objeto único’. Segundo essa compreensão, podemos supor que o trabalho do conservador – restaurador já não é conservar, senão criar, gerar e elaborar?
LM: Não era minha intenção transmitir essa ideia. Conservar-restaurar um objeto (seja ele único ou não) consiste em passá-lo de um ‘estado de autenticidade atual’ para um ‘estado de autenticidade preferido’ (estado que Muñoz Viñas denomina protoestado). Todas as teorias da conservação-restauração discorrem acerca de qual deve ser esse estado. Algumas são mais criativas que outras; mas o conservador-restaurador não é o artista. Sua função é conservar-restaurar a identidade da imagem. Pode criar, gerar e elaborar sobre o suporte (enquanto sirva à epifania da imagem), não sobre a imagem. Se a imagem se altera através desses “limites aceitáveis”, a obra deixa de ser o que era e se converterá em outra coisa, em um trabalho falido, em um falso.
Daniele Volterra, um dos discípulos de Michelangelo, cobriu, por ordem do Papa Pio IV, as partes aparentes dos corpos do juízo final. Não se trata de um caso de conservação - restauração, e sim, uma intervenção não autorizada pelo artista que lhe custou o apelido de ‘El Braghettone’. Uma restauração de quatro anos de duração, descobriu cores inesperadas e uma luminosidade escondida por 450 anos de fumaça, colas e contaminação, e que fez desaparecer alguns dos 38 panos que a última sessão Concílio de Trento, em fins de 1563, e posteriores censuras, sobrepuseram aos originais corpos desnudos do artista. Só se conservaram as consideradas bragas do autor. Esse foi o estado de autenticidade escolhido em consenso; a decisão foi consequência de um longo debate acerca, obviamente, do pudor. No entanto, não existe unanimidade, nem existirá, porque nenhum estado de autenticidade é mais autêntico, nem mais verdadeiro que outro.