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Entrevistando Joana Teixeira

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Kamila Vasques: Partindo do princípio que para compreender adequadamente a Arte Contemporânea é necessário entender uma quantidade massiva de referências, influências, movimentos artísticos e contextos, você acha que as plataformas existentes possuem um dispositivo relacional que dê respostas rápidas e eficientes?

Joana Teixeira: Do ponto de vista prático, não creio que nenhuma resposta possa ser verdadeiramente rápida, mas acredito que o conjunto das várias possibilidades será um caminho eficiente para chegar a resultados. Na verdade, não existem plataformas com a informação suficiente para a tomada de decisão, existem sim, plataformas que fornecem informação e apoio para estruturar corretamente um processo de documentação, que ajudam a entender e permitem exemplificar de que forma se constroem processos de documentação.

O processo de documentar, que levará a um segundo processo relacionado com o da tomada de decisão, é resultado de um agregado de informações dispares que incluem fases completamente distintas. Por um lado, as referentes ao momento, ou momentos, de criação, e por outro, às fases de exposição ou ao processo de conservação propriamente dito, entre outros. É claro que, por parte dos profissionais que contactam diretamente com a arte contemporânea e a sua conservação, há um esforço na partilha de informação, e no aperfeiçoamento dos métodos e das ferramentas, no que diz respeito às suas aplicabilidades. No entanto, a heterogeneidade e celeridade com surgem novas formas de criar, eleva a dificuldade e torna extremamente exigente o acompanhamento necessário do ponto de vista da conservação.



KV: Em sua nota introdutória você coloca que “pensar a documentação, é identificar a informação sobre uma determinada obra”. Como identificar esta informação de forma mais objetiva partindo do princípio que toda interpretação vem carregada de subjetivismo?

JT: É claro que o processo de documentação comporta um processo de interpretação, pelo que será, provável e inevitavelmente marcado por uma abordagem subjetiva, como qualquer processo interpretativo. É um fato, e como tal, deve ser o ponto de partida. E é perante esse grande fator desafiador, mas consciente da produção de leituras e consequentes registros interpretativos individualizados ou ambíguos, que deve ser pensada a documentação. Quando estamos perante uma obra de arte, que não se limita à conservação das questões materiais que a compõem, a documentação consistirá inevitavelmente na fundamental descrição de valores não palpáveis e de difícil definição objetiva. Neste sentido, e com o intuito de criar um registro documental válido e capaz de refletir, o tão subjetivo que é a autenticidade de uma obra de arte, que não unicamente coabita na questão da autenticidade material mas também na autenticidade conceitual, o processo nunca poderá ter um único sujeito, mas vários indivíduos que analisam e expõem as diferentes “verdades” presentes na obra, construindo uma potencial fonte de informação, coerente e verosímil no que respeita à interpretação da mesma. Sempre e quando é identificada a presença de subjetividade, esta deve ser referida no próprio processo de documentação. Ao pensarmos em um catálogo de uma exposição, que é uma fonte importante de documentação, não podemos pensar nos registros fotográficos sem sublinhar que são um ponto de vista materializado, podendo seguramente uma outra perspetiva da mesma obra encaminhar o processo de leitura para outro modo interpretativo. Com o objetivo de que a conservação da arte contemporânea se afaste de uma certa ambiguidade interpretativa, é fundamental que a materialização da documentação preveja esse afastamento: na verdade, o técnico só conseguirá deixar de parte o ambíguo se for consciente da sua presença, baseando todas as suas ações no que é único, verdadeiro e autêntico: a obra.



KV: É consenso geral que uma boa documentação é fundamental para “garantir” a conservação da obra em toda a sua potencialidade, para tanto ela tem que contar com diferentes intervenientes que a alimente constantemente. Você considera que as instituições possuem funcionários suficientes para suprir esta demanda?

JT: Não poderei dar uma resposta totalmente objetiva no que refere à quantidade de funcionários em uma instituição museológica, dos quais está a cargo a conservação das obras, pois a minha experiência com instituições museológicas é pontual. Contudo, e estando totalmente a par do percurso reflexivo e denso que acompanha a prática da conservação de arte contemporânea desde os anos 90 do séc. passado, creio que será muito difícil as instituições conseguirem dar uma resposta profunda à diversidade de exigências técnicas que a área exige. O que acontece desde o início da tomada de consciência associada à mutação e degradação material, com impacto nessa reflexão e discussão iniciada no século passado, é uma resposta direta às necessidades que se manifestam em determinado momento e para a qual se vão definindo procedimentos e medidas concretas. Darei um exemplo possível: uma obra que integra a coleção de uma determinada instituição, encontra-se em reserva desde a data de aquisição e é solicitada para exposição. Durante este período de tempo, possivelmente, a obra manteve-se em um estado de estagnação, quer do ponto de vista de monitorização, apesar de inserida num espaço ambientalmente controlado, quer do ponto de vista documental, uma vez que é provável não ter existido um processo de documentação aprofundado, pois não era uma necessidade premente e os recursos foram encaminhados para dar resposta a outras situações.

Responder corretamente a esta pergunta e apresentar dados concretos, implicaria um estudo abrangente sobre a criação das instituições museológicas e os processos de documentação associados à aquisição de obras. Contudo, e de acordo com as dificuldades conhecidas no seio das equipas de conservação e restauro, é claro que durante muito tempo as obras eram incorporadas nas coleções sem processos de documentação, para além do registro da informação básica e fundamental associada à catalogação ou inventariação da obra. Hoje existe clara consciência sobre as limitações dos materiais constituintes, assim como as questões relacionais da obra com outros elementos que interferem na fruição das obras de arte, pelo que será indispensável um processo de documentação exímio, garantindo que o momento expositivo é coerente do ponto de vista tanto conceitual como material.



KV: Como documentar e conservar obras processuais e/ou efêmeras em coleções quando não é mais possível uma interlocução com o artista?

JT: Este é sem dúvida um dos grandes desafios, afinal o artista é a principal fonte de informação para proceder a uma correta documentação e consequente conservação das suas obras. Entre as tipologias de “obra processual” e “obra efêmera” existem diferentes pontos de vista, quer de resultado final, quer de intencionalidade associada ao próprio processo criativo. Ou seja, perante a definição de obra efêmera, por exemplo, esta poderá consistir em uma instalação em que o museu adquire um projeto, e sempre que a obra é exposta é recriada materialmente; poderá ser uma obra que vive da efemeridade do material utilizado, com constante substituição; e por último, uma obra que só deve existir durante o processo evolutivo do material, mas que o museu controla a ponto de retardar a efemeridade da matéria constituinte. E é por esta diversidade, que não existirá a definição “do caminho”, que seria fácil de encontrar perante a presença do artista e da sua manifestação de intencionalidade. Na ausência do artista, deve recorrer-se ao assistente, à equipe que acompanhava o seu trabalho, à família, outras instituições, etc., levando uma vez mais ao desenvolvimento de um processo de aproximação, leitura e interpretação de dados, elementos, características, etc., com o objetivo último, de documentar.

De acordo com o conhecimento que possuo em relação ao contato com instituições museológicas, é claro que as decisões de conservação se tomam segundo a política institucional e através da comunicação entre redes institucionais e diversos procedimentos que auxiliem o processo de documentação. Contudo, e dependendo do momento em que a obra entra para uma coleção, as tomadas de decisão poderão ter diferentes delineações: se por um lado, existem ações claras no que toca à tomada de decisão de obras efêmeras ou processuais, ou seja, o artista definiu diretrizes ou foi possível defini-las através de redes de informação, etc.; por outro, existem aquelas obras que foram adquiridas indiretamente, por via de colecionadores, entre outros, em que o contato com o artista não existiu, em que não há documentação, e que apesar de ser conhecida a intencionalidade associada à obra, o que foi adquirido, e será mantido, conservado e documentado, por parte da instituição museológica, será o lado material da mesma.

Este processo de tomada de decisão relativamente às obras efêmeras é realmente complexo, tão complexo como perceber que após a entrada de uma obra em contexto museológico se inicia um novo processo de valorização material, muitas das vezes contraditório à intencionalidade criativa e expositiva da obra em questão.



KV: Você comenta em seu texto a importância de registros mais precisos, em relação aos componentes sonoros de uma obra instalativa, para manter a interação e percepção do espectador perante a instalação como um todo. Em muitas instalações sonoras o som depende da interação física com o público, como fica a existência conceitual destas obras quando elas passam a fazer parte de uma instituição e tem esta interatividade bloqueada por questão de conservação?

JT: A resposta a esta questão, de certa forma, já está patente na resposta da pergunta anterior. Na verdade e em uma análise pragmática e crítica, creio que uma obra que é exposta com limites, sejam eles, relacionados com a interação por parte do público, sejam do ponto de vista da exposição material a nível conservativo, é factualmente uma representação da obra e não a obra em si, uma vez que a obra para existir na sua totalidade deverá implicar a interação ou a exposição com coerência material e conceitual: o que está a ser exposto não é mais que uma possível forma de documentação da obra. Por outras palavras, quando pensamos em documentação, conseguimos visualizar registros fotográficos ou registros de vídeo em que se veem refletidas e expostas as características e a intencionalidade da obra, o que não difere da exposição limitada à componente material de uma obra, ou seja, uma perspectiva expositiva que não é mais que o resultado de um processo interpretativo, e que resulta na sua visualização material, excluindo e desfrute e vivência da obra como um todo.



KV: No caso do próprio artista ser o responsável pelos processos decisórios na remontagem da sua instalação, como garantir que ao reinstalar em um ambiente com outra espacialidade não a transforme por completo gerando outra obra? Neste caso, ele também estaria sujeito a seguir o “Manual” da obra.

JT: Uma pergunta interessante, mas para uma análise em profundidade seria necessário relacionar a intenção da obra (componente material versus componente conceitual) com outras questões fundamentais como as relacionadas com o direito de autor e o direito de propriedade, e perceber que limites existem, caso existam, na reinstalação/alteração de uma instalação. Cada obra terá as suas particularidades e características, com resultados provavelmente muito distintos no que se refere à tomada de decisão no momento de reexposição da obra, além das variáveis associadas ao papel do artista nesse processo. Há instalações que vivem da própria mudança expositiva sem que essa alteração visual interfira na interpretação conceitual, ou obras em que é fundamental a remontagem segundo um plano concreto, e no qual, muitas das vezes o artista nem sequer participa.

Ao longo destes anos em que tenho investigado a relação da teoria com a prática da conservação e restauro no âmbito da arte contemporânea, sublinham-se certezas incontornáveis, tais como, a de que não existem formas de atuação sem desvios impostos pelas obras e as suas peculiaridades. Creio que é fundamental, conhecer e entender em profundidade a base teórica, as ferramentas e os métodos que apoiam os processos de leitura, de interpretação e de documentação, pois só assim será possível encontrar respostas para cada um dos casos. São tantas as variáveis que não se torna viável a definição de um caminho que seja aplicável a um grande número de casos. O conservador-restaurador, terá inevitavelmente que ser flexível e motivado pelo questionamento e encontrar nas dúvidas os seus pontos de partida, em um trabalho denso e que implicará o cruzamento de questões técnicas, materiais e conceituais.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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