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Entrevistando Isis Baldini

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Joana Asseff: Quando você afirma que o valor de contemporaneidade “(...) pode alterar a importância dos campos de informação e transmutar o mapa dos atores envolvidos em sua conservação”, está propondo uma nova forma de trabalho?

Isis Baldini: Não estou propondo uma nova forma de trabalho, sim dizendo que, para determinar o tratamento de algumas obras contemporâneas, você precisa repensar os atores envolvidos caso o objetivo do tratamento seja conservar a obra em toda a sua potencialidade, ou seja, respeitando sua existência material e imaterial. Se nas obras convencionais os campos inseridos no bloco objetivo têm prevalência no tratamento, o mesmo não ocorre com algumas obras contemporâneas que são sustentadas pelas informações inseridas no bloco subjetivo. São obras que possuem uma intrincada rede de significados, cuja correta interpretação não depende apenas do conservador, do cientista, do curador e do historiador, mas de uma interlocução com a fonte primária de informação ou de pessoas profissionalmente próximas a ele como, dentre outros, seus assistentes.

Na década de 1980, por exemplo, o artista Hudinilson Júnior fez uma instalação chamada Ecco Narcisus1, uma obra composta de três imagens impressas em papel termográfico que representa, de um lado, o Êxtase de Santa Teresa, do escultor italiano Bernini, do outro um detalhe do rosto de Jesus Cristo da escultura Pietá, de Michelangelo, e ao fundo a imagem de um homem nu que o artista associa ao Santo Sudário de Turin. Ao centro do nicho formado pelas três imagens foi colocado um espelho, simbolizando um lago, no qual os reflexos das imagens se fundem e se separam, em um jogo que se modifica de acordo com a movimentação do observador. Abaixo do lago foi colocada uma lápide, simbolizando um túmulo vazio, em referência ao corpo de Narciso que nunca foi encontrado, onde se lê: ECCO NARCISUS.

As imagens foram feitas pelo processo termossensível por meio de fax a partir de matrizes em xerox. Para determinar o papel no qual as imagens seriam impressas, o artista pesquisou intensamente a resistência fotoquímica de várias técnicas de impressão, porque, assim como aconteceu com Narciso, ele queria que, ao final da exposição, a obra também desaparecesse. Dessa forma, o ápice da obra seria o esmaecimento total das imagens; somente nesse momento ela existiria em toda a sua carga simbólica, trazendo angústia e dor esperadas como parte do trabalho. Depois disso as bobinas seriam descartadas e a obra existiria apenas na forma de documentação.

Imagine que a obra começasse a desaparecer e você não tivesse conhecimento da poética pretendida pelo artista, quais seriam os atores envolvidos? Provavelmente o cientista, o conservador e o curador, aqueles responsáveis por estabilizar a “degradação”. Em contrapartida, se você conhecesse a essência da obra e a respeitasse, provavelmente alguns atores poderiam ser removidos e outros, como o documentalista e o fotógrafo e/ou o cineasta, necessariamente inseridos.

 

JA: No texto, compreende-se que o valor de contemporaneidade está ligado ao tempo histórico. Podemos afirmar que, quando se restaura uma obra de arte contemporânea levando em consideração esse valor, estamos restaurando em determinado momento e para determinada sociedade?

IB: O valor de contemporaneidade está ligado à inserção do campo filosófico na estrutura de algumas obras. Independentemente de a obra ter ou não esse valor, ela estará sujeita à atuação do tempo histórico. O tempo atua em todas as obras, cobrindo seus campos com camadas sistematizadas de forma metafórica alterando constante a importância destes. E, embora esteja muitas vezes distante de seu presente histórico, ela continua sempre contemporânea no presente histórico da consciência do observador, porque ele sempre se reconhece na última camada. Nós estamos sempre restaurando as obras, independentemente dos valores que a sustentam, para determinada sociedade e utilizando parâmetros subjetivos, mesmo quando embasados em dados objetivos. Portanto, embora o gosto tenha ocupado um lugar de destaque nas reflexões sobre a estética no século XVIII e tenha sido, a partir da segunda metade do século XX, gradativamente retirado das reflexões sobre a crítica de arte, ele está presente em cada opção que prioriza uma camada sobre as demais.

 

JA: Quando uma intervenção é realizada levando em conta o seu valor de contemporaneidade e seu presente histórico, ela está sendo suscetível ao contexto sócio-cultural desse presente. Assim sendo, você concorda que qualquer intervenção realizada durante a existência de uma obra sempre será diferente se considerarmos que esse valor é dinâmico, flexível e maleável?

IB: O valor de contemporaneidade que eu defendo está ligado à existência conceitual da obra, e, para que essa existência seja mantida, às vezes será necessário trocar os materiais, mesmo originais, repintar, deixa-la degradar, sumir ou até mesmo restaurá-la com frequência para mantê-la em um constante presente histórico inicial. Por isso ele é dinâmico, flexível e maleável; não é igual para todas as obras, não uniformiza tratamentos.

Diante disso, é esperável que as intervenções possam ser diferentes e normalmente o são, mas não podem alterar significativamente a poética da obra. Voltando à instalação Ecco Narcisus, para que ela exista em toda a sua potencialidade parte da obra deve desaparecer e ser descartada – esse seria o ápice de sua existência, o motivo pelo qual foi criada. Se ela tivesse desaparecido, como esperado, em sua primeira exposição, na década de 1980, isso teria sido registrado e a obra teria cumprido seu ciclo. Como não ocorreu, o tempo criou várias camadas de informações que agregaram outros valores e que podem resultar, por parte da instituição proprietária, no desejo de manter seu campo concreto “inalterado”, prolongar sua sobrevida. Tal decisão, caso ocorresse, alteraria significativamente a poética da obra, pois teria sua existência simbólica desconsiderada, não existiria em sua potencialidade. Dessa forma, pela própria impossibilidade criada pelas camadas metafóricas adicionadas pelo fator tempo, a obra teria sua compreensão alcançada somente a partir de um exercício de imaginação.

 

JA: Você acredita que por meio de uma entrevista com o artista conseguimos compreender todo o campo filosófico de uma obra contemporânea?

IB: Acho que nunca vamos compreender nada totalmente, mas acredito que, quanto mais próximos do tempo histórico inicial da obra estivermos, mais as respostas serão confiáveis. Em contrapartida, quanto mais esse tempo se distancia de nosso presente histórico, mais devemos checar a veracidade das respostas. Devemos considerar que o artista está vendo a obra com base em referenciais que ele muitas vezes não tinha décadas atrás e que isso pode impactar em suas respostas. De toda forma, deixar uma intervenção na mão do artista ou seguir suas determinações sem ponderar o contexto é, a meu ver, uma atitude que, embora possa ter respaldo ético, é questionável e pode incorrer em riscos imensuráveis.

 

JA: Você não acha que a entrevista como fonte de informação para a preservação do campo filosófico pode se tornar incompleta e anacrônica quando ela se afasta muito do tempo histórico inicial da obra?

IB: Como disse anteriormente, quanto mais nos distanciamos do tempo histórico inicial mais devemos checar e ponderar as respostas, pois o fator tempo sempre adiciona camadas e campos de informação que reelaboram e reequilibram nossa percepção. Por exemplo, na XVI Bienal Internacional de São Paulo, de 1981, tinha o núcleo de Arte Postal para o qual os artistas artepostalistas enviaram suas obras e estas foram expostas sem uma prévia seleção. Foi apresentada na Bienal uma série de redes formadas a partir de propostas de artistas: redes são circuitos normalmente estabelecidos a partir da orientação de um artista proponente. Hudinilson Júnior, por exemplo, enviou seis propostas, cada uma com respostas de também seis artistas pré-selecionados. Ele enviou para os artistas de sua rede uma fotocópia p/b, tamanho ofício, com o título da proposta, uma imagem indicativa do direcionamento conceitual e um espaço em branco, na parte inferior, para que fosse registrada a resposta. Todas as respostas da mesma proposta foram coladas, em sentido vertical, com uma fita de papel de aproximadamente dois centímetros, obedecendo mesma sequencia em relação aos artistas. Como as obras apresentavam danos que, em alguns casos, não deixavam claro se eram intencionais ou não, ponderou-se que o melhor seria conversar com o artista.

Hudinilson relatou que enviou as propostas para os artistas interferirem e solicitou que enviassem as respostas direto para a Bienal que, segundo ele, já estava avisada. Questionado sobre a forma com que as obras foram coladas, ele respondeu que havia sido a Bienal que colara uma obra na outra, mas que tinha gostado do resultado, e que, provavelmente, teria dado a mesma solução.

Apesar da coerência e da veemência das respostas, se formos analisar o contexto, a forma cuidadosa e precisa do trabalho de colagem das obras, concluiremos que as informações oferecidas pelo artista podem ter sido falseadas. Além disso, para corroborar nossa dúvida no verso das propostas existiam indicações claras de que os artistas deveriam interferir na obra e devolver as respostas para Hudinilson e não para a Bienal, como relatou. Será que se a entrevista tivesse ocorrido na década de 1980 teríamos a mesma resposta que tivemos 28 anos depois? Esse fato, assim como outros que presenciei, confirma que as posições dos artistas devem ser registradas, mas não obedecidas sem questionamentos e análise crítica, pois a memória também é coberta com várias camadas metafóricas que alteram as lembranças. Mesmo assim, as informações obtidas na entrevista nos ajudaram de forma determinante na definição dos tratamentos.

 

JA: Você acredita que a atual formação do conservador-restaurador engloba esse conhecimento filosófico mais amplo? Se não, o que acha que seria necessário para uma formação mais completa?

IB: Não conheço a grade curricular de todos os cursos de graduação, mas acredito que a inclusão de disciplinas que pensem o contemporâneo além dos problemas apresentados pela matéria é essencial para compreender uma parcela cada vez maior da produção artística atual. Sem isso, estamos fadados a realizar intervenções autômatas sem a devida reflexão e que podem implicar em erros conceituais.

1 A instalação foi feita para uma exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1980.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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