Entrevistando Andreia Nogueira
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Kamila Vasques: No Brasil, não é necessariamente o conservador o responsável pela montagem de uma obra, pode ser, por exemplo, o curador, o artista, o assistente do artista, o documentalista, o montador, o museógrafo e/ou o expógrafo. Neste caso, eles seriam também os co-autores da obra?
Andreia Nogueira: Nos meus escritos tenho dado particular atenção e relevo à figura do conservador, mas obviamente que em qualquer processo de reativação ou reapresentação de uma obra de arte muitos outros profissionais estão envolvidos. Em ambiente museológico, o trabalho de um conservador não é, regra geral, feito de forma isolada. O conservador trabalha normalmente em equipe, com outros conservadores ou ainda com curadores, historiadores, artistas, assistentes de montagem de exposições, entre muitos outros profissionais, pelo menos, no que tange à realidade Europeia. A questão da autoria, co-autoria, ou autoria múltipla é sem dúvida muitíssimo pertinente, neste contexto. Tradicionalmente, como observa Boris Groys no seu artigo “Multiple Authorship”1, o artista é o autor da obra, enquanto o curador é quem seleciona. No entanto, para Boris Groys, esta distinção é bastante obsoleta, pelo menos desde Duchamp, altura em que os artistas passaram também a incorporar nas suas práticas momentos de seleção, o que converteu o ato de selecionar num ato criativo. Assim, o artista pode ser entendido como um curador e, reciprocamente, qualquer decisão curatorial (e, a meu ver, também qualquer prática de conservação) está ligada a um ato criativo. É importante compreender que as práticas curatoriais e de conservação estão muito relacionadas. Basta, para tal, considerar a etimologia da palavra curadoria, do latim curare, que significa cuidar, zelar, tratar. Podemos, assim, considerar que uma obra de arte é criada ou recriada ao longo do tempo por vários autores, entre eles possivelmente o conservador, bem como muitos dos profissionais elencados, visto que estes participam criativamente na manutenção da identidade de uma obra.
O que tenho vindo a defender mais recentemente é que, efetivamente, existe um conflito, cada vez mais acentuado, entre mediação e autoria, sobretudo no que concerne às práticas de preservação de arte contemporânea. Esta situação deve-se ao fato de o conservador ser geralmente entendido como um mediador passivo, que atua de forma neutra e objetiva. Esta passividade, no entanto, não é compatível com muitas das atuais estratégias aplicadas à preservação de obras contemporâneas baseadas em um qualquer momento performativo, visto que, a cada novo processo expositivo, o conservador (ou na realidade brasileira: o curador, o assistente do artista, o documentalista, etc.) é chamado a uma nova interpretação, que é naturalmente e intrinsecamente criativa, uma vez que não é possível repetir o mesmo gesto ou movimento.
KV: Por que o ato de conservar a obra é uma criação se esses profissionais estão seguindo estritamente as instruções dos artistas?
AN: Esta questão é extremamente pertinente e permite-me dar continuidade à questão anterior, mas agora tirando partido de uma analogia com o trabalho do intérprete em âmbito musical que, de alguma forma, já influenciou, em 2012, a escrita do meu artigo “The Conservator as a Performer”. Devo mencionar que estudei música, nomeadamente piano, durante muitos anos. Para além disto, o meu núcleo familiar é composto por vários músicos profissionais, sendo que tertúlias sobre música e conservação são recorrentes.
Em âmbito musical, a interpretação criativa do intérprete é, geralmente, bem-vinda e até necessária para que determinada performance seja considerada autêntica. No entanto, tradicionalmente, não se espera que os intérpretes criem novas obras. Em vez disso, eles são responsáveis por criar performances autênticas e únicas, sempre de acordo com o texto musical ou com as intenções dos compositores. A sua criatividade é especialmente importante na manutenção de um repertório musical contemporâneo, especialmente, no contexto da música eletroacústica, da música eletrônica em tempo real ou da música para computador. Isto acontece porque muitas das obras que hoje são criadas pelos compositores contemporâneos estão extremamente dependentes de novas tecnologias e sonoridades não convencionais e, portanto, não são necessariamente prescritas através do texto musical tradicional ou outros tipos de documentação. Este repertório requer uma abordagem de conservação dinâmica baseada na mudança e na criatividade, de modo a que as obras possam ser reinterpretadas constantemente na sua variabilidade. O Grupo de Trabalho Archivage Collaboratif et Préservation Créative [Arquivo Colaborativo e Preservação Criativa]2, que trabalhou na criação da base de dados Sidney, no Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (IRCAM), em França, com o objetivo de preservar o repertório musical contemporâneo criado na instituição, destacou precisamente a necessidade de adoção de uma abordagem de preservação criativa. Serge Lemouton, um dos coordenadores deste grupo, chegou a mencionar que, por exemplo, uma pintura antiga vai-se alterando ao longo do tempo muito mais lentamente do que uma obra de arte baseada em performance, especialmente se dependente de novas tecnologias, uma vez que estas tecnologias exigem processos constantes de migração, emulação ou reinterpretação. E é aqui que reside a preservação criativa.3
Adaptando este cenário à realidade das artes plásticas considero que o conservador, tal como o intérprete ou performer musical, é chamado a usar a sua criatividade para reinterpretar as obras na sua variabilidade, mas sempre seguindo as instruções dos artistas e, como tal, nunca criando novas obras de arte, senão apenas novas interpretações que, obviamente, terão de ser entendidas dentro dos limites estabelecidos pelos artistas.
KV: O artista Francisco Tropa tem como intenção nas suas obras que elas se alterem e incorporem significados com o tempo, mas a mesma ideia pode não ser aplicada a todos os artistas performáticos ou que trabalham com instalação. Como conservar as obras dos artistas que não permite esta liberdade conceitual?
AN: Estas obras irão eventualmente desaparecer mais rapidamente do que aquelas que comportam uma maior variabilidade e adaptação. Temos de encarar a inevitabilidade de não podermos conservar tudo, indefinidamente, de forma imutável. O importante nestes casos será deixar algum tipo de documentação que possa servir como memória materializada. Mas também aqui o trabalho se mostra complexo, visto que é hoje perfeitamente reconhecido que existe um excesso de arquivo e que as nossas práticas não são sustentáveis, nem do ponto de vista laborar nem ambiental. Tenho, por isso, defendido o retorno ao papel, visto que não existem estudos que nos demonstrem que o uso de papel como suporte para a nossa documentação é mais poluente do que o uso do documento digital. Na verdade, com o desenvolvimento da tecnologia digital, a sociedade moderna tem potenciado a proliferação exponencial de arquivos digitais, muitos sem significado ou extremamente difíceis de gerir dado o volume monstruoso de informação, o que consequentemente gera consumos energéticos muitíssimo elevados. Para além disto, não existem práticas de preservação em domínio digital que nos garantam a continuidade de um documento digital ao fim de 20 ou 30 anos. Tenho-me, por isso, colocado a questão: Porque dedicar tantos recursos para a elaboração de uma documentação, em formato digital, que poderá vir a perder-se em um futuro próximo? Com esta perda o nosso trabalho terá sido, de alguma forma, em vão e, eventualmente, terá de ser repetido (caso ainda seja possível fazê-lo). Temos, por isso, de repensar as nossas atuais estratégias de documentação ou transmissão, no sentido de chegarmos a práticas mais sustentáveis tanto laboral como ambientalmente. Considerando a dificuldade em definir e criar estas práticas, tenho-me questionado sobre a pertinência de retornarmos ao papel como meio primordial de comunicação e transmissão da memória a longo prazo. O papel foi durante muito tempo o substrato material primordial de materialização da memória. O desafio está agora em pensarmos sobre uma documentação criativa, que permita uma maior sustentabilidade ambiental e laboral e que parta do papel, mas que possa ser usada de forma criativa em adaptação às realidades futuras.4
KV: Você não acha que ao colocar a ideia de que o conservador seria co-autor ou performer ao remontar uma obra pode gerar interpretações dúbias ou complicadas sobre o seu papel perante a conservação da obra? Qual o grau de subjetividade aceitável?
AN: A meu ver, o problema em abordar a questão da autoria na sua relação com os conceitos de subjetividade e criatividade no âmbito dos estudos de preservação do patrimônio está relacionado com a imagem pública da conservação e restauro. Para a sociedade, em geral, como eu já disse, o conservador é visto como um guardião passivo. Por este motivo, as práticas de conservação são, muitas vezes, deliberadamente ocultadas do público. Nos museus de arte contemporânea, por exemplo, as obras de instalação são, geralmente, apresentadas como obras fixas e acabadas, negligenciando-se as mudanças induzidas pelos conservadores e outros profissionais envolvidos nos sucessivos momentos expositivos e nos constantes processos de tomada de decisão em relação à sua conservação.
Os próprios conservadores, regra geral, defendem a ideia de que a conservação trata da manutenção da integridade física da obra, o mais próximo possível do seu estado original, de acordo com as intenções do artista e obedecendo a procedimentos formalmente neutros, invisíveis e científica e objetivamente confiáveis e, portanto, ausentes de qualquer interferência de gosto, preferências pessoais ou criatividade. Esta perspetiva surgiu em oposição a velhas controvérsias e práticas, no final do século XVIII e início do século XIX, na medida em que alguns artistas (ainda não conservadores, no sentido moderno do termo) costumavam ser demasiado criativos aquando do restauro de obras de outros artistas, principalmente pinturas e esculturas. Com a desmaterialização do objeto artístico na década de 1960, o campo da conservação enfrentou novos e inéditos desafios, que põem constantemente em causa a natureza da agência do conservador, uma vez que, como eu já disse, as criações artísticas contemporâneas mudam ao longo do tempo de forma mais significativa do que as obras de arte ditas tradicionais e isso deve-se, em parte, ao fato de que um ato criativo (eminentemente subjetivo) está presente em qualquer reencenação, ativação ou nova reinterpretação. A criatividade, no entanto, não tem sido abordada abertamente nos estudos modernos de conservação, por causa do conservadorismo dos conservadores e pelo fato de que os profissionais da conservação temem ver a sua reputação prejudicada. Volto, novamente, a frisar que, todavia, a subjetividade e a criatividade do conservador estão, naturalmente, dependentes das intenções dos autores, tal como acontece em âmbito musical, com os intérpretes ou performers. Por este motivo, não se espera que o conservador crie uma nova obra. Este apenas contribuiu para uma nova interpretação (a sua), executada dentro da prática deontológica em vigor.
KV: Como garantir que não haja um excesso de subjetividade ao remontar uma obra e correr o risco de criar se um falso histórico e/ou um falso artístico?
AN: Desde sempre a disciplina da conservação tem-se confrontado com a dificuldade em delimitar o âmbito das suas intervenções. No contexto da presente discussão parece-me que o mais importante passa por equipar o público com as ferramentas e os conhecimentos críticos necessários de forma a interpretar e apreciar as intervenções dos conservadores (e dos profissionais que com estes trabalham) e a aprofundar a sua experiência sobre as obras. Dito de outra forma, é importante dar a conhecer a agência interventiva destes profissionais, para que a sociedade possa compreender que qualquer intervenção de conservação ou restauro ou de remontagem de uma obra irá inevitavelmente alterar uma obra, bem como o seu significado, o que não implica, todavia, a criação de um falso histórico. O teórico Salvador Muñoz Viñas diz-nos que o princípio da intervenção mínima poderá muito bem ter surgido em reação ao fato dos conservadores serem vistos como sendo demasiado subjetivos ou mesmo como potenciais mentirosos, ao promoverem a criação de falsos históricos. O problema, na minha perspetiva, não está relacionado tanto com um excesso de subjetividade (que em alguns casos poderá existir), mas sim com a sua invisibilidade, uma vez que ainda hoje se teima em reconhecer que as decisões dos conservadores (pelo menos as mais importantes) são baseadas em preferências subjetivas, gostos e sentimentos e que nenhum critério meramente objetivo pode justificar as decisões e intervenções dos conservadores. Salvador Muñoz Viñas dá-nos um exemplo muito ilustrativo desta realidade: a espessura ou composição de uma camada de verniz sobre uma pintura pode ser determinada objetivamente, mas a decisão de remover o verniz para dar uma aparência mais limpa e harmoniosa à pintura é essencialmente subjetiva, uma vez que depende do gosto e das preferências de cada conservador.5
A disciplina da conservação foi sendo, assim, confrontada com um número crescente de críticas ao seu profissionalismo, precisamente, por não assumir a necessária agência subjetiva e criativa dos conservadores. Estes optaram, então, por implementar novos princípios e formas de manter a sua invisibilidade epistêmica, limitando as suas intervenções. Este foi o caso do princípio da intervenção mínima. Isto não quer dizer que este princípio não seja útil. O mesmo tem, no entanto, sido aplicado de forma demasiado exaustiva.
Quer se queira ou não, a conservação (ou qualquer outra atividade conexa) está centrada no ser humano e, como tal, é propensa à subjetividade e à criatividade. Definir ou limitar esta subjetividade e criatividade é, e continuará a ser, uma das questões centrais na prática da conservação e restauro para a qual não há uma resposta universal.
KV: Juridicamente a propriedade intelectual é um bem inalienável do artista previsto em lei, assim como a autoria e a co-autoria. Assim sendo, mesmo que o conservador ou outro profissional responsável pela montagem da obra faça algumas alterações isso não os transforma em co-autores, aliás modificações criativas podem infringir no direito moral do artista e são passíveis de processos judiciais. Como você vê esta questão jurídica ao qual os conservadores e demais profissionais estão sujeitos?
AN: A questão da autoria é sem dúvida muito complexa e pertinente, tendo necessariamente de ser olhada com muito cuidado e atenção. Eu não sou jurista pelo que não domino completamente todas as questões legais relacionadas com a temática, mas admito que terão de ser revistas e repensadas. Esta questão, no entanto, leva-me a retornar àquilo que tenho vindo a referir e que é seguinte: os conservadores ou os curadores, os assistentes, entre outros profissionais, tal como os intérpretes ou performers musicais, são chamados a usar a sua criatividade para reinterpretar as obras na sua variabilidade, de acordo com as instruções dos artistas. Como tal, não se espera que estes criem intencionalmente nenhuma obra de arte, senão apenas novas interpretações que, obviamente, terão de ser entendidas dentro dos limites estabelecidos pelos artistas. A criatividade e a subjetividade destes profissionais devem, assim, ser compreendidas dentro da variabilidade que é admitida pelos artistas e comportada pelas obras. Nesta medida, não existe lugar à criminalização das práticas dos conservadores ou de outros profissionais envolvidos nos processos de montagem das obras, uma vez que estes desempenham as suas funções dentro dos limites estabelecidos pelos códigos deontológicos em vigor, nomeadamente mediante o respeito pelas intenções dos artistas e pela história e biografia das obras.
Temos ainda de analisar outra situação. As leis relacionadas com a propriedade intelectual ou com os direitos de autor não estão especialmente adaptadas às novas formas artísticas, sobretudo no que respeita às obras efémeras, de base performativa, e mais recentemente aos tokens não fungíveis (NFTs) ou à criptoarte. Existe ainda um longo caminho de reflexão no que toca às questões jurídicas relacionadas com a temática em discussão. Esta situação, porém, não deve demover-nos de pensarmos novos futuros para o património, pelo que termino com uma questão: Porque não considerar a criatividade, a subjetividade e a variabilidade como uma oportunidade e não como um problema?
Resta-me agradecer a oportunidade em participar neste número da revista Fórum Permanente e sobretudo ao GeCAC. O meu muito obrigada.
1 Boris Groys, “Multiple Authorship,” em Art Power (Cambridge: MIT Press, 2008), 93–100.
2 Para mais informações ver: Alain Bonardi, Laurent Pottier, Jacques Warnier, Serge Lemouton, e Pellerin, Guillaume, Archivage Collaboratif et Préservation Créative. Rapport Final du Groupe de Travail 2018/19, Association Francophone d’Informatique Musicale, 2020.
3 Testemunho disponível em: Serge Lemouton, “The Preservation of Electroacoustic Music,” May 2019, em Technocolture Podcast, episódio 32, produzido por Federica Bressan, http://podcast.federicabressan.com/serge-lemouton.php.
4 Sobre este assunto será publicado brevemente um artigo meu na revista GeoConservación intitulado “O papel? Qual papel? A função do papel no contexto dos estudos de preservação do património na era pós-industrial.”
5 Salvador Muñoz Viñas, On the Ethics of Cultural Heritage Conservation (London: Archetype Publications, 2020).