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A Natureza Transacional da Conservação do Patrimônio versão reduzida

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Salvador Muñoz-Viñas

Tradução por Caetana Britto

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I A Síndrome de Frankenstein

Um dos belos paradoxos no mundo da conservação do patrimônio é que muitas vezes funciona alterando o que precisa ser conservado. Em outras palavras, a conservação altera. A relutância em reconhecer este fato tem sido chamada de “Síndrome de Frankenstein” (já que assim como Viktor Frankenstein não gostaria de pensar em algumas das consequências de seus experimentos, muitos especialistas e não especialistas parecem realmente não levar em conta as consequências da maioria dos tratamentos de conservação).

 

Essa ideia foi apresentada em um discurso na reunião anual do American Institute for Conservation de 2011 e publicada posteriormente.1 Para conveniência do leitor, pode ser necessário um resumo. A argumentação começa por falar de Valência, Espanha. Valência é uma cidade de tamanho médio (cerca de 800.000 habitantes, além de uma área metropolitana maior que abriga mais ou menos a mesma quantidade de pessoas). É uma cidade encantadora de acordo com muitos visitantes; é certamente antiga, tendo sido fundada pelos romanos. Ela viveu vários eventos: foi uma cidade muçulmana por vários séculos e foi dominada pelo exército napoleônico por vários anos. Até se tornou a capital da Espanha republicana durante a Guerra Civil Espanhola. Seu período áureo, no entanto, ocorreu no final da Idade Média e durou até o século XV. No século XIII, muito em sintonia com a ascensão da cidade, decidiu-se construir uma grande catedral.

 

A primeira porta da catedral foi criada no estilo românico, enquanto a maior parte do restante era gótica. Quando a capela do altar-mor foi destruída por um incêndio no século XV, dois pintores italianos foram contratados para pintar o teto. No século XVII, toda a capela, incluindo o seu teto, foi remodelada num rico estilo barroco e no século seguinte foi construída uma nova porta barroca e todo o interior da catedral foi remodelado ao estilo neoclássico. Esta evolução pode ser considerada um pouco típica de edifícios deste tipo, que foram construídos, reconstruídos e modificados de acordo com os gostos e necessidades dos seus usuários.

 

Na década de 1980, a catedral foi alvo de um extenso tratamento de conservação, que envolveu a restauração do interior gótico da nave principal. As capelas laterais e o altar-mor mantiveram, no entanto, as suas remodelações neoclássicas e barrocas. No início dos anos 2000, durante uma vistoria de conservação de rotina, foi descoberto um pequeno vazamento de água no teto acima do altar-mor. Para encontrar a origem do vazamento, uma câmera foi inserida no espaço entre o teto barroco e a meia-cúpula gótica mais antiga. Para surpresa dos conservadores, a câmera mostrou que as pinturas renascentistas do século XV não haviam sido destruídas durante a reforma barroca; na verdade, elas foram preservadas em muito bom estado.

 

Após esta descoberta e após consulta a renomados especialistas nacionais e internacionais, foi decidido que o teto barroco seria removido para mostrar as pinturas renascentistas, que por acaso eram muito bonitas. Os conservadores desmontaram o teto e limparam as pinturas (Foto 1). O resultado foi um sucesso de público retumbante. A inauguração tornou-se um evento político, organizaram-se congressos internacionais e exposições itinerantes, publicaram-se livros de mesa e milhares de pessoas fizeram fila para ver o novo tesouro da cidade. E, no entanto, o que os conservadores produziram foi um compósito novinho em folha, algo feito de fragmentos que nunca se pensou coexistir juntos. Como resultado desse trabalho, o altar-mor apresenta agora uma abóbada em que as cúpulas góticas e as extremidades centrais dos arcos góticos podem ser vistas ao lado de pinturas renascentistas. Uma profusa decoração barroca dourada cobre a maior parte dos arcos, que terminam numa pedra angular nua no centro da meia cúpula, que não é puramente barroca, nem renascentista nem gótica (Foto 2). De certa forma, os conservadores criaram uma espécie de criatura Frankenstein histórica e artística.2

Altar-mor em estilo barroco, catedral gótica de Valência. foto 1

Foto 1 Altar-mor em estilo barroco, catedral gótica de Valência.

Foto 2 Detalhe da cúpula. Na pedra angular, apenas as extremidades dos arcos góticos são visíveis; as partes restantes são revestidas com decoração barroca. Entre estes arcos góticos/barrocos, o teto gótico é coberto por pinturas renascentistas. A fim de tornar as pinturas renascentistas totalmente visíveis, a enorme pedra angular barroca suspensa, foi removida. O que agora pode ser visto é um vazio, octogonal.

 

Este pode parecer um exemplo extremo e não representativo, mas na verdade não é tão diferente de quase todos os outros tratamentos de conservação. A diferença não é qualitativa, mas quantitativa: a mistura de fragmentos e materiais de diferentes regiões e épocas é apenas mais perceptível.

 

Considere o caso das pinturas do início da Renascença na igreja de Assis, Itália, que foram destruídas por um terremoto em 26 de setembro de 1997. Como resultado de um forte tremor, 5,7 na escala Richter, grandes fragmentos do teto em que as pinturas foram feitas há cinco séculos caíram no chão, onde foram reduzidas a pó e escombros.

 

O longo e delicado processo de conservação começou reunindo meticulosamente o maior número possível de fragmentos das pinturas e depois adivinhando sua localização original. Os fragmentos que puderam ser identificados foram colados em reproduções das pinturas impressas em tamanho real. Por fim, as reproduções com os fragmentos colados foram, por sua vez, aderidas a um painel de núcleo hexagonal e recolocadas na nova estrutura do teto reconstruída. O tratamento foi considerado um sucesso, mas o que os visitantes podem ver agora é, novamente, uma mistura de diferentes materiais e objetos de diferentes origens e épocas: pinturas de 500 anos podem ser vistas ao lado de uma moderna gravura colorida; gesso antigo misturado com adesivos sintéticos modernos; e todas essas partes montadas em um painel leve e de alta tecnologia, como os usados ​​na indústria aeroespacial moderna.

 

De fato, esse fenômeno pode ser reconhecido em muitos tratamentos de conservação. A maioria dos visitantes da National Gallery de Londres que contempla La venus del espejo de Velázquez, acredita estar olhando para uma pintura do século XVII. O que eles estão vendo de fato é mais uma mistura de materiais de diferentes regiões e épocas, já que esta pintura foi cortada em 1914 por uma sufragista e depois submetida a um tratamento hábil que escondeu com sucesso todos os danos. Como resultado, a pintura agora contém as pinceladas feitas por Velázquez na Espanha do século XVII ao lado das feitas por um conservador em Londres no século XX. Claro, os materiais também são diversos: há pigmentos e aglutinantes do século XVII ao lado de outros do século XX. O fato é que essa pintura agora é um compósito, um objeto diferente da pintura que Velázquez fez por volta de 1650.

 

Novos materiais modernos são frequentemente adicionados ao objeto que está sendo conservado, então, de fato, poderia haver uma metáfora melhor do que a da criatura de Viktor Frankenstein. Pode não ter o pedigree do personagem clássico de Mary Shelley, mas talvez seja mais preciso: os novos objetos produzidos pela adição de materiais de conservação modernos muitas vezes podem ser melhor comparados com o personagem retratado no filme clássico RoboCop de Paul Verhoeven. RoboCop (Orion Pictures, 1987) conta a história de Alex J. Murphy, um policial que fica gravemente ferido no dever. Para salvar sua vida, os cirurgiões substituem partes de seu corpo por partes cibernéticas. Como resultado e como diz o pôster do filme, Murphy se torna “parte homem, parte máquina, todo policial”. De forma semelhante, uma antiga escultura de madeira pode ser impregnada com um moderno consolidante acrílico; uma pintura barroca pode ser encontrada montada em uma moldura metálica de tensão constante; ou um bordado renascentista pode ser costurado em um tecido plástico não tecido.

 

Ambas as metáforas de Frankenstein e RoboCop podem parecer exageradas. No entanto, não são pelo menos excepcionais, uma vez que outros autores chamaram a atenção para a natureza composta de artefatos amplamente diferentes usando essas mesmas referências. Por exemplo, a conservação de uma antiga fortaleza árabe no sul da Espanha resultou em uma mistura de paredes brancas modernas e pedras antigas que ganhou um prêmio internacional de arquitetura3, mas também foi descrita como um “castelo tipo Frankenstein”4 ou mesmo como um “Franken-stelo”,5 enquanto a Gioconda teria se tornado um “verdadeiro ciborgue do século XXI” desde que um conjunto moderno de sensores e circuitos eletrônicos que transmitem informações sobre sua condição foi anexado às suas costas.6

 

O mais interessante aqui, no entanto, é o fato de que muitos conservadores, assim como o público em geral, ainda querem ver a conservação como uma atividade puramente neutra, uma atividade que está fora da história do objeto. Tão forte é o desejo de ser um agente transparente, quase fantasma, que em inúmeras ocasiões tanto os conservadores quanto todos os demais envolvidos na gestão do patrimônio aprenderam a não apenas acreditar que a conservação pode ser realizada sem interferir no objeto, mas também a desconsiderar essa interferência. Essa cegueira seletiva e não o fato de que a conservação muitas vezes cria compósitos, é do que trata a “síndrome de Frankenstein”. Assim como o médico Viktor Frankenstein se deixou levar pela vontade de adquirir maior conhecimento e poder, sem realmente querer estar ciente das possíveis consequências de seus atos, os conservadores também podem realizar tratamentos sem realmente estarem dispostos a ver algumas de suas consequências, a saber, todas aquelas consequências que impliquem uma alteração do objeto a ser conservado.

 

II C-IA (Conservation-Induced Alteration: Alteração Induzida pela Conservação)

Por mais óbvio que possa parecer depois de destacado, quando a “síndrome de Frankenstein” foi apresentada ao público pela primeira vez em 2011, a própria ideia foi vista como um “ataque provocativo” à audiencia.7 A julgar por muitos relatos, textos e palestras, os conservadores tendem a ignorar (ou pelo menos se esquivar) o fato de que, com a possível exceção da conservação preventiva, todos os tratamentos de conservação funcionam formando um objeto mais ou menos diferente do objeto a ser conservado.

 

Decerto é muito difícil saber com certeza se um determinado conservador está ou não ciente das alterações induzidas pela conservação (ou C-IA, para abreviar), ou até que ponto ele está ciente. Mas a C-IA está descaradamente ausente de conversas, discussões, relatórios e livros didáticos. Este dificilmente é um tópico popular, apesar de sua ocorrência tão comum.

(…)

 

IV Entendendo o C-IA: o benefício maior

Se a conservação realmente aspirasse a evitar a C-IA, somente a conservação preventiva seria realizada. Mas este não é o caso. Quando o C-IA acontece, a conservação contradiz seus aparentes objetivos, ou até mesmo seu próprio nome – mas ainda pode produzir resultados satisfatórios. A questão, portanto, não é se a C-IA é ou não aceitável, mas sim porque ela é aceitável.

 

A resposta é bastante simples, beirando o óbvio. A C-IA pode ser considerada aceitável porque é acompanhada por importantes efeitos colaterais positivos. O único requisito é produzir um benefício global. A comparação com a medicina, tão utilizada no campo da conservação, talvez seja muito útil aqui.

 

Considere alguém passando por uma cirurgia cardíaca. O paciente tem que ser injetado com algumas drogas que induzem ao coma e que podem ter efeitos colaterais perigosos. Muito provavelmente, o sangue de uma pessoa desconhecida terá que ser misturado com o sangue do paciente. O cirurgião cortará a pele do paciente, então alguns ossos serão serrados e separados. Então, após a operação (que pode envolver a inserção de um dispositivo eletrônico, ou a substituição de uma válvula cardíaca defeituosa por outra, talvez de uma vaca ou outro mamífero), o tórax será fechado novamente com grampos ou um fio sintético, que devem ser removidos em algum momento no futuro, quando o paciente se recuperar de uma intervenção tão agressiva. Todo o processo envolve riscos (pode ocorrer uma infecção, o corpo pode rejeitar a peça substituída, as peças novas podem funcionar mal etc.) e um longo período de recuperação. Por que, então, todos esses danos graves e todos os riscos associados são considerados aceitáveis?

 

Todos esses fardos e riscos são aceitos porque, em última análise, produzirão um benefício maior para o paciente (e para seus amigos e parentes, e para muito mais pessoas em certos casos): uma vida mais longa e geralmente mais feliz, pelo menos se e quando o paciente se recuperar totalmente. O paciente provavelmente desfrutará de muitos momentos felizes que não seriam possíveis se a cirurgia não tivesse ocorrido. É essa perspectiva que faz valer a pena passar por todas essas etapas e correr riscos tão graves. É isso que torna a intervenção cirúrgica a coisa certa e sensata a se fazer.

 

Com a conservação não é diferente: a C-IA é como um pedágio que deve ser pago para se obter um benefício muito maior. Considere os casos descritos acima. Esfregar uma superfície de papel com um material plástico (como uma borracha comum) certamente alterará a superfície em um nível microscópico, independentemente de quão suavemente é feito.8 No entanto, o olho nu pode não detectar nenhuma alteração: o que se percebe é uma superfície mais limpa, uma superfície bem cuidada e com aparência mais bonita. Agora, os ganhos são importantes o suficiente para justificar o processo quando comparados às perdas? Sim, geralmente são. A superfície parece melhor e uma mensagem de cuidado adequado é enviada ao público. A alteração microscópica da superfície parece negligenciável, pois não compromete a estabilidade do artefato nem tem qualquer relevância.

 

O mesmo raciocínio pode ser aplicado a qualquer outra técnica de conservação. Voltando ao aplanamento do papel: quando um papel é aplanado, as ondulações e rugas são eliminadas para sempre, ou seja, algumas marcas autênticas de sua história se perdem definitivamente. Além disso, obrigatoriamente as dimensões vão variar um pouco. Por outro lado, a veladura é feita para que o papel pareça melhor e mais cuidado; além de poder ser manuseado e armazenado de forma mais conveniente. Novamente, os ganhos são geralmente considerados maiores que as perdas, de modo que esse processo é bastante difundido.

 

V Incertezas epistêmicas: nem tudo que conta pode ser contado

Quantificar com precisão os valores que foram ganhos e perdidos, no entanto, não é simples. Na verdade, alguns podem considerar simplesmente impossível. Isso porque muitos dos valores que a conservação aumenta ou diminui são imensuráveis. Como medir o aumento do prazer estético que o tratamento de conservação de uma obra de arte produz em seus espectadores? Como traduzir em números o orgulho que a contemplação de um símbolo nacional bem restaurado produz em seus espectadores? Como avaliar o vínculo social que ela provoca? Como avaliar o valor de qualquer emoção? Além disso, como o valor da evidência histórica, como a sujeira em um tecido histórico ou a crosta de óxido em uma espada medieval, pode ser quantificado? Como determinar o valor científico causado por uma mancha em uma pintura esmaltada?

 

De fato, muitos dos ganhos e perdas recaem nos campos estético e simbólico. Cuidar de um objeto significa que ele é importante, que os conceitos que o objeto incorpora valem a pena serem lembrados e que as pessoas responsáveis ​​por ele estão fazendo um bom trabalho. Parecer limpo e brilhante torna o objeto mais bonito e mais agradável. O valor desse prazer e desses significados é real, mas não se prestam a ser facilmente traduzidos em números. Estimar o ganho líquido de um processo de conservação pode, portanto, ser muito mais complexo do que, por exemplo, estimar a espessura correta de um feixe ou o comprimento de onda de um sinal de rádio. Não existem fórmulas para valores subjetivos como os envolvidos na conservação do patrimônio. Uma calculadora ou computador podem ser usados para estimar coisas simples que, como o lucro monetário ou a elasticidade de uma amostra de tecido em condições padrão, podem ser expressas com precisão em números. Mas não pode lidar com os tipos de valores com os quais a conservação do patrimônio também lida. Ou seja, os cálculos necessários para avaliar um tratamento de conservação são complexos demais para uma máquina e só podem ser realizados com sucesso por seres humanos. De fato, esse tipo de estimativa pode ser tão complexo e cheio de nuances que, ao contrário de um problema matemático, pessoas diferentes podem dar respostas diferentes, todas parcialmente corretas. Na verdade, é duvidoso que um problema desse tipo possa ser respondido com uma única nota matemática, com cem por cento de acerto.

 

Para algumas pessoas, isso pode ser um problema, a ponto de julgamentos desse tipo serem considerados absurdos ou inúteis – ou infrutíferos, como Werner e MacLaren insistiram.9 E ainda, quando se trata de avaliar o sucesso de um tratamento de conservação, o oposto seria mais verdadeiro: nenhuma discussão frutífera pode ser baseada apenas em fatos.

 

Para dificultar as coisas, o processo de tomada de decisão na vida real é ainda mais complexo, pois precisa levar em consideração muitos fatores de naturezas diversas e que geralmente são exclusivos de cada caso. Por exemplo, uma perda óbvia que todos esses tratamentos incorrem é o seu custo. Todos eles exigem dinheiro, tempo de trabalho de conservadores profissionais, ferramentas de conservação que se desgastam, materiais de consumo que precisam ser repostos e um espaço de trabalho que precisa ser pago. E sempre é preciso estabelecer compromissos. Uma vez que o orçamento é habitualmente limitado, a conservação de alguns artefatos, bem como alguns tratamentos, tem de ser priorizados.

 

De fato, a conservação não ocorre no vácuo, econômico ou não. Museus, casas de leilões e colecionadores podem ter necessidades e objetivos que influenciarão o processo de conservação. Por exemplo, o tempo disponível para a conclusão de um o tratamento pode ser limitado; o laboratório de conservação de uma instituição pode ter algumas ferramentas, materiais de consumo e dispositivos e carecer de outros; as leis locais podem proibir ou limitar o uso de certos produtos químicos; a aparência das obras em uma sala de museu pode influenciar no tratamento de uma pintura que ficará exposta naquela mesma sala; a função que se espera que um objeto cumpra (estar em exposição, estar em uma igreja, estar em um arquivo, ser manuseado etc.) pode fazer com que seja aconselhável preferir uma abordagem a outra; e assim por diante. Esses fatores também podem ter um grande impacto no resultado de um tratamento de conservação e tornar ainda mais difícil fazer avaliações e julgamentos adequados e tomar decisões.

 

A conservação dos cartazes de filmes mencionados anteriormente10 é um exemplo disso. Eles deveriam ser exibidos, sendo aconselhável prepará-los para serem exibidos com segurança e de maneira satisfatória. Ao mesmo tempo, armazenar folhas de papel desse tamanho consome espaço. Eles são muitas vezes guardados em rolos largos de papel cartão, que ocupam um espaço de armazenamento valioso que, neste caso, não estava disponível. Um cartaz montado em uma tela, no entanto, soa como uma opção de armazenamento e de fato, é usada como sistema de exibição em muitos museus. Além disso, não ocupa tanto espaço quanto os pôsteres enrolados e mantém o pôster visível: se for examinado, fotografado ou exibido novamente, não há necessidade de ser retirado fora do tubo, montado temporariamente, depois desmontado e devolvido ao tubo novamente. Por outro lado, o processo é tecnicamente desafiador e mais caro do que apenas aplanar o papel.

 

O processo decisório que levou à escolha desse tratamento levou em consideração esses e outros fatores, que podem ser interpretados em termos de ganhos e perdas. Entre as perdas mais relevantes estão a alteração das dimensões dos cartazes, que passaram a ser aproximadamente 5 mm maiores, a perda das rugas e ondulações originais e a alteração da natureza original dos cartazes, apenas papel. O processo também envolveu custos econômicos, além de riscos para os cartazes, pois estavam sujeitos a transporte, manuseio e diversos procedimentos delicados.

 

Os ganhos também foram variados. Por exemplo, os cartazes agora são montados de forma que permaneçam estáveis ​​e duráveis; ao mesmo tempo, podem ser facilmente removidos da tela em caso de necessidade (o que espera se não aconteça no momento). Eles também podem ser facilmente armazenados no precioso espaço disponível na reserva e convenientemente transportados e exibidos se e quando necessário, para que mais pessoas possam apreciá-los.

 

Mais importante, eles parecem bonitos e continuarão a sê-lo. Eles também parecem bem cuidados, o que transmite uma mensagem sobre sua importância e sobre o trabalho que o arquivo cinematográfico, que é uma instituição pública, está fazendo para preservar o patrimônio público.

 

É claro que qualquer um poderia criticar o tratamento argumentando, por exemplo, que os cartazes de papel foram colados em papel japonês e sobre uma tela esticada, de modo que sua natureza original, somente papel, foi distorcida (pelo menos temporariamente pois podem ser facilmente destacados das telas em caso de necessidade). De fato, após o tratamento os cartazes tornaram-se uma pintura em tela ou algo parecido. Eles não podem mais ser enrolados ou dobrados como os cartazes de papel originais e não podem mais ser cortados no tamanho certo, como se fazia quando um cartaz precisava caber em uma janela menor. Além disso, eles não podem ser colados na parede ou enviados por meio de um serviço de correio regular. Na verdade, eles não são mais verdadeiros cartazes de papel e, portanto, as decisões de conservação tomadas neste caso podem ser criticadas por esse motivo. Em última análise, e como mencionado acima, é verdade que o tratamento criou um composto Frankenstein/RoboCop que nunca existiu antes: vários aspectos dos cartazes originais foram perdidos (alguns deles irreversivelmente).

 

Ao mesmo tempo, porém, o tratamento foi bem-sucedido, tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista do atendimento da maioria das expectativas, comprovando que, se um tratamento de conservação pode ser considerado bem-sucedido, não é porque não produziu perdas, mas sim porque os ganhos são muito maiores que as perdas.

 

VI Incertezas técnicas

Os muitos fatores complexos, sutis e imensuráveis ​​envolvidos em um processo de conservação tornam difícil avaliar com precisão os benefícios gerais de uma transação. Essa dificuldade, ou melhor, essa impossibilidade, é agravada pelo fato de que o grau de sucesso de um tratamento de conservação só pode ser verificado com o passar do tempo. Por exemplo, a estabilidade a longo prazo de um produto químico que foi adicionado ao objeto, ou a solidez de um material de reforço, são cruciais quando se trata de avaliar o trabalho de conservação. Mas eles só podem realmente ser avaliados depois que o tempo passa.

 

Esta é uma questão importante. Como as máquinas do tempo ainda não existem, o critério utilizado pelos conservadores é de se ater às informações fornecidas pelos cientistas, que na maioria das vezes são baseadas em testes de envelhecimento acelerado. Embora esta seja a técnica mais conhecida para prever o comportamento de materiais, o fato é que não é um procedimento totalmente confiável. Como escreveu o proeminente cientista de conservação e ex-diretor do ICCROM Giorgio Torraca, “quando um cientista propõe um tratamento de conservação e garante sua confiabilidade e durabilidade, ele está blefando conscientemente (nos melhores casos) ou sofrendo delírios por falta de experiência”.11 E mesmo que os testes de envelhecimento artificial fossem totalmente confiáveis, os cientistas seriam capazes de garantir a estabilidade a longo prazo de um determinado material apenas em condições de laboratório. Infelizmente, existem muitas variáveis ​​que tornam essas previsões não confiáveis ​​em circunstâncias da vida real, uma vez que mesmo o melhor material disponível provavelmente será exposto a condições que não são as mesmas das amostras no laboratório. Uma cola, por exemplo, pode se comportar bem quando em contato com uma lâmina de vidro como as usadas em testes de envelhecimento acelerado, mas pode se comportar diferente quando em contato com um tecido medieval de quinhentos anos que é ácido, irregularmente sujo e contaminado com gases poluentes — isto é, quando expostos a circunstâncias que dificilmente podem ser replicadas em laboratório. Além disso, mesmo que a cola se comportasse bem, independentemente das condições, ainda seria possível que os conservadores a aplicassem de maneira descuidada e defeituosa. Isso só pode ser conhecido depois que o tempo passar, de modo que, como em muitas facetas da vida (desde a escolha de um filme para assistir à compra de uma casa ou à escolha de um parceiro), apenas suposições educadas podem ser feitas. Mesmo que os especialistas façam as suposições certas na maioria das vezes, há sempre o risco de falha e isso é algo sobre o qual tanto os profissionais do patrimônio quanto o público do patrimônio em geral precisam chegar a um acordo. O trabalho dos conservadores, não menos que o de muitos outros profissionais, sofre de um alto grau de incerteza inerente à atividade.12

 

Por outro lado, ao julgar o trabalho de conservação, os leigos precisam estar cientes de que existem tecnicalidades que só podem ser julgadas por especialistas. Por exemplo, apenas os especialistas sabem quais opções técnicas alternativas poderiam ter sido aplicadas e quais benefícios poderiam ter sido obtidos de cada uma delas e a que custo. Ou seja, são os especialistas que melhor conhecem os detalhes da transação: conhecem bem as técnicas e os materiais e sabem o que se pode esperar deles. De volta à metáfora da medicina: os médicos estão mais bem preparados do que qualquer um nos aspectos técnicos das decisões médicas.

 

Isso não quer dizer que os pacientes não tenham nada a dizer: eles têm sim, pois sabem melhor do que ninguém o que estão vivendo. Eles sabem melhor do que ninguém se o tratamento trouxe muito ou pouco alívio e, no entanto, não sabem quanto alívio poderiam ter obtido se as decisões fossem melhores ou piores. Isso também se aplica à conservação. Um espectador pode saber como se sente ao contemplar um objeto tratado. No entanto, o espectador médio pode não saber quais opções técnicas existiam e quais resultados poderiam ser esperados de cada uma delas. O espectador também ignora muitos dos prejuízos que o tratamento trouxe, bem como a maioria dos benefícios a longo prazo. Por exemplo, um observador regular pode gostar ou não da nova aparência de uma obra de arte, ignorando o impacto total que o tratamento teve em algumas características imperceptíveis do objeto tais como sua textura microscópica, sua composição química ou sua resistência mecânica. Além disso, essa pessoa não pode saber se a estabilidade esperada a longo prazo foi melhorada ou não — e quanto foi melhorada e quanto poderia ter sido melhorada e a que custo. Infelizmente, apenas alguns aspectos do tratamento podem ser julgados simplesmente olhando para o objeto tratado, como a homogeneidade de uma camada protetora de verniz, ou a qualidade de um retoque, ou a intensidade de uma cor. Estas são as características que a maioria dos não especialistas leva em consideração ao julgar um tratamento de conservação.

 

Isso é um tanto injusto, mas talvez não completamente, já que a maioria das pessoas identifica e interpreta um objeto através de suas características mais óbvias. Ao mesmo tempo, os especialistas podem se interessar por características que só podem ser apreciadas com o auxílio de ferramentas de pesquisa sofisticadas: microscopia óptica, microscopia eletrônica, espectroscopia IR Transformada-Fourier, difratometria de raios X, análise de pólen etc. Essas pessoas podem ter um conjunto de prioridades muito diferente daquele dos leigos (ou ainda de colegas especialistas). Por exemplo, um arqueólogo cujo trabalho consiste em buscar evidências materiais pode afirmar que a restauração do Sudário de Turim é um fracasso ou mesmo um “desastre”, pois, entre outras coisas, o tratamento removeu a sujeira do Sudário (da qual algumas informações históricas talvez pudessem ter sido obtidas).13 Pode haver conjuntos de prioridades conflitantes, de modo que o conservador às vezes pode se sentir como se estivesse em um fogo cruzado, pois é raro que todas as prioridades de todas as partes interessadas possam ser totalmente satisfeitas.

 

VII Incertezas axiológicas: os valores mudam

O valor das coisas pode ser muito variável. Por exemplo, um objeto pode ser muito valioso para algumas pessoas e quase sem valor para outras. Este é frequentemente o caso de objetos religiosos ou obras de arte contemporânea. Além disso, os conservadores muitas vezes trabalham com recordações familiares e pessoais que têm pouco ou nenhum valor para o próprio conservador, mas que são carregadas de um valor emocional intenso para o cliente (e é por isso que essas coisas são conservadas). Esse valor emocional não é exclusivo das recordações pessoais, pois é isso que torna tão valiosos outros objetos como símbolos nacionais. Esses tipos de valores podem desempenhar um papel importante na conservação e o fato de serem muito poderosos e difusos é talvez a principal razão pela qual o tipo de troca ocasionada pela conservação pode ser objeto de desacordo.

 

Como em toda transação, o valor das coisas trocadas é atribuído pelas pessoas envolvidas na transação e pode variar muito dependendo da pessoa e das circunstâncias. Por exemplo, e como diz a lenda, uma grande ilha na costa leste da América do Norte pode ser trocada por algumas bugigangas. Não é um negócio que provavelmente alguém faria hoje em dia, mas quando a ilha que hoje conhecemos como Manhattan foi vendida pelos nativos, todos os envolvidos ficaram felizes porque o valor atribuído às coisas adquiridas era, no mínimo, tão alto quanto o valor das coisas perdidas.

 

Muitas pessoas tendem a acreditar que o valor é atribuído objetivamente (ou mesmo que seja inerente) às coisas. Para as pessoas que vivem em sociedades desenvolvidas, as coisas têm um preço exato, geralmente expresso em unidades monetárias em uma etiqueta anexada à coisa.14 O preço é algo que a coisa tem, independentemente de quanto um determinado indivíduo esteja disposto a pagar por ela: parece independente da vontade ou das necessidades de qualquer um, por isso é tentador supor que não é algo estabelecido por alguém, mas sim uma característica da própria coisa. No entanto, o preço foi determinado por alguém, ou por um grupo de pessoas, que decidiu qual margem de lucro é adequada, enquanto, por sua vez, tentava adivinhar o valor que outros atribuiriam a essa coisa. E, claro, o preço pode variar. Às vezes, os vendedores podem estar dispostos a reduzir suas margens de lucro se, por exemplo, valorizam mais a venda de itens atualizados, ou o aumento do espaço, ou a necessidade de mudar a decoração da loja, ou se simplesmente desejam vender mais para tornar a loja mais conhecida. Na verdade, esse tipo de variação de valor acontece periodicamente em muitas lojas sem motivo aparente e ninguém se pergunta por que o valor presumivelmente objetivo de uma mesma camiseta pode flutuar descontroladamente dependendo da data em que a transação ocorre. O leitor pode estar pensando com razão em vendas sazonais ou Black Friday, mas basicamente a mesma ideia se aplica a outros tipos de coisas, como uma pintura de Van Gogh ou alguns exemplos de arte urbana, cujos preços sofreram enormes variações ao longo do tempo.

 

O fato de que o valor pode mudar ao longo do tempo acrescenta mais uma camada de incerteza, pois a conservação não é feita apenas para seus contemporâneos, mas também para aqueles que ainda não nasceram, aqueles cujos interesses podem ser apenas vagamente adivinhados. Portanto, o sucesso ou fracasso a longo prazo de um tratamento de conservação não pode ser julgado em termos binários, ou estimado por meio de quaisquer ferramentas objetivas ou com total certeza. Existem simplesmente muitos fatores confusos que podem influenciá-lo. Tal julgamento também deverá depender dos recursos disponíveis, do calendário das obras, das necessidades que procura satisfazer, das expectativas e gostos das pessoas para as quais se destina, das possibilidades técnicas existentes e da habilidade e cuidado com que o tratamento foi realizado — entre muitos fatores que não podem ser avaliados com precisão, nem mesmo por especialistas.

 

Considere o caso das muitas controvérsias sobre limpeza que abalaram e continuam a abalar o mundo da conservação. Desde o advento da conservação moderna no século XVIII, alguns conservadores conseguiram indignar o público removendo vernizes envelhecidos (e, como sugerem os críticos, alguns esmaltes também) de pinturas de antigos mestres.15

 

Estas controvérsias podem ser consideradas como exemplos dos valores variados atribuídos a uma característica do artefato, no caso, os seus vernizes. Para alguns, os vernizes envelhecidos nas pinturas não são uma preocupação real – eles tendem a aceitar e apreciar as obras como elas se tornaram agora. E como a sua existência não é vista como uma perda, a sua remoção também não implica ganho — muito pelo contrário, pois o suposto dano colateral da remoção do verniz (a remoção de alguns esmaltes e o enfraquecimento de algumas camadas da pintura) é considerada uma perda importante. Outros consideram o verniz envelhecido altamente prejudicial às pinturas. Qualquer vestígio de verniz envelhecido em uma pintura deve, portanto, ser removido, pois isso significará um grande benefício para a pintura e seus apreciadores.

 

Esta última abordagem teve um impacto profundo no mundo anglo-saxão em meados do século passado e, a partir daí, permeou outras áreas do mundo ocidental. No entanto, mesmo uma ideia tão fortemente arraigada está sujeita a mudanças: o valor, que é o que determina se uma transação foi ou não benéfica, é atribuído subjetivamente pelas pessoas e suas visões podem mudar ao longo do tempo. Assim, depois de décadas erradicando o máximo possível de verniz, o verniz envelhecido tornou-se tão raro que pode ser considerado um testemunho valioso da idade de uma pintura ou dos gostos que prevaleceram em tempos passados. Em 2002, por exemplo, o Editorial da The Burlington Magazine discutiu os tratamentos de conservação sofridos pelas primeiras pinturas italianas nas coleções da Universidade de Yale. Esses tratamentos ocorreram entre 1952 e 1971 e hoje são amplamente considerados um exemplo do que tem sido chamado de “limpeza radical”. Assim, um São Jerônimo que foi deixado intocado “como uma lição prática de sujeira” pode ser considerado valioso por guardar “um verniz muito antigo e extremamente bem conservado”.16 Os valores podem mudar e mudam, então mesmo que o valor de um objeto aumente hoje, pode diminuir amanhã e vice-versa.

 

Da mesma forma, daqui a cinquenta anos, colecionadores, historiadores ou leigos poderão começar a apreciar as marcas de dobras em cartazes de filmes antigos como marcas históricas valiosas e talvez um dia se descubra que vernizes envelhecidos contêm substâncias químicas que permitirão a datação precisa da pintura; ou talvez um dispositivo de alta tecnologia que ninguém possa imaginar agora permitirá que futuros pesquisadores obtenham informações históricas dos traços de compostos presentes na superfície de uma escultura metálica. Portanto, conservadores como o autor deste ensaio podem já ter removido (e continuar removendo) evidências históricas potenciais para sempre.

Isso pode acontecer, mas hoje, na segunda década do século XXI, não há evidências de que se torne realidade. O que existe de fato é um grande número de pessoas que está, e provavelmente estará apreciando pinturas sem verniz e belos pôsteres de filmes planos e esculturas de metal limpas. O fato é que não é possível saber ao certo se algumas características do objeto serão valiosas no futuro, para o público ou para os pesquisadores, assim como não se pode saber ao certo o quão irritantes essas minúsculas partículas embutidas na teia de fibra de papel (Fotos 20a e 20b) serão para futuros pesquisadores — ou se eles se importarão com elas. Ficamos, portanto, com avaliações subjetivas que precisam ser baseadas em suposições.

Fotomicrografias SEM

Foto 20a-20b Fotomicrografias SEM (c.125X e c.1.000X conforme impresso neste livro) de uma impressão xerográfica que foi desacidificada para aumentar sua vida útil. A impressão agora está manchada com partículas imperceptíveis de um composto alcalino, mostrado sob o SEM como manchas brancas.


Felizmente, essas suposições podem estar informadas o suficiente. No estado atual do conhecimento, a maioria dos processos de conservação faz sentido na maioria dos casos, pois os ganhos esperados são considerados razoavelmente maiores, ou mesmo muito maiores, do que as perdas agora e no futuro previsível. Pode ser que no século 22 um historiador lamente um tratamento de conservação específico que realmente dificultou sua pesquisa de doutorado por ter removido algum tipo de evidência que atualmente não é considerada valiosa. Também, naquele mesmo século, um apreciador da arte poderia sentir falta do aspecto envelhecido e estragado que a sujeira e as rugas conferiam às muitas telas que foram limpas, renteladas ou esticadas pelos mais habilidosos e renomados conservadores do nosso tempo. Se for esse o caso, pode-se esperar que o pesquisador ou o apreciador da arte perceba os tratamentos de conservação como um evento histórico a mais na vida do objeto e, assim, seja capaz de compreender os objetivos e as circunstâncias que fizeram as decisões tomadas parecem os melhores possíveis. Nossos contemporâneos certamente o fazem e, sem dúvida, suas necessidades e interesses merecem ser igualmente atendidos.

 

VIII O kintsugi ocidental: chegando a um acordo com C-IA

Em resumo, é difícil determinar com precisão os ganhos derivados de um tratamento de conservação, pois envolve incertezas técnicas e axiológicas. Ainda assim, isso não quer dizer que um julgamento sólido sobre os méritos de uma intervenção de conservação não seja possível – longe disso. Esses julgamentos podem ser difíceis, mas são cruciais e devem ser feitos com o maior cuidado possível. Como já foi discutido em outro lugar, julgamentos sólidos podem ser feitos se for considerada a natureza intersubjetiva (ao invés da meramente subjetiva) do processo. Uma espécie de cálculo de felicidade, um índice de felicidade por assim dizer, como o proposto por Jeremy Bentham, precisa ser realizado para avaliar os ganhos e perdas.17

Foto 21 Uma lista altamente simplificada de ganhos (verde) e perdas (vermelho) envolvidos na conservação preventiva de uma pintura (esquerda), versus os ganhos e perdas decorrentes de um tratamento de conservação interventivo (direita).

 

No entanto, este tema vai muito além do escopo deste ensaio. O que este texto argumenta é que um tratamento de conservação é semelhante a uma transação: há custos e há benefícios. Estes não podem ser avaliados objetiva ou precisamente, uma vez que tipos muito diversos de fatores (estéticos, simbólicos, emocionais, políticos, econômicos, técnicos) precisam ser comparados e avaliados. A estimativa correta de seu valor relativo não pode ser feita apenas por meios aritméticos, mas também deve contar com bom senso e sensibilidade. E não pode acontecer de outra forma, pois é a relação entre esses custos (riscos assumidos; perdas simbólicas, estéticas e informacionais; custos econômicos etc.) e ganhos (melhoria estética, mensagens intencionais transmitidas, aumento da vida útil, aumento do valor monetário etc.) que precisa ser levada em consideração para julgar qualquer tratamento de conservação de forma justa e sensata (Fotos 21 e 22).

Uma tentativa de resumo dos tipos de ganhos e perdas

Foto 22a-22b Uma tentativa de resumo dos tipos de ganhos e perdas envolvidos em um tratamento de conservação

 

O fato de os valores dos ganhos e dos custos não serem mensuráveis ​​objetivamente torna uma avaliação correta do saldo mais complexa do que simplesmente inserir dados em uma planilha. Como dito acima, pode haver mais de uma resposta certa e elas podem estar certas ou erradas em diferentes graus. Compromissos precisam ser feitos e nenhum tratamento de conservação funcionará a menos que traia, até certo ponto, seu próprio nome – isto é, a menos que a coisa conservada seja alterada de uma forma ou de outra.

 

Hoje, vemos uma crescente conscientização da alteração induzida pela conservação permeando a cultura da infalibilidade típica da profissão de conservação. Esta pode ser a razão pela qual muitos conservadores agora optam por uma atitude puramente preventiva (defensiva?) em relação à conservação, que é semelhante ao que Jonathan Ashley-Smith apelidou de “a ética de não fazer nada”.18 Como resultado, a conservação preventiva ou não-interventiva está sendo atualmente preferida aos tratamentos de conservação propriamente interventivos e indutores de alteração.

Esta é uma atitude prudente. É talvez a abordagem mais segura para a conservação, pois é técnica e profissionalmente isenta de riscos. No entanto, embora em muitos casos possa ser a opção de conservação mais lucrativa (ou seja, a melhor), não é inerentemente melhor ou pior do que outras opções de conservação envolvendo C-IA. Certamente não contribui para aumentar o prazer proporcionado pelo objeto nem para aumentar sua usabilidade ou seu valor. Tanto a conservação preventiva como a conservação interventiva podem fazer com que o objeto dure mais, mas a conservação preventiva não contribui tanto para tornar um objeto patrimonial mais funcional, ou seja, para que cumpra melhor as funções do patrimônio.

 

Para superar essa restrição autoimposta, o mundo do patrimônio precisa chegar a um acordo com a C-IA. Em outras palavras, a natureza não neutra da conservação do patrimônio precisa ser reconhecida. E deve-se reconhecer que a conservação não é neutra por uma boa razão: ela muda o patrimônio para melhor. Torna os objetos patrimoniais mais valioso, mais envolventes, mais duradouros, mais eficientes. A conservação muda porque a conservação melhora.

 

A arte japonesa de kintsugi é interessante nesse sentido. Consiste em reparar objetos quebrados de forma que o reparo seja claramente visível (Foto 23). O trabalho do reparador não é escondido, como também não é vergonhoso: é reconhecido abertamente e contribui para o valor do objeto.

Foto 23 Kintsugi ou kintsukuroi é uma tradição japonesa que consiste em reparar um objeto, normalmente uma peça de cerâmica, usando uma cola de cor dourada evidente. Ao contrário das abordagens ocidentais de conservação, no kintsugi a alteração induzida no processo é abertamente reconhecida.

 

Essa atitude pode ser um modelo para os ocidentais que tentam entender melhor, julgar e tomar decisões sobre a conservação do patrimônio e talvez até sobre patrimônio em geral. Fingir que a conservação não afeta o objeto, ou seja, não altera o objeto — que não aconteceu, que não existe C-IA — não é sábio, pois simplesmente não está de acordo com a realidade. No final das contas, reconhecer abertamente a natureza transacional da conservação é uma estratégia mais inteligente e justa para o patrimônio, pois, no mínimo, pode fornecer melhores fundamentos éticos e teóricos para aqueles que desejam entender como o patrimônio é, ou deveria ser, cuidado.

 

 

Link para o texto integral:

https://www.reinwardt.ahk.nl/media/rwa/docs/Publicaties/Rwa_memorial_lecture_2017_munoz_web.pdf

 

 

Créditos

Fotos 1, 2, 20a, 20b, 21, 22a e 22b autoria de Salvador Muñoz-Viñas.

Foto 23, autoria de Haragayato (Own work, CC BY-SA 4.0).

 

 

 

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Notas finais

 

1MUÑOZ-VIÑAS, S., “The Frankenstein Syndrome”, in Hatchfield, P. (ed.), Ethics and Critical Thinking in Conservation, Washington DC: American Institute for Conservation of Historic & Artistic Works, 2013, pp. 111-126.

2No sentido mais difundido hoje em dia, não como descrito por Mary Shelley em 1818, mas como apresentado em Frankenstein, o clássico filme americano dirigido por James Whale em 1931 e estrelado por Boris Karloff, e na maioria de suas muitas sequências: um monstro “feito de uma dúzia de cadáveres”, como retratado em um dos cartazes de The Evil of Frankenstein (dirigido por Freddie Francis em 1964).

3The Architizer A+Award, in the category of Restoration (https:// architizer.com/projects/restorationof-matrera-castle/). Todas as fontes da Internet referenciadas neste ensaio estavam online em 12 de dezembro de 2017.

4WAINWRIGHT, O., “Spain’s Concrete Castle: a Case of Accidental Genius?”, The Guardian, 10 de março de 2016 (https://www.theguardian.com/artanddesign/architecturedesignblog/2016/mar/10/spain-concretecastle-restoration-matrera-cadizaccidental-genius).

5https://www.artsjournal.com/2016/03/franken-castle-what-a-spanisharchitect-did-to-a-historic-ruin.html.

6RUBIO, Dominguez, F., “On the discrepancy between objects and things: An ecological approach”, in Journal of Material Culture, vol. 21, 1, 2016, pp. 59-86.

7MATERO, F., “Letter to the Editor”, in AIC News, July 2011, p. 2.

8IGLESIAS e RUIZ, 2011, cit. (acima, nota 15).

9 “Considerações subjetivas tendiam a obscurecer fatos, sobre os quais somente uma discussão frutífera pode ser baseada”. (MacLaren, N., e A. Werner, “Some Factual Observations about Vernishes and Glazes”, em The Burlington Magazine, vol. 92, n. 568 (1950), pp. 189-192 (p.189)). Este artigo foi publicado em meio à chamada polêmica da limpeza que girou em torno da remoção de vernizes envelhecidos de pinturas na National Gallery de Londres durante a Segunda Guerra Mundial. Algumas linhas abaixo da citação, os autores expressam seu descaso por considerações estéticas: “Não pode haver fim para a discussão dos aspectos puramente estéticos do assunto, e propõe-se aqui limitar a discussão ao lado técnico da questão”.

10 Nota do Tradutor: Os cartazes a que o autor se refere foram mencionados anteriormente no texto original, mas não nesta versão abreviada; o autor refere-se ao tratamento de cartões litográficos de grande formato (120 x 160 cm), que consistiu essencialmente de limpeza, laminação com papel japonês e montagem em tela para exposição permanente.

11TORRACA, G., “The Scientist in Conservation”, in Getty Conservation Institute Bulletin, vol. 14, 3 (1999), pp. 8-11. O ICCROM é uma organização intergovernamental que trabalha a serviço de seus Estados membros para promover a conservação de todas as formas de patrimônio cultural, em todas as regiões do mundo (www.iccrom.org).

12 O leitor curioso pode estar interessado em ler “Imperfect Conservation”, um Editorial convidado para a edição de primavera de 2014 do e-Conservation Journal, na qual o autor argumenta que os riscos e compromissos são dados na conservação (doi: 10.18236 /econs2.201401).

13 Existem outras razões para esta afirmação. Curiosamente, a maioria delas é baseada na remoção de provas históricas (Meacham, W., “The ‘restoration’ of the Turin Shroud: a conservation and scientific disaster”, in E-Conservation Magazine, vol. 13 (2010), pp. 28-42 (http://hdl.handle.net/10722/208511).

14Do ponto de vista técnico, preço e valor não são a mesma coisa. Por uma questão de legibilidade, no entanto, neste ensaio preço é entendido como a expressão monetária do valor.

15 KERK, S., “Algumas controvérsias de limpeza de imagens: passado e presente”, in Journal of the American Institute for Conservation, vol. 23, 2 (1984), pp. 73-87.

16 “Editorial”, em The Burlington Magazine, vol. 144, n.1191 (2002), p. 331. Observe que isso não quer dizer que a limpeza da pintura estava errada ou certa. Muito provavelmente, o verniz do São Jerônimo nunca teria sido considerado valioso (nem mereceria uma menção em um editorial da The Burlington Magazine) não fosse o fato de tantas outras pinturas terem tido verniz removido.

17 Ver, por exemplo, Muñoz-Viñas, S., Contemporary Theory of Conservation, Oxford: Elsevier/Butterworth-Heinemann, 2005, p.150 e passim.

18 ASHLEY-SMITH, J., “The Ethics of Doing Nothing”, no Journal of the Institute for Conservation vol. 41, n. 1, pp. 6-15 (2018).

 

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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