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A entrevista como estratégia formativa: em foco as obras de Regina Silveira e irmãos Campana

Este artigo tem como objetivo apresentar o Grupo de Estudo em Conservação de Arte Contemporânea (GeCAC) e sua pesquisa. O GeCAC tem como pressuposto a reflexão teórica integrada à realização de entrevistas com artistas, conservadores, cientistas da conservação, curadores e outros profissionais, como estratégia para a formação profissional e instrumento para reflexão crítica a respeito dos critérios que orientam a conservação desta produção artística. Através da análise de duas entrevistas realizadas com artistas brasileiros contemporâneos (Regina Silveira e Irmãos Campana) busca verificar como o valor de contemporaneidade tem influência na organização das camadas de informação em algumas de suas obras e pode ser utilizado como critério para orientar a sua preservação. Palavras-chave: conservação; arte contemporânea; entrevista; valor de contemporaneidade

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C. Brito, J. Asseff, J. Bitencourt, K. Vasques, R. Capellari e Z. Carvalho



Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar o Grupo de Estudo em Conservação de Arte Contemporânea (GeCAC) e sua pesquisa. O GeCAC tem como pressuposto a reflexão teórica integrada à realização de entrevistas com artistas, conservadores, cientistas da conservação, curadores e outros profissionais, como estratégia para a formação profissional e instrumento para reflexão crítica a respeito dos critérios que orientam a conservação desta produção artística. Através da análise de duas entrevistas realizadas com artistas brasileiros contemporâneos (Regina Silveira e Irmãos Campana) busca verificar como o valor de contemporaneidade tem influência na organização das camadas de informação em algumas de suas obras e pode ser utilizado como critério para orientar a sua preservação.



Palavras-chave: conservação; arte contemporânea; entrevista; valor de contemporaneidade

 

Introdução

As discussões e encontros em torno da preservação da arte contemporânea, iniciadas há algumas décadas por profissionais da conservação e instituições culturais, apenas indicaram a complexidade da tarefa. Parece claro que a conservação de obras não convencionais exige, além do conhecimento sobre os processos de degradação dos materiais, um conhecimento profundo sobre as ideias, os processos, os contextos e a rede simbólica que os constitui.

Segundo Danto (2006), até o século passado era possível observar continuidades entre obras numa narrativa histórica progressiva da arte, que foi rompida. Para Glenn Wharton (MacCoy, 2009), por exemplo, o objeto de arte torna-se muitas vezes contingente, podendo ser substituído ou nem mesmo existir em algumas obras contemporâneas.

Frente a isso, algumas teorias para a conservação da produção contemporânea foram desenvolvidas objetivando estabelecer parâmetros ou diretrizes que orientassem os profissionais em uma tomada de decisão já que, em muitos casos, os princípios éticos utilizados para as obras convencionalmente construídas – que visam principalmente estabilizar os problemas de degradação de seus materiais constituintes como forma a manter sua permanência e legibilidade estética – se mostraram ineficientes para muitas das obras não convencionais. Vinãs (2004) propõe, por exemplo, que se a restauração é feita para determinada comunidade ou sociedade, é esta que deve, em última instância, indicar a forma com que gostaria que fosse realizada. Althöfer (2006) defende que o tratamento depende da situação apresentada pela obra e no caso de obras cujo tratamento exige uma atenta valorização prévia do ponto de vista ideológico, o restaurador deve falar com o artista. Mais recentemente, Morales apresenta a Conservação Evolutiva, e coloca a “mudança” no paradigma da restauração, ou seja, a permanência através da mudança. Segundo o teórico:

(....) No entanto, no caso de objetos cujo suporte é material, mas a imagem pode ser material, imaterial ou híbrida, essa teoria exige a conservação da identidade da imagem, não do suporte. O suporte não é a obra em si, o todo (objeto-sistema-símbolo), mas parte (objeto-sistema). (Morales 2019, p.18).



Esta preocupação refletiu-se também na área acadêmica com significativo aumento das pesquisas envolvendo a conservação da arte contemporânea em dissertação de mestrado e teses de doutorado. Em 2010, a conservadora Isis Baldini Elias defendeu em seu doutorado o paradigma do valor de contemporaneidade, valor ligado à existência imaterial da obra, a sua essência filosófica e/ou ideológica. Segundo a pesquisadora, as obras se estruturam em vários campos de informação que são divididos em dois blocos de naturezas diversas: o objetivo e o subjetivo. Estes campos são organizados em um processo de compreensão metonímico, mas a importância de cada um deles é determinada pela sobreposição de camadas sistematizadas de forma metafórica inseridas pelo deslocamento da obra no tempo. A avaliação dos campos concretos exige exames científicos e organolépticos que podem ser realizados pelo conservador em parceria com cientistas da conservação. Segundo Elias (2016), entretanto, a avaliação dos campos subjetivos é mais complexa pois quando o campo filosófico possui grande relevância para compreensão da poética da obra necessita, dentre outras fontes, de uma interlocução com seu proprietário intelectual.

Como parte do desdobramento de sua pesquisa, Elias cria, em 2018, o Grupo de Estudos em Conservação de Arte Contemporânea (GeCAC), vinculado ao Fórum Permanente1 e ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), que tem como linha de reflexão primeira, pensar a conservação de obras não convencionais a partir de seu valor de contemporaneidade. As entrevistas, neste contexto, constituem importante núcleo reflexivo por serem relevantes instrumentos de compreensão do patrimônio contemporâneo e a base que permite estabelecer perspectivas de conservação sincrônicas com os objetos a serem preservados.

Adotando a entrevista como um dos requisitos para a definição de estratégicas para a conservação da arte contemporânea (Wharton, 2015; Sheesley, 2007), o GeCAC procura realizar sistematicamente entrevistas com diferentes profissionais, não direcionando prioritariamente o foco para determinada obra, mas como parte de uma abordagem teórico-metodológica mais ampla.



A linha estrutural das entrevistas

As entrevistas, como fonte de informação para estabelecer procedimentos e tratamentos de obras, começaram a ser utilizadas nos anos de 1970 na Europa e nos Estados Unidos. Atualmente é difícil haver um museu de arte moderna ou contemporânea que não tenha utilizado este recurso para conhecer os materiais constituintes de uma obra e as orientações para a correta manutenção de sua rede simbólica. Para Vellosillo:

(...) Um dos desafios mais interessantes na conservação da arte contemporânea é a colaboração com artistas para articular e documentar quais são as prioridades de suas propostas, com o objetivo de compreender argumentos, respeitar propostas e garantir a preservação do significado de seu trabalho (...) (Vellosillo, 2015, pp 111-112).



Neste contexto, as entrevistas realizadas pelo GeCAC seguem as orientações existentes, entre as quais, o Guide to Good Practice: Artists’ interviews, do International Network for The Conservation of Contemporary Art (INCCA)2 e textos que priorizam o diálogo com os artistas como forma de registrar e manter a poética original.

As entrevistas, orientadas pelas hipóteses apontadas pelos pesquisadores, são registradas em vídeo e posteriormente transcritas e analisadas. Pode-se dizer que a parte mais complexa é a da preparação; nesta etapa o pesquisador estuda o entrevistado e sua produção e depois traduz dúvidas e inquietações em perguntas que serão posteriormente discutidas e sintetizadas conjuntamente. Com relação às interlocuções com artistas procura-se destacar, neste processo, os aspectos objetivos e subjetivos de algumas obras pontuais como forma de compreensão do objeto e elemento de comparação, em leitura expandida, com outros artistas da mesma geração.

De forma geral, as entrevistas procuram conhecer as expectativas dos artistas no que tange a preservação do conjunto de suas obras; são extensas e focam tanto a sua trajetória como os problemas de conservação específicos de sua produção. São realizadas preferencialmente no ateliê do artista, por ser este um lugar no qual ele se sente confortável e onde existem inúmeros referenciais que podem contribuir para o diálogo e propiciar a ruptura de suas construções mentais.

Para Wharton (MacCoy, 2009) as entrevistas bem sucedidas requerem contato visual, relacionamentos pessoais e conversas sinuosas, mas focadas. Para ele, é esta sinuosidade que permite o rompimento com as construções mentais feitas a partir da redução que as experiências sofrem ao serem submetidas à linguagem possibilitando, por exemplo, que um entrevistado redirecione os pesquisadores para outras interlocuções complementares.

 

As entrevistas como fator de quebra de paradigmas

Fazendo um contraponto entre os entrevistados Regina Silveira e Humberto Campana observa-se que o valor de contemporaneidade está presente de forma clara e significativa nas obras de um e ainda embrionário nas do outro. É interessante observar que existe uma confluência entre eles em pontos significativos, mesmo que o repertório artístico de Regina Silveira remete para um universo distinto daquele de Humberto Campana.

Regina Silveira é uma artista intermídia brasileira que, no final dos anos de 1960, rompe com a arte convencional e se aproxima da arte fundamentada na poética. Para tanto, utiliza em suas obras meios totalmente novos e diversos da pintura, algumas vezes hibridizados com o tradicional, mas sempre de forma indagadora e curiosa. Suas obras refletem um espírito questionador que entrelaça os meios para sustentar suas reflexões continuadas. Segundo Regina, primeiro ela cria uma narrativa totalmente ficcional do tema – da idéia e da intenção poética – muitas vezes provocadas pelo próprio espaço ou lugar onde este se encontra. A escolha do padrão gráfico e sua distribuição espacial vem depois dessa narrativa estabelecida. Desta forma, os meios são estratégias para encaminhar melhor as idéias e intenções, constituição e aparência (Haag, 2010).

Em entrevista concedida ao GeCAC, com relação aos materiais, a artista explica que, embora a essência de seus trabalhos continue a mesma, estes sofreram alterações em conseqüência dos novos materiais disponíveis no mercado. A revolução industrial modificou a forma de exposição, guarda e apresentação de suas instalações.

Esta alteração, por exemplo, se evidencia em suas obras que utilizam a sombra como elemento reflexivo. As sombras – silhuetas distorcidas sombreadas que permitem a desmontagem dos códigos e extraordinários jogos de imaginação – começaram a ser exploradas em 1981 com as obras Enigmas e Dilatáveis e, com o tempo, migraram do bidimensional para o tridimensional tomando proporções arquitetônicas e ambientais.

Nas primeiras instalações, explica, as sombras não eram feitas em vinil adesivo, mas pintadas na parede. Ao final da exposição a parede era repintada para receber outra exposição e a obra deixava de existir, criando um dilema ético e conceitual para as instituições. Para possibilitar remontagens a artista passou a utilizar placas de poliestireno pintadas, processo que pode ser observado na obra Paradoxo do Santo (Figura 1), de 1998, pertencente a coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), em que, ao final da exposição, as placas são retiradas e guardadas na Reserva Técnica. Embora a substituição do processo tenha facilitado futuras exposições, também “congelou” a obra uma vez que as placas tem uma medida fixa e os encaixes, assim como a construção espacial, devem ser mantidos. Neste aspecto, o vinil adesivo significou o rompimento dos limites impostos pela técnica precedente, possibilitando que as obras, de formato transitório, se metamorfoseiam para se adaptar a outros espaços.

 


Paradoxo do
Santo (Figura 1)

 

 

As possibilidades criadas pela substituição do meio significou também a desmaterialização dos elementos utilizados na construção da obra. Se antes, para a existência da obra, era necessário a instituição/proprietário possuir todas as partes que a compunham, agora estas ficaram reduzidas a informações acondicionadas em uma caixa pequena, devidamente identificada, contendo uma mídia digital – com especificações para o corte do vinil adesivo –, uma imagem da obra, instruções e, em alguns casos, algum objeto a ser incorporado à instalação. Ao final da exposição a obra é desmontada, os materiais são descartados e o objeto, caso exista, volta para a caixa.

São obras que podem ser refeitas inúmeras vezes, tanto no espaço inicialmente planejado como em outro que se evidencie necessário. Sobre a possibilidade da instalação existir em outro contexto espacial que não aquele pensado originalmente, a artista comenta que algumas já sofreram alterações quando remontadas devido a reformas estruturais na edificação ou a necessidade de expor em local diverso; mas mesmo que estas adequações sejam significativas ela não considera que seja outra obra, mas variações da mesma.

Figura 2 Derrapagem
Derrapagem
(Figura 2)

A possibilidade de existir em outros formatos não significa que não tenha parâmetros pré-estabelecidos. Os objetos – carrinhos e motos - utilizados nas instalações Derrapagem (Figura 2), por exemplo, não possuem o mesmo modelo ou tamanho, apenas a cor se mantém. Ela comenta que a dificuldade de encontrar um modelo similar ao original, miniatura de motocicleta com motoqueiro em cima, fez com que procurasse soluções alternativas. Agora a caixa, onde guarda todas as especificações da obra, contém também um modelo similar em 3D para que seja possível refazer o objeto caso necessário.

Nas instalações Mundus Admirabilis, (Figura 3 e 4) onde utiliza imagens de insetos daninhos – pragas – como metáforas não lineares das pragas que assolam diversas frentes “civilizadoras” e que ameaçam um futuro cada dia mais inviável (Silveira, 2007). Para ela, não importa se as aplicações foram feitas sobre materiais diversos– vidro, parede, espaços internos, externos, pequenos, amplos, fundos brancos ou coloridos – é o mesmo trabalho, é o mesmo conceito. É a ideia que sustenta a obra, não o suporte utilizado. As “pragas” ocuparam espaços culturais no Brasil, Arabia Saudita, Estados Unidos e Polônia; às vezes soltas outras enjauladas, mas sempre perigosas e cada vez maiores. Para Regina, quanto mais efêmera e transitória é a arte maior sua função transformadora (Haag, 2010).

Figura 3 Mundus Admirabilis


Mundus
Admirabilis, (Figura 3 e 4)

 

Atuando em um universo distinto, mas também movidos pela curiosidade, liberdade e constante pesquisa dos materiais como meio e não necessariamente fim, encontram-se os designers brasileiros Fernando e Humberto Campana, do Estúdio Campana.

Criado em 1983, o Estúdio ganha destaque em 1989 com a exposição Desconfortáveis, considerada um ponto de inflexão em sua trajetória, momento em que os irmãos decidem criar uma linguagem própria. Este primeiro conjunto é criado a partir da Cadeira Positivo (Figura 5), feita em aço e com o espaldar vazado com uma imagem em espiral, ela representa uma experiência de quase morte de Humberto em um redemoinho no Rio Colorado, nos Estados Unidos.

Figura 5 Cadeira Negativo
Cadeira Positivo
(Figura 5)

Os designers são conhecidos por utilizar materiais não tradicionais – papelão, tubos de polivinil, bichos de pelúcia, dentre outros – na criação de seus mobiliários; muitas vezes sobrepondo e reunindo numa forma assemblage. Diferente de Regina, o processo criativo dos irmãos Campana se dá a partir da escolha da matéria-prima que, quase sempre, é selecionada pela observação do entorno urbano em conjunto com uma memória afetiva rural, já que os dois nasceram em uma cidade do interior do estado de São Paulo. A intenção, segundo Humberto, é se apropriar de materiais do cotidiano, destinados a outras funções, e "transformá-los em diamante, em falso brilhante”, criar pontes.

 

Figura 6 Poltrona Banquete
Banquete
(Figura 6)

 


vendedores ambulantes (Figura 7)

 

 

A relação entre os universos da natureza e humano/urbano aparece em várias de suas obras. Os bichos de pelúcia que compõem a estrutura arquitetônica das poltronas Banquete (Figura 6), por exemplo, foram definidos a partir da observação de tendas de vendedores ambulantes (Figura 7). Segundo Humberto, “quando você faz uma cadeira de pelúcia, você lança mensagens, você está criando alguma coisa. Não sei se é uma pretensão minha, mas você está sendo disruptivo.” A correlação entre estes dois universos também está presente na coleção Transplastic (Figura 8), em que materiais poliméricos são envoltos por uma complexa trama de ráfia, representado dominação, em que os irmãos imaginam a natureza (ráfia) retomando seu espaço no mundo industrial, representado por materiais plásticos.

 

Figura 8 Cadeira Transrock
Transplastic
(Figura 8)

São ponderados no processo criativo dos designers: o conforto, funcionalidade, estética e o conceito das peças. Por outro lado, não são primeiramente consideradas a durabilidade ou a resiliência dos materiais que, por terem um valor de uso, estão em constante contato com pesos externos e com a pele humana.

A questão da degradação inevitável dos materiais e a consequente alteração de sua apresentação estética e de sua função de uso pontuou a síntese da interlocução. Humberto evidencia em vários momentos da entrevista que a escolha dos materiais é totalmente subjetiva e está ligada diretamente a sua emoção, a como eles o afetam; ou, como ele diz: “eu sou egoísta, eu faço para mim, para minha alma”. Neste contexto, a qualidade dos materiais assume um segundo plano em relação à emoção originada pelo sincronismo com seu tempo, vida e lugar.

Embora os irmãos Campana tenham criado, em 2009, o Instituto Campana, objetivando preservar a coleção e memória da dupla, esta não é a preocupação primeira que permeia seu consciente. Ele enfatiza que não se envolve muito com os aspectos práticos ou conceituais da conservação, mas que prefere ver suas criações em boas condições de apresentação, mesmo que, para tanto, seja necessário substituir alguns materiais. Para ele, a degradação dos materiais não é um fator potencializador da poética da obra, mas uma obstrução que deve ser removida para que o conceito associado com a materialidade continue a manter o equilíbrio inicial.

Por exemplo, perguntado sobre o caso da perda na intensidade da cor da coleção Zig Zag – um conjunto de mobiliário como poltronas, cadeiras e biombos criados a partir do uso de mangueiras de jardim em polivinil – , Humberto defende a troca do material para que haja a manutenção da cor. Até mesmo a coleção Desconfortáveis, que tem origem em um episódio emocional de significativa relevância e foi o embrião de rupturas estéticas posteriores e cuja simbologia do tempo fica marcada na oxidação do aço, Humberto diz que prefere que o processo de degradação seja interrompido e explica que, para tanto, utilizava ceras quando expunha a cadeira no passado.

Embora de forma secundária, o tempo e sua ação sobre as obras já é uma preocupação presente na produção dos irmãos. Humberto chega a apostar no futuro para preservar seus objetos: “Algumas coisas eu sei que vão durar porque são feitas de bronze, de ferro ou de aço inox. Outras eu acho que a tecnologia do futuro vai nos ajudar muito a preservá-las”.

É interessante como as interlocuções quebram paradigmas; as obras de Regina Silveira, embora sejam construídas a partir do embaralhamento de códigos, são matemáticas, racionais, com uma existência imaterial profundamente vinculada aos problemas sociais e culturais. Por outro lado, o designer Humberto Campana tem uma produção criada a partir da intuição e da emoção, sem se preocupar unicamente com o apelo mercadológico. Regina Silveira acompanha todo o processo e o documenta rigorosamente, Humberto Campana não se preocupa com detalhes do processo e tem uma documentação intermitente. Ambos se preocupam com o sincronismo dos trabalhos, um com seu tempo e outro com suas emoções. Enquanto Regina descobre que as obras que não têm permanência são as mais efetivas (Haag, 2020), Campana procura manter suas obras – a maioria criadas com materiais intrinsecamente efêmeros – esteticamente o mais inalteradas possível.

Evidencia-se aqui, analisando a estrutura que sustenta as obras de Regina Silveira, que o campo filosófico tem prevalência significativa sobre os demais. É ele que permite que a obra seja refeita inúmeras vezes – mesmo com materiais diferentes dos inicialmente selecionados – desde que respeitando as orientações pré-estabelecidas, sem perder a sua carga poética. E mesmo que ela não seja mais remontada isto não significa que deixará de existir, mas existirá conceitualmente através da documentação existente. Neste caso é o valor de contemporaneidade, a existência imaterial da obra, que deve ser o orientador em sua conservação. Só assim é possível garantir a perpetuação de sua poética em toda a sua potencialidade.

Por outro lado, nas obras dos irmãos Campana o valor de contemporaneidade é ainda embrionário, mas isto pode se modificar com a inserção ou desnudamento de camadas de forma a provocar uma mudança no reconhecimento da obra. A substituição parcial ou total dos materiais em suas criações não está necessariamente ligada à manutenção do campo filosófico, mas à manutenção dos sentimentos que a perpetuação estética do meio provoca no criador, ao seu gosto. De toda forma, mesmo que por caminhos aparentemente divergentes, tanto Regina Silveira como Humberto Campana consideram que os materiais que utilizam na construção estética de suas obras, por motivos diferentes, podem ser substituídos por outros similares. A interlocução com os artistas às vezes direciona a conservação para caminhos que não são completamente sustentados por valores validados, necessitando sempre de ponderação, reflexão e muitos questionamentos.

 



Conclusões

O presente artigo não tem a pretensão de oferecer uma conclusão nem sugerir posturas e diretrizes que dissolvam incertezas. O compartilhamento da experiência do GeCAC através deste artigo, foi em si uma experiência de recuperação e elaboração das ações de entrevista e das discussões suscitadas. É também uma oportunidade de ampliar a interlocução e de difundir o conceito de valor de contemporaneidade, marco teórico do grupo. Ainda pouco utilizada e de forma restrita no Brasil, a entrevista com artistas pode ser um importante aliado na conservação de coleções, não mais circunscrito ao tratamento de uma obra pontual e, principalmente, na mudança de paradigmas da área. Mas para isso parece importante que a metodologia da entrevista seja constantemente revisada.

É interessante observar que a etapa que antecede a realização das entrevistas, a fase preparatória, é bastante abordada em recomendações e guias da área, mas não a etapa posterior. Existe uma lacuna nas orientações com relação a análise dos resultados, a preservação e o compartilhamento destes registros; principalmente quando o material foi produzido fora do contexto institucional.

Como já mencionado, a entrevista com artistas como metodologia de conhecimento e análise da obra de arte é amplamente utilizada em importantes museus no mundo, principalmente como fonte de informação que objetiva auxiliar na exposição e na conservação interventiva. Nesses casos, a interlocução, assim como as análises científicas, é direcionada para ampliar a rede de conhecimentos sobre determinado objeto artístico. As entrevistas realizadas pelo GeCAC fogem deste modelo incluindo uma diversidade de agentes que, assim como o artista, são importantes para a sobrevida das obras; curadores, historiadores, colecionadores, conservadores e cientistas da conservação. Conhecer o pensamento dos diversos agentes, em processo dialógico e interdisciplinar, possibilita uma contextualização ampliada. Além disso, o próprio processo de questionamento que emerge das entrevistas produz mudanças na análise, revelando os clichês simplificadores e incorporando a alteridade de pensamento, essenciais à tomada consciente de decisões.

Embora historicamente a existência conceitual da obra seja comumente determinada e pesquisada por curadores, conforme especifica Wharton (MacCoy, 2009), deve-se considerar que nem todas as instituições possuem este profissional em seu quadro de funcionários e nem todas as intervenções são realizadas no âmbito institucional. Aliás, no Brasil, o número de profissionais que atuam em instituições, sejam públicas ou privadas, é ínfimo em relação aos profissionais existentes no país. Ao optar por estruturar suas interlocuções priorizando registrar a rede simbólica que sustenta a composição criativa, bem como o seu entorno, o GeCAC possibilita que os conservadores apartados das discussões acadêmicas normatizadoras e do acesso às entrevistas realizadas na esfera institucional possam ser aliados na conservação das obras que existem fora deste circuito e, ao mesmo tempo, provocar o aprimoramento do pensamento teórico-crítico.

As entrevistas com a artista Regina Silveira e os designers Campana, as primeiras de uma série realizadas pelo grupo, evidenciaram algumas lacunas na etapa de análise que significaram um aprendizado da metodologia e da necessidade de aperfeiçoá-la. As duas entrevistas, por exemplo, foram estruturadas com base na individualidade dos entrevistados e no vasto universo artístico de cada um. Se por um lado elas permitiram aprofundar no universo material e imaterial das obras, por outro, a carência de questões chaves similares dificultou a análise comparativa. Revelou-se assim que, para fins analíticos, é necessária a definição de questões análogas que sejam oriundas de hipóteses a serem comprovadas e/ou de linha de pesquisa adotada. Por outro lado, alguns conceitos não se traduzem em perguntas, mas na análise das respostas. O valor de contemporaneidade desenvolvido por Elias, por exemplo, embora tenha sido a base que sustentou as interlocuções, foi incorporado nas questões de forma fragmentada ou camuflada.

Para finalizar é importante enfatizar que trabalhar em grupo não é uma tarefa fácil, requer paciência, generosidade e respeito. Por outro lado, traz o amadurecimento necessário – proporcionado pelas reflexões conjuntas de pensamentos divergentes – e possibilita a construção de um pensamento teórico-crítico-metodológico fundamentado na pluralidade de repertórios. A preservação de obras cuja estética material deu lugar a estética de significados é complexa e, embora a responsabilidade de uma intervenção jamais deva ser transferida para o artista, é fundamental conhecer a rede simbólica que sustenta algumas obras para que se possa mantê-las o mais próximo possível da poética inicial.



Esclarecimento

O Estúdio Campana, formado pelos irmãos Humberto e Fernando Campana, tem como norma que qualquer dos irmãos, quando entrevistado, falará em nome do Estúdio. Desta forma, a entrevista com Humberto Campana sintetiza a forma de criação e pensamento dos Irmãos Campana.





Referências:

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Figuras


Figura 1: Regina Silveira, Paradoxo do Santo (1994). Madeira pintada e placas de poliestireno, 380 cm x 689 cm x 482 cm, doação da artista, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), Brasil. (Fotografia: Flávio Demarchi; cortesia: MAC/USP, Brasil).

Figura 2: Regina Silveira, Derrapagem (2004). Detalhe da instalação realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), Brasil. Vinil adesivo e carro de brinquedo em madeira. (Fotografia: João Musa; cortesia: Regina Silveira, Brasil).

Figura 3: Regina Silveira, Mundus Admirabilis (2016). Detalhe da instalação “Insolitus”, realizada com vinil adesivo.  Casa Museu Eva Klabin, Rio de Janeiro, Brasil. (Fotografia; Eduardo Verderame; cortesia: Regina Silveira, Brasil).

Figura 4: Regina Silveira, Mundus Admirabilis (2019). Detalhe da instalação “Recovering stories, recorering fantasies”, realizada com vinil adesivo. BienalSur,  Museu Nacional de Riyad,  Arabia Saudita. (Fotografia de Eduardo Verderame; cortesia: Regina Silveira, Brasil)

Figura 5: Hermanos Campana, Cadeira Positivo, desenhada em 1989. Aço. (Fotografia de Fernando Lazlo, 2008; cortesia: Estúdio Campana, Brasil).

Figura 6: Hermanos Campana, Poltrona Banquete, desenhada em 2002. Pelúcia em estrutura de aço inoxidável e tecido. (Fotografia: Fernando Lazlo. 2002; cortesia: Estúdio Campana, Brasil)

Figura 7: Tenda de venda deanimais de pelúcia em São Paulo.. (Fotografia: Humberto Campana, sem data; cortesia: Estúdio Campana, Brasil)

Figura 8: Hermanos Campana, Cadeira Transrock, coleção Transplastic, desenhada em 2006. Cadeiras plásticas com trama de ráfia em estrutura de aço. (Fotografia: Fernando Lazlo, sem data; cortesia: Estúdio Campana, Brasil).

1 http://www.forumpermanente.org/

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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