Inconformismo estético, inconformismo social, Hélio Oiticica
O imaginário da revolução mobiliza o sentido político da vanguarda nos anos 60. Programas, manifestos, declarações, intervenções e obras compõem uma atividade extensa, que manifesta, na experimentação, o desejo de transformação social. A produção artística responde ao que se apresentava naquele momento, particularmente no período 1965-68, como necessidade: articular a produção cultural em termos de inconformismo e desmistificação; vincular a experimentação de linguagem às possibilidades de uma arte participante; reagir à repressão. Experimentação e participação agenciam uma outra ordem do simbólico (o comportamento), visando a instaurar a “vontade de um novo mito”; uma imagem da arte como atividade em que não se distinguem os modos de efetivar programas estéticos e exigências ético-políticas. A transmutação da arte – proposta em desenvolvimento em toda parte e que implicava a transmutação da vida –, transformou-se em imperativo; explicitado em projetos diversos, este empenho produziu, nos diferentes setores artísticos, interpretações da “realidade brasileira”, atitudes de contestação e de revolta. Como assinalou Hélio Oiticica no Esquema geral da nova objetividade (1967), o afluxo de experiências, nas artes plásticas, no cinema, no teatro, na música, não constituía um movimento, caracterizado por uma “unidade de pensamento”, mas uma “posição específica” da vanguarda brasileira, considerada por ele como “um fenômeno novo no panorama internacional”. Recobrindo uma gama muito elástica de atitudes e experiências, a vanguarda definiu uma “unidade de ação”, que, segundo Sérgio Ferro, não provinha do parentesco formal ou dos objetivos específicos dos artistas, mas da “posição agressiva diante da situação abafante, no seu não-conformismo, na sua colocação da realidade como problema em seus vários aspectos, na sua tentativa ampla e violenta de desmistificação”, de modo que “pode-se dizer que de 1965 a 69 (...) boa parte dos artistas brasileiros pretendia, ao fazer arte, estar fazendo política”. A posição crítica e a atuação cultural requeridas pelo momento faziam coincidir o político e a renovação da sensibilidade; a participação social e o deslocamento da arte. Como posição coletiva, a atuação dos artistas manifesta-se na atitude “contra”. Oiticica: “não pregamos pensamentos abstratos, mas comunicamos pensamentos vivos (...). No Brasil, (...) hoje, para se ter uma posição cultural atuante, que conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo que seria em suma o conformismo cultural, político, ético, social (...). Da Adversidade Vivemos”!
É a proposta de participação coletiva, interessada tanto na superação da arte (reconceituando-a, desintegrando o seu objeto e recriando a imagem), como no redimensionamento cultural dos protagonistas, pela integração do coletivo, que mobiliza os artistas. Enquanto pretendem liberar suas atividades do ilusionismo, os artistas intervêm nos debates do tempo, fazendo das propostas estéticas propostas de intervenção cultural. Seu campo de ação não é apenas o sistema de arte, mas a visionária atividade coletiva que intercepta subjetividade e significação social. A “antiarte”, proposta com que Oiticica pretende radicalizar a situação, é exemplar. Não visa à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas artísticas ao cotidiano, nem simplesmente nele diluir as estruturas, mas transformar os participantes, “proporcionando-lhes proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, visando a “desalienar o indivíduo”, para “torná-lo objetivo em seu comportamento ético-social”. Apontando para uma outra inscrição do estético, Oiticica visualiza a arte como intervenção cultural e o artista como “motivador para a criação”.
O imaginário de Oiticica é aquele que se interessa, não pelos simbolismos da arte, mas pela função simbólica das atividades, cuja densidade teórica está na suplantação da pura imaginação pessoal em favor de um “imaginativo” coletivo. Isto se cumpre quando as atividades possuem visão crítica na identificação de práticas culturais com poder de transgressão; não pela simples figuração das indeterminações e conflitos sociais, ou, ainda, pela denúncia da “alienação” dos discursos (totalizadores) sobre a “realidade brasileira”. A participação coletiva (planejada ou casual) provém da abertura das proposições; evita as circunscrições habituais da “arte” e o puro exercício espontaneísta de uma suposta criatividade generalizada. O essencial das manifestações antiartísticas é a confrontação dos participantes com situações; concentrando o interesse nos comportamentos, na ampliação da consciência, na liberação da fantasia, na renovação da sensibilidade, desterritorializam os participantes, proscrevem as obras de arte, coletivizam ações. Desnormativizantes, pois questionam as significações correntes, essas manifestações interferem nas expectativas dos protagonistas, sendo, portanto, práticas reflexivas. Assim, para Oiticica, a antiarte como “verdadeira ligação definitiva entre manifestação criativa e coletividade”, tem poder de transgressão, identificando-se a práticas e revoltas “contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais socialmente organizadas (revoluções, p. ex.) até as mais viscerais e individuais (a do marginal, como é chamado aquele que se revolta, rouba e mata). São importantes tais manifestações, pois não esperam gratificações, a não ser a de uma felicidade utópica, mesmo que para isso se conduza à autodestruição”. O “princípio decisivo” dessa atividade, em que a antiarte não se distingue das práticas revolucionárias, é assim formulado: “a vitalidade, individual e coletiva, será o soerguimento de algo sólido e real, apesar do subdesenvolvimento e caos – desse caos vietnamesmo é que nascerá o futuro, não do conformismo e do otarismo. Só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade”.
A conexão entre o coletivo e o individual, experiência de inconformismo social que ultrapassa o mero interesse por mitos, valores e formas de expressão das vivências populares, leva Oiticica a uma marginalidade nada circunstancial. A Mangueira, que freqüentava e onde tinha muito amigos (notadamente o Cara de Cavalo, bandido morto pela polícia, que se tornou, para ele, símbolo de revolta, homenageado no bólide Homenagem a Cara de Cavalo, 1966), onde tornou-se passista da Escola (sua experiência de “desintelectualização”) e lugar de muitas manifestações ambientais, deu-lhe régua e compasso. Esse deslocamento social disparou os processos de transformação de suas propostas construtivistas, aliando, na “estrutura-ambiental” ou “Parangolé”, experimentação e participação social. Da Mangueira, Oiticica apropriou-se: do samba, que manifesta uma “força mítica interna, individual e coletiva” (vivência do cotidiano do morro sem referência às formalidades da “dança de par” e da coreografia do balé, significando para ele a livre expressão); da arquitetura das favelas, com suas casas bricoladas (produção de organizações espaciais abertas, adaptadas às mutações do ritmo de vida) e das relações sociais do povo da Mangueira, em que Oiticica surpreende uma ética comunitária.
O interesse de Oiticica por práticas populares não implica recurso à valorização, dada naquele momento, à cultura popular com ênfase em “raízes populares”. Se hiperboliza a Mangueira, o samba, a construtividade popular, é por razões que relevam de sua concepção de antiarte ambiental; de sua experiência da marginalidade. Mantendo-se embora afastado dos projetos culturais que figuravam a “realidade nacional”, como etapa da ação política que reagia à dominação do imperialismo e do regime militar, Oiticica respondeu à sua maneira aos apelos dessa esquerda. A sua marginalidade foi vivida, pois é o ponto em que se desfaz a contradição do inconformismo estético e do inconformismo social. Para ele, a arte tem sempre função política, contanto que isso não seja um “alvo especial”, mas sim “um elemento”, pois, “se a atividade é não-repressiva será política automaticamente”. Arte e política são práticas convergentes, mas que não se confundem, sob pena de se promover a estetização da política.
É com o projeto Tropicália (1967) que Oiticica objetiva o “sentido ético” como prática cultural, determinando a posição crítica que o distinguiu, pela coerência, radicalidade e lucidez, das demais propostas em desenvolvimento na vanguarda brasileira. Na Tropicália, a “objetivação de uma imagem brasileira” não se faz pela figuração de uma realidade como totalidade sem fissuras, mas pela devoração das imagens conflitantes que encenam uma cultura brasileira. Esta devoração se atribui aos participantes: apropriando-se dos elementos disparatados, justapostos, que formam uma “síntese imagética” (na verdade uma mistura de imagens, linguagens e referências), os participantes agem nesse sistema conjuntivo e ambivalente, produzindo a evidenciação do processo de constituição das contradições enunciadas. O objetivo é provocar a explosão do óbvio por efeito da participação. Conjugando estrutura e fantasia, no ambiente tramam-se intervenções que vão estendendo as proposições. Com isso, tudo o que é traço cultural é ressignificado. Alheia ao exclusivismo da experimentação ou da expressão de conteúdos do nacional-popular, Tropicália conjuga experimentalismo e crítica. Para Oiticica, ela é produção em que as imagens “não podem ser consumidas, não podem ser apropriadas, diluídas ou usadas para invenções comerciais ou chauvinistas”. A Tropicália define uma linguagem de resistência à diluição: assumir uma posição crítica, diz Oiticica, é enfrentar a “convi-conivência”, essa doença tipicamente brasileira, misto de conservação, diluição e culpabilidade, que concentra os “hábitos inerentes à sociedade brasileira”: cinismo, hipocrisia e ignorância. Essa “posição crítica universal permanente”, a que denominou “o experimental”, possibilitou-lhe interferir na vanguarda brasileira, enquanto nela encontrou condições para desenvolver projetos coletivos implícitos em seu “programa-Parangolé”. Pois “o experimental não só assume a idéia de modernidade e vanguarda, mas também a transformação radical no campo dos conceitos-valores vigentes: é algo que propõe transformações no comportamento-contexto, que deglute a convi-conivência”.
Assim, o “caráter revolucionário” que Oiticica atribui à sua posição provém da atitude de desestabilização do experimentalismo e das interpretações culturais hegemônicas. Ao insistir na “urgência da colocação de valores num contexto universal”, para “superar uma condição provinciana estagnatória”, rompe com os debates que monopolizavam as práticas artísticas e culturais, radicalizando-os. Com Tropicália (o projeto e a teorização), Oiticica participa ativamente de um dos momentos mais críticos e criativos da cultura brasileira, juntando-se a outras manifestações igualmente significativas: Terra em transe (1967), O rei da vela, do Teatro Oficina (67), a música do Grupo Baiano (67-68), Macunaíma, de Joaquim Pedro (69), O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla (68), identificadas como “tropicalistas”. Essas produções evidenciaram o conflito das interpretações do Brasil sem apresentar um projeto definido de superação dos antagonismos; expuseram a indeterminação da História e das linguagens, devorando-as; ressituaram os mitos da cultura urbano-industrial, misturando elementos arcaicos e modernos, explícitos ou recalcados, ressaltando os limites das polarizações ideológicas no debate cultural em curso.
Dentre as tropicalistas, Oiticica destaca a importância da produção do Grupo Baiano, atribuindo-lhe “caráter revolucionário” e identificando-a às propostas e à linguagem de seu programa ambiental. Para ele, ambas articulam o experimentalismo construtivista e o comportamental; nelas a participação é constitutiva da produção, e a crítica efeito da abertura estrutural. Para ele, “o caráter revolucionário implícito nas criações e nas posições do Grupo Baiano” deve-se à não distinção entre experimentalismo e crítica da cultura; na ausência de privilégios entre posições discrepantes, quando se trata de “constatar um estado geral cultural” e nele intervir; e, finalmente, na não distinção entre a repressão da ditadura e a da “intelligensia bordejante” (a crítica e o público de uma certa esquerda). Oiticica identifica nos músicos a mesma tônica de suas manifestações ambientais: a renovação de comportamentos, de critérios de juízo etc., passa pelo modo de produção, aliando conceitualismo, construtividade e vivência. Ambas as produções originam conjuntos heteróclitos, em que processos artísticos e culturais diversos são justapostos e, efeito da devoração, reduzidos a signos que agenciam ambivalência crítica e exploram a indeterminação do sentido, propondo-se, assim, como ações que exigem dos participantes a produção de significados. Ambas fazem parte do projeto crítico que assume a ambivalência como modo de enfrentar a “diarréia” brasileira.
Toda a experimentação de Oiticica compõe um programa coerente que problematiza a situação brasileira e internacional da criação e se desenvolve como versão da produção contemporânea que explora a provisoriedade do estético e ressignifica a criação coletiva, a marginalidade do artista, o político da arte. A tendência básica do programa é a transformação da arte em outra coisa; em “exercícios para um comportamento”, operados pela participação. Ora, a virtude própria dos comportamentos é a de se manifestarem sem ambigüidades, como potências de um puro viver; apontam para um além-participação, em que a invenção enfatiza os processos, explorando o movimento da vida como manifestação criadora. Prática revolucionária, a transmutação da arte em comportamento se dá quando o cotidiano é fecundado pela imaginação e é investido pelas forças do êxtase. Desrealizados, os comportamentos libertam as possibilidades reprimidas; afrouxam a individualidade, confundem as expectativas: manifestam poder de transgressão. Esse modo de atuação rompeu com as propostas de resistência em desenvolvimento no país, apontando para práticas alternativas. Desacreditando dos projetos de longo alcance, de concepções históricas feitas de regularidades, essa atitude desligou o finalismo, afirmando o poder de transgressão do intransitivo.
Publicado originalmente em Revista Gaia. São Paulo, USP, Ano I, n. 2 , set-dez. 1989, p. 24-32. Rep. na revista Educação e Filosofia. Universidade Federal de Uberlândia, v. 4, n. 8, jan-jun. 1990, p. 151-158.
Celso Favaretto publicou A invenção de Hélio Oiticica, ( São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1992; 2 ed. ver. 2000) e Tropicália, alegoria alegria (São Paulo, Kairós, 1979; ed. ver. São Paulo, Ateliê Editorial, 2000), além de vários ensaios sobre a obra de Hélio Oiticica.
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OITICICA, H. Aspiro ao grande labirinto. Seleção de textos organizada por Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 69.
FERRO, S. “Vale tudo”. Catálogo do evento “Propostas 66, reproduzido em Artes, ano I, n° 3, jan 66 e em Arte em Revista, n° 2, 1979.
ARANTES, O.B.F. “Depois das vanguardas”. Arte em Revista, n° 7, 1983 e “De Opinião 65 à XVIII Bienal”.
BRETT, G. Texto do catálogo da “Whitechapel Experience”. Londres, 1969, reproduzido em AGL (encarte).
OITICICA, H. Entrevista. In: AYALA, W. (org.) A criação plástica em questão. Petrópolis: Vozes, 1970.