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Heterotopias: uma genealogia

Tomás Prado[1]

 

O lugar das heterotopias

 

Apresentado em 1967 em uma conferência no Círculo de Estudos Arquitetônicos, e publicado pela primeira vez somente em 1984, o texto “Outros espaços” [Les hetérotopies], de Michel Foucault, tem ocupado o centro de importantes debates. Tal interesse talvez revele uma renovação no modo como a filosofia e a arte hoje travam diálogos. Afinal, mais do que solucionar os espantos por meio de um arcabouço teórico, ele se tornou gerador dos mesmos; o texto instiga a produção artística. Não teria chegado o momento de pensar, em contrapartida, o que essa produção tem a oferecer à filosofia? Neste ensaio, trata-se de questionar quais as possibilidades de se compreender uma obra de arte como heterotopia e o que significa pensar as heterotopias como obras de arte.

Recordemos, de início, a heterotopia do cemitério: “O cemitério é certamente um lugar diferente em relação aos espaços culturais habituais”. (FOUCAULT, 2009, p.417) Diversas caracterizações nos são apresentadas, sobretudo porque historicamente elas não teriam, segundo o filósofo, permanecido as mesmas, desde o momento em que foi reconhecida a importância do “despojo mortal”, quando surge a preocupação de cada um com a “sua pequena caixa para sua pequena decomposição” (Idem), até os diferentes locais geográficos que podem comportar um cemitério, do limite exterior ao centro do plano urbano. Entretanto, a análise de Foucault se refere sempre à camada simultaneamente visível e invisível das cidades, diferentemente – poderíamos acrescentar – das catacumbas nos subterrâneos de Roma e de Paris ou das ruas de Pompéia, ambas estâncias expostas e visitadas conforme uma lida diversa com o “despojo mortal”. Em que heterotopia devemos situá-las?

Os cemitérios já despertaram diferentes afetos, a saudade dos mortos, o medo das doenças que pudessem propagar, e por que não recordar também a cobiça dos assaltantes? A despeito dos diferentes modos de caracterizá-los, eles conteriam ritos comuns a despeito de serem ritos outros, alheios aos hábitos e às ocupações da vida cotidiana. Os cemitérios revelariam, senão uma história universal, ao menos, segundo a análise de Foucault, uma história em comum. Porém, não seria possível encontrar casos desviantes, que não se enquadram nessa história geral dos cemitérios? Não pretendemos sugerir que os cemitérios sejam obras de arte, mas que alguns espaços escapam às nossas classificações ordinárias e exercem sobre os cemitérios uma função de desvio, à maneira como as obras de arte deslocam também nossas experiências habituais.

O cemitério da Recoleta, um dos bairros mais nobres de Buenos Aires, parece integrado aos costumes daqueles que habitam e frequentam a sua vizinhança. Ao seu redor, o cheiro das parrijas, dos corderos asados, evocam nas narinas do turista uma série de sensações extravagantes. No cemitério de Montparnasse, personalidades dos mais diversos métiers, muitas delas nem mesmo francesas, prestigiam, para o orgulho daqueles, a pátria que adotaram com o legado de suas ossadas, de modo que este cemitério, como outra eterna morada, parece ter se tornado uma imprevista extensão do Panthéon.

O que são esses outros espaços dos espaços outros, essas heterotopias das heterotopias? Tópoi que, em vez de apreendidos por rituais comuns, colocam-se nas fronteiras do termo e às vezes subvertem o seu significado. Outros espaços que exigem outra linguagem e uma narrativa ensaística, sempre alegórica, porque traem o conceito, porque trata-se de uma linguagem mais regida pela conquista da diferença do que pelas semelhanças de onde ela parte; porque, em suma, são não apenas espaços outros, mas espaços únicos – como são ou foram um dia as obras de arte.

 

A genealogia das heterotopias

 

A perda da autenticidade e da originalidade de uma obra de arte, portanto, da sua “aura”, caráter marcante, segundo Walter Benjamin, da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica – a nossa era –, poderia ser assim revertida, e a aura ser resgatada nesses lugares que, mais do que servirem a uma categoria heterotópica, se revelam únicos conforme as relações singulares que cada um deles estabelece. Trata-se, portanto, não apenas de espaços, mas de lugares. Visita-se, hoje, um lugar como outrora se experienciava uma obra de arte única, porque esperamos de certos locais que nos transformem como umbrais, como uma passagem do que somos a outra possibilidade de sermos.

É preciso recordar que o próprio Benjamin dedicou-se, em Imagens de pensamento, a tais investigações. A respeito da Catedral de Marselha, o filósofo afirma:

 

A Catedral se encontra sobre a mais deserta e a mais ensolarada das praças. Tudo está morto aqui, ainda que, ao sul, aos seus pés, ela se aproxime muito da Joliette, o porto, e, ao norte, de um bairro proletário. Centro de transbordamento para uma mercadoria inacessível e impenetrável, o edifício deserto se encontra entre o quebra-mar e os armazéns. Quase quarenta anos foram dedicados a trabalhar-se nela. Porém, logo que, em 1893, tudo foi terminado, a situação e a época desse monumento conspiraram vitoriosamente contra os arquitetos e os mestres de obras, e os ricos meios do clero deram lugar à uma estação gigante que não pôde jamais ser liberada ao tráfego. Distingue-se, sobre a fachada, as salas de espera no interior, onde os viajantes das quatro classes (ainda que diante de Deus eles sejam todos iguais), presos em seus bens espirituais como entre suas malas, lêem, sentados, livros de cânticos que se assemelham muito, com suas concordâncias e suas correspondências, aos indicadores internacionais das vias-férreas. Orientações são presas aos muros sob a forma de cartas pastorais; conta-se tarifas de indulgência para as excursões no trem de luxo de Satã, e os banheiros, onde aquele que viajou muito pode se lavar discretamente, são postos à disposição do público sob a forma de confessionário. Esta é a estação de religião em Marselha. Toma-se aqui, na hora da missa, os trens de vagão-leito para a eternidade. (BENJAMIN, 2011, 106-107)[2]

 

Seria preciso compor, ou contrapor, com rigor maior as geografias desses dois pensadores, e reconhecer, na distância entre ambos, a referência possivelmente equidistante de outro filósofo, Nietzsche. Deve nos interessar notar como Nietzsche se interpôs, com a sua genealogia, no pensamento de Foucault, aliás deixando marcas que, depois dessa passagem benjaminiana, já se poderia antever. Recordemo-las de uma passagem benjaminiana mais célebre: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”. (BENJAMIN, 2008, p. 225)

Há algo muito marcante nos três filósofos que, em 1967, no texto de Foucault, não se faz presente. O que encontramos no texto “Outros espaços” ainda não são as análises dos dispositivos e das estratégias de poder, dos acúmulos e raridades discursivas ou dos acontecimentos históricos que emergem de uma trama política, mas algo da ordem de uma análise estrutural.

Foucault retira a sua análise dos espaços geográficos de uma certa maneira de pensar espacialmente o tempo e a história, a qual ele mesmo remonta ao “estruturalismo”.

 

O estruturalismo, ou pelo menos o que se reúne sob esse nome em geral, é o esforço para estabelecer, entre elementos que podem ter sido dispersos através do tempo, um conjunto de relações que os faz aparecer como justapostos, opostos, comprometidos um com o outro, em suma, que os faz aparecer como uma espécie de configuração; na verdade, não se trata com isso de negar o tempo; é uma certa maneira de tratar o que se chama de tempo e o que se chama de história. (FOUCAULT, 2009, p. 411)

 

Trata-se, ao menos nesse momento de sua trajetória, de realizar uma análise dos espaços em que transitam nossos corpos por meio de uma espécie de espacialidade histórica, na qual justapõe-se e opõe-se elementos “como uma espécie de configuração”: a configuração histórica, por exemplo, dos cemitérios ou dos jardins e das praças. Sabemos, porém, que em 1967, Foucault está prestes a promover uma grande reviravolta em seu pensamento, na qual um caráter nietzschiano até então insuficientemente explorado irá adquirir primazia. A arqueologia, procedimento de análise do tempo e da história que tem por referência o estruturalismo, cederá espaço a um procedimento de investigação diferente: a genealogia.

Até então, a referência teórica de Foucault que encontramos no texto de 1967 é outra, Bachelard e sua obra A poética do espaço. Nesta, por sua vez, encontramos referência a outro filósofo, Bergson. De um pensador a outro, acrescenta-se uma espacialidade nova. Bachelard afirma: “Quando Bergson fala de uma gaveta, que desdém! A palavra surge sempre como uma metáfora polêmica. Comanda e julga, julga sempre da mesma forma. O filósofo não gosta dos argumentos em gavetas”. (BACHELARD, 2012, p. 87) Foucault, de sua parte, parece mais cordial, ao afirmar: “A obra – imensa – de Bachelard, as descrições dos fenomenólogos nos ensinam que não vivemos em um espaço homogêneo e vazio, mas, pelo contrário, em um espaço inteiramente carregado de qualidades”. (FOUCAULT, 2009, p. 413) Em todos esses casos, pressupõe-se uma relação entre a forma do pensamento e o espaço, como se houvesse uma espacialidade correspondente a cada filosofia. Foucault estabelece também uma distância para demarcar o diferencial de sua análise: “Entretanto, essas análises [de Bachelard], embora fundamentais para a reflexão contemporânea, se referem sobretudo ao espaço de dentro. É do espaço de fora que gostaria de falar agora”. (FOUCAULT, 2009, p. 414)

Seja do espaço privado ou do espaço público, do espaço de dentro ou de fora, de nossa parte o que deve ser considerado, conforme o exemplo de Benjamin, é em que consiste a genealogia das heterotopias. Na genealogia, a relação não precede os termos ou elementos, revelando uma estrutura das suas semelhanças, uma história de aspectos concomitantes. Ao contrário, as relações servem como abordagem provisória para uma aproximação a uma experiência singular . O estruturalismo seria assim um passo preparatório para uma análise genealógica, da qual esta, em contrapartida, não pode prescindir. Todavia, o próprio Foucault não deu tal passo naquele texto nem tampouco quando, em Vigiar e punir, de 1975, nos apresenta uma outra análise heterotópica, das prisões e do panoptismo. Uma história das prisões certamente abrange, como caráter genealógico, a preocupação política, mas ainda em detrimento, ao que parece, da preocupação com singularidades geográficas, oferecendo-se como história política de uma certa estrutura, quando seria necessário enfatizar – conforme o exemplo do próprio Foucault em outros domínios – a história política da subversão das estruturas até a formação de uma singularidade.

 

Duplos singulares

 

Pensemos nas estâncias de cultos religiosos, internas e externas. Quantas igrejas encontramos entre Ouro Preto e Tiradentes? Quantas igrejas há em Roma, fora das fronteiras do Vaticano? Essas igrejas, em vez de competir pelo público de fiéis, se sustentam umas às outras, atraindo coletivamente ou cercando, como uma estrutura comum, o seu público. Serão algum dia atingidas pelo abandono que, em muitas partes do mundo cristão, hoje transforma diversas delas em salas de concerto e até em bibliotecas, como é o caso da Abbaie d'Ardennes, na Normandia, a qual acolhe os arquivos do Institut Mémoires de l'édition contemporaine, onde estão diversos originais de Foucault?

Um caso especialmente interessante é o da região da Andaluzia, no sul da Espanha, onde o mesmo território deu lugar, por diversas vezes e de modo intercalado, a duas religiões diferentes, que deixaram, após séculos de conflitos, em formas arquitetônicas únicas, a sobreposição das crenças e das técnicas, como estratos geológicos da história e da cultura. Vemos imagens cristãs, de santos e profetas, com as faces destruídas depois da invasão dos árabes. Vemos as formas geométricas dos árabes, a força na arte da sua razão matemática, cercar os altares cristãos, mesmo depois que os espanhóis aprenderam – dos chineses – a utilizar a pólvora, com um propósito distinto. É este contato o que faz única a Mesquita-Catedral de Córdoba.

As heterotopias dos duplos singulares, de sobreposições que produzem lugares diferentes de todos os outros, talvez contrariem um dos postulados propostos por Foucault em sua análise, quando afirma: “Não vivemos no interior de um vazio que se encheria de cores com diferentes reflexos, vivemos no interior de um conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente impossíveis de ser sobrepostos”. (FOUCAULT, 2009, p. 414) O que parece mais preciso, no caso da Mesquita-Catedral de Córdoba, seria dizer que o conjunto de relações que definem o seu posicionamento irredutível a qualquer outro é precisamente a sobreposição que a constitui, e que a sua genealogia nos revela.

 

Utopias, heterotopias e atopias

 

As utopias são, segundo a expressão de Foucault “lugares sem lugar” e, por isso, à exceção do espelho, supomos remetidas a outro lugar no tempo. A utopia por excelência é o Éden perdido e almejado, mas poderia ser também, na antípoda que coadunaria melhor com esta análise genealógica em seu aspecto político, Valhalla.

As heterotopias, por outro lado, são presentes, estão acessíveis, embora detenham uma ordem própria, como se impusessem sempre, perante todos os demais espaços, um umbral que opera algum tipo de transformação naquele que o atravessa.

Há singularidades heterotópicas produzidas de uma forma distinta de sobreposição, da heterotopia com alguma utopia. Este é o caso do Museu da Acrópole, de Atenas, que resguarda os frisos e as peças remanescentes do Parthenon, mas que muito em breve poderá abrigá-lo todo em fragmentos. Não pela ação direta do tempo, em seu irreversível processo entrópico, mas porque o governo grego julga necessário a fim de, paradoxalmente, preservá-lo. Supõe-se a responsabilidade de proteger um patrimônio para as gerações futuras, enquanto despedaça-se este mesmo patrimônio fazendo com que a experiência legada do passado se perca. Não se trata, neste caso, de um processo de restauração, mas de uma radical intervenção utópica, se esta espécie de egipcianismo não for mesmo apenas pretexto para um artifício mercadológico.

Há, por fim, casos de sobreposição de heterotopias com atopias, como nos campos investigados por Agamben em Homo Sacer: a vida nua, tais como os campos de concentração ou os de refugiados, para onde são enviados aqueles que não possuem lugar em um determinado ordenamento jurídico.

 

Inversões heterotópicas

 

Nietzsche, em sua genealogia, mostrou como o significado dos termos, e os valores que eles carregam, podem ao longo da história ser invertidos. Bom, no sentido de forte, um dia deu lugar a bom no sentido de altruísta. O mesmo deve ser bastante comum no que se refere às heterotopias e à linguagem do espaço. Assim como os termos, os espaços e os monumentos estão constantemente em processo de apropriação simbólica.

Vejamos o caso notável da Place de la Concorde, em Paris. Em 1793 palco da guilhotina que decapitou Luís XVI e Maria Antonieta, a chamada Praça da Revolução um dia se tornou a Praça da Concórdia, segundo uma inversão direta nos termos a fim de impor a ela um novo significado político. Para apagar todos os rastros dos conflitos ocorridos, julgou-se por bem dar-lhe um símbolo diverso, que não remetesse às disputas internas da França. Diz-se que o obelisco egípcio de 3300 anos, que celebra a glória de Ramsés II, foi oferecido aos franceses em homenagem a Champollion, primeiro tradutor dos hieróglifos. Porém, quantas relações miméticas esse souvenir não estabelece, de um lado, com l'Arc du Triomphe e, de outro, com todos os artigos egípcios que foram parar nos salões do Louvre depois das conquistas de Napoleão?

Entre as estátuas da liberdade de NY e de Paris, qual é a cópia? A original não é necessariamente aquela que nos vêm à mente quando pensamos na sua figura. Uma delas nos remete à outra e o inverso não é recíproco. Trata-se de uma relação de semelhança, mas não de similitude. E tal relação hierárquica nada tem a ver com a autoria da mesma. Este é um caso evidente em que o sentido, nesta circunstância posto em disputa, foi decidido por outros eventos da história e, em última instância, pelo público. A referência central está naquela que tornou-se um símbolo histórico mais reconhecido, e o seu velho status toma a forma de um estrato geológico.

O que são esses eventos de sobreposição e de inversão em si mesmos? Não se pode determinar, pois sempre dependem de alguma perspectiva, seja a do imigrante, a do turista, a do povo de onde se usurpou um monumento, do povo que o criou, do povo que, por força ou por simples hegemonia, se apropriou de seu símbolo. É possível dar a volta em torno desses monumentos e muitas vezes atravessá-los fisicamente, assim como é possível, de uma perspectiva privilegiada, reunir esses diversos olhares.

Se o estruturalismo cartografa as relações de semelhança, a genealogia delas aproveita-se para introduzir uma estratégia de subversão, identificando diferenças ou provocando-as. Portanto, a genealogia, como modo de abordagem política e filosófica da história, possui a alternativa hoje de ir ao encontro da arte, seja para mimetizá-la na forma de uma curadoria da história ou para instigar a sua produção.

 

 

 

Referências:

 

BACHELARD, G., A poética do espaço, trad. Antonio Danesi, São Paulo: Martins Fontes, 2012.

BENJAMIN, W., Images de pensée, trad. J. F. Poirier e J. Lacoste, Lonrai: Titres, 2011.

_____________, Magia e técnica, arte e política, trad. S. P. Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 2008

_____________, Escritos sobre mito e linguagem, trad. Susana Lages e Ernani Chaves, São Paulo: Editora 34, 2013.

FOUCAULT, M., Ditos e escritos, v. 3, trad. Inês Autran Dourado Barbosa, Rio de Janeiro: Forense universitária, 2009b.

______________, Vigiar e punir, trad. Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes, 2008e.

NIETZSCHE, F., Genealogia da moral, trad. P. C. Souza, São Paulo: Companhia das letras, 2008.



[1] Doutor em filosofia pela PUC-Rio e professor da Universidade São Judas Tadeu.

[2] Tradução minha.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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