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Como construir coleções

Por Ana Letícia Fialho

Este texto foi publicado originalmente na Revista Select nº 27, publicada em 18/12/2015. Para acessar o artigo original ver http://www.select.art.br/como-construir-colecoes/

 

Como construir coleções

Num cenário de recessão e frente à inexistência de linhas de financiamento do Estado, as instituições apostam na participação de colecionadores privados para ampliar seus acervos. Sem o engajamento desses agentes, o colecionismo institucional no Brasil seria quase inexistente

O sistema da arte no Brasil viveu recentemente um período de grande vitalidade, visibilidade e expansão. Surgiram novos espaços e plataformas de exibição e discussão da arte contemporânea, exposições temporárias conquistaram novos públicos, o mercado de arte cresceu, e a circulação de artistas e agentes do sistema se intensificou. Apesar do contexto globalmente positivo dos últimos anos, permaneceu um certo desequilíbrio entre as esferas de produção e o mercado, bastante dinâmicos e internacionalizados, e a esfera institucional, ainda enfrentando dificuldades para realização de funções essenciais como o fomento à produção, à pesquisa e ao colecionismo da arte contemporânea. Não existem pesquisas consolidadas sobre esse importante pilar do sistema das artes, mas alguns dados da Pesquisa Setorial Latitude sobre o mercado de arte contemporânea, sob minha coordenação, dão notícia sobre a sua fragilidade, o que tende a se agravar no atual contexto de recessão econômica.

Segundo a Pesquisa, o mercado de arte contemporânea registrou, entre 2010 e 2014, um crescimento de mais de 20% ao ano, em grande parte graças aos colecionadores privados brasileiros, responsáveis por mais de 70% do volume de negócios, seguido pelos colecionadores privados estrangeiros, que movimentaram cerca de 13%. Já as instituições brasileiras movimentaram no mesmo período em média 4% das vendas das galerias, seguidas de perto das instituições internacionais, responsáveis por cerca de 3%. No período, foram identificadas mais de 100 coleções institucionais e corporativas estrangeiras que têm adquirido a produção contemporânea brasileira, algumas com bastante regularidade, como o MoMA e a Tate. Só em 2014, pelo menos 130 obras de artistas brasileiros foram adquiridas por 24 instituições internacionais.

Esses dados sugerem que a produção contemporânea brasileira está sendo incorporada em coleções privadas no Brasil e no exterior, e vem despertando um interesse crescente por parte das instituições internacionais, e que o colecionismo institucional nacional mostra-se incipiente dentro do sistema. Perece crucial indagar portanto se e como as instituições brasileiras estão acompanhando e colecionando a produção mais recente. Quais são as linhas curatoriais e as estratégias para viabilizar as aquisições? Aqui não daremos conta de exaurir tais questões, mas buscamos algumas respostas junto a museus no Rio de Janeiro e em São Paulo, que possuem coleções históricas relevantes e que estão de alguma forma buscando soluções para expandir e atualizar as suas coleções.

O MAM do Rio de Janeiro, o MAM de São Paulo, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o MAR desenvolveram modelos e estratégias bastantes diversos, mas com alguns pontos em comum, como veremos a seguir.

 

Critérios e recortes

 

O foco na produção contemporânea brasileira, hoje entendida de forma expandida, permitindo a inclusão de artistas estrangeiros residentes no Brasil e/ou que dialogam com nosso contexto e mais especificamente com nossa história da arte, é um ponto comum que informa as decisões de aquisição; assim como o diálogo, a convergência e complementaridade com as coleções existentes. Já os critérios mais específicos, que possam direcionar/delimitar as aquisições diante da grande diversidade e amplitude da produção contemporânea, não parecem tão simples de definir. Nesse sentido, chamam a atenção algumas das propostas de Tadeu Chiarelli e Paulo Herkenhoff, à frente da Pinacoteca e do MAR, respectivamente.

Na Pinacoteca, novas diretrizes para exposições e aquisições estão sendo delineadas a partir de pesquisas sobre a própria coleção e as políticas de gestão anteriores. Segundo Chiarelli, um núcleo que deve ganhar destaque é o dedicado a artistas afrodescendentes, cuja origem remonta a 1956, quando entrou para o acervo uma obra de Artur Timóteo da Costa, que toma corpo durante a gestão de Emmanuel Araújo e agora está sendo ampliado, abrangendo uma nova geração de artistas que têm como especificidade a qualidade da produção e o questionamento do sistema, tais como Flavio Cerqueira, Jaime Lauriano, Paulo Nazareth, Rômulo Conceição e Rosana Paulino. Todos estarão na mostra Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca, em cartaz até junho de 2016, dará destaque a esse núcleo.

 

Já Paulo Herkenhoff está constituindo no MAR uma coleção que se relaciona com a cidade, em torno de núcleos temáticos que extrapolam o campo da arte contemporânea, dando conta de um contexto cultural mais amplo, espelhado em obras de arte, mas também incluem objetos, documentos e publicações. Tal entendimento aponta para uma outra tendência observada, relacionada à ampliação do campo da arte contemporânea, que tem levado as instituições e seus curadores a questionarem os critérios de segmentação de seus acervos artísticos, documentais e suas bibliotecas.

 

As exposições como orientadores das aquisições

 

As diversas instituições consultadas informaram sobre a frequente correlação entre as aquisições e as exposições temporárias, pois estas se constituem como plataformas de investigação, contribuindo com o reconhecimento e valorização dos artistas. As aquisições, nesse contexto, não ocorrem sempre, e sim quando são dadas as condições necessárias, de pertinência e recursos disponíveis.

Existem também exemplos de exposições que têm simultaneamente a vocação de oferecer um panorama atual da produção contemporânea brasileira e de contribuir diretamente com a atualização da coleção da instituição. Tal é o caso do Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, criado em 1969 para ajudar a (re)constituir uma coleção para o museu e que até hoje desempenha um papel importante na sua expansão.

Correlato ao Panorama, mas estruturado diferentemente, o prêmio PIPA foi criado em 2010 pelo MAM-RJ em parceria com a IP Capital Partners para favorecer a expansão da coleção do museu. Segundo Luiz Camillo Osório, até 2009 o museu não tinha uma dotação orçamentária fixa para aquisições. Inspirado no Turner Prize, e contando com a participação de um grupo de colecionadores que trabalha no mercado financeiro e investem recursos sem uso de incentivo fiscais, o prêmio se tornou uma importante política para aquisição de obras contemporâneas de artistas contemporâneos com uma trajetória reconhecida por agentes do sistema. A cada edição, um júri composto por curadores, críticos, artistas, colecionadores e gestores culturais, residentes em diferentes regiões do país, indicam cerca de 60 candidatos que participam da exposição, entre os quais são escolhidos 4 finalistas, que concorrem ao prêmio principal, no valor de R$ 130.000 e passam a integrar a coleção do museu.  Em sua 6a edição, o prêmio permitiu ao museu incorporar em sua coleção obras de Alice Miceli, Daniel Steegmann Mangrané, Thiago Martins de Melo, Wagner Malta Tavares, Cintia Marcelle, Marcelo Mosqueta, Marcius Galan, Renata Lucas, André Komatsu, Eduardo Berliner, Jonathas de Andrade, Tatiana Blass, Marcius Galan, Matheus Rocha Pitta, Rodrigo Braga, Thiago Rocha Pitta, Berna Reale, Cadu, Camila Soato e Laércio Redondo.

 

Os colecionadores no museu

Comitês de aquisição, clubes de colecionadores, grupos de patronos, etc. Os modelos e programas podem apresentar diferenças, não obstante a captação de recursos junto a indivíduos com alto poder aquisitivo constituem a principal estratégia das instituição para viabilizar as aquisições.

Um exemplo de iniciativa exitosa nesse sentido foi a criação, em 2012, do grupo de Patronos da Arte Contemporânea da Pinacoteca do Estado de São Paulo, que tem por objetivo constituir um fundo de doações para aquisição de obras de arte brasileiras produzidas a partir de 1960. O grupo de patronos, atualmente composto por 70 casais, arrecadou em 3 anos R$ 1.956.000 e possibilitou a aquisição de 17 obras de Carla Zaccagnini, Dora Longo Bahia, Eliane Prolik, João Luiz Musa, Ana Maria Tavares, Sara Ramo, José Damasceno, Sandra Cinto, André Komatsu, Delson Uchoa, Alexandre da Cunha, Eduardo Berliner, Erika Verzutti, Miguel Rio Branco, Maurício Ianês e Nelson Felix (dados até 2014). Embora não se tenha dados consolidados para 2015, a arrecadação parece ter ficado abaixo da média dos anos anteriores, mas ainda assim o programa constitui um dos pilares da política de aquisição do museu para arte contemporânea.

O clube dos colecionadores o MAM SP é, segundo Felipe Chaimovich, a forma mais regular para a entrada de jovens artistas na coleção do museu. Quinze obras selecionadas por curadores nas áreas de gravura, fotografia e design são produzidas em tiragens de 100 exemplares e entregues aos sócios dos clubes e as provas de artista de cada obra são incorporadas na coleção do museu. Em 2015, os sócios pagaram R$ 5.080 para participar de cada modalidade. Outra iniciativa voltada ao fortalecimento da coleção é o Núcleo Contemporâneo, criado em 2000 e que já assegurou, graças a anuidade paga pelos sócios, a aquisição de cerca de 200 obras para a coleção do museu. Atualmente o Núcleo também ajuda na viabilização orçamentária do Panorama da Arte Brasileira .

Exemplos de pedido direto de apoio a colecionadores para aquisições pontuais são recorrentes e importantes, e complementam os programas regulares, que têm recursos limitados e trâmites via de regra mais demorados. É a eles que apelam as instituições quando identificam oportunidades que exigem decisões rápidas, obras raras que poderiam suprir lacunas da coleção ou ainda aquelas de alto valor. Essa é uma estratégia importante para a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Segundo Chiarelli, existe uma nova geração de colecionadores que entendeu que as suas coleções só terão importância se as coleções institucionais forem significativas. Ora, isso evidencia o interesse e o entendimento dos colecionadores privados de que as instituições têm um importante papel na valorização simbólica e econômica dos artistas que exibem e colecionam.

Igualmente importantes e frequentes são as doações diretas de obras por artista e familiares e colecionadores, sujeitas sempre a um processo de avaliação pela direção, pela equipe curatorial e por conselhos consultivos.

Uma outra forma de associação das instituições com colecionadores privados é o regime de comodato, no qual um colecionador privado coloca sob a tutela do museu uma coleção, condicionada ou não a futura doação. Esse é um tema que mereceria um artigo a parte, dada sua complexidade e especificidade. Por se tratar da entrada de um conjunto de obras colecionadas por indivíduos, segundo critérios subjetivos e individuais, em coleções institucionais, caberia indagar como se dá a relação entre as obras cedidas e a instituição, sua missão, suas linhas curatoriais e a coleção existente, e também qual o ônus que tais acordos podem trazer. Por outro lado, se não fossem tais acordos, seria praticamente impossível a entrada de conjuntos significativos de obras históricas e com alto valor de mercado em coleções institucionais, como é o caso da coleção Gilberto Chateaubriand em comodato no MAM RJ.

 

O Estado e o colecionismo institucional

Iniciativas que assegurem recursos públicos para aquisição de acervo, por outro lado, são bastante raras. Uma exceção é o Prêmio Marcantônio Vilaça, edital da Funarte/Minc, destinado ao fortalecimento de acervos de instituições culturais. Infelizmente os recursos disponíveis diminuíram significativamente: em 2013 o prêmio tinha um orçamento de 2,9 milhões e contemplou 15 projetos, em 2015, em sua 8a edição, teve um investimento de R$ 700 mil reais, e beneficiou apenas 4 instituições (MAC/USP, MARP, MAP, MNBA).

Ainda assim, vale destacar a sua contribuição para formação das coleções aqui analisadas. O MAR já foi contemplado com R$ 300.000 para aquisição de obras de Vera Chaves Barcellos em 2104, e o MAM RJ já foi contemplado 4 vezes pelo edital, o que permitiu a aquisição de obras de Cão Guimarães, Carlos Bevilacqua, Carlos Vergara, Ernesto Neto, Evandro Teixeira, Fábio Barolli, Guilherme Dable, Jarbas Lopes, Jimson Vilela, João Mode, Luiza Baldan e Maria Nepomuceno. Em 2010, um outro prêmio federal, o Procultura de Estímulo as Artes Visuais 2010, da Funarte, assegurou a aquisição e catalogação do arquivo de Márcia X pelo MAM RJ.

Outra forma de aquisição relacionada a recursos federais, mas que também depende da captação de recursos junto à inciativa privada, é a Lei Rouanet, via de regra utilizada pelas instituições para aquisições pontuais de obras de alto valor.

 

Conclusões

Num cenário de recessão econômica, em que os recursos disponíveis se tornam mais escassos, e frente à inexistência de políticas e linhas de financiamento consistentes da parte do Estado, as instituições parecem cada vez mais apostar na participação dos colecionadores privados e do patrocínio de empresas para sanar lacunas e ampliar os seus acervos. Sem o engajamento desses agentes, o colecionismo institucional no Brasil seria quase inexistente.

É sem dúvida positivo o maior engajamento de indivíduos no fortalecimento das instituições públicas brasileiras, e não só a coleções internacionais de prestígio, como o MoMA e a Tate (onde parte desses colecionadores também participam como patronos, e há bem mais tempo). Por outro lado, o que parece preocupante é que as principais políticas de expansão dos acervos dependem forte ou exclusivamente da participação de colecionadores, muitas vezes envolvidos também nos conselhos de administração das instituições. Não se pode deixar de observar que tais agentes são também importantes protagonistas do mercado de arte e têm interesse na valorização de suas próprias coleções.

Tadeu Chiarelli comentou já ter observado certa resistência quando se propõem aquisições de artistas que que não estão representados no mercado, evidenciando a importância do respaldo do mercado no processo de reconhecimento dos artistas, mesmo pelas instituições. E ele tem razão em afirmar que no entanto o papel da instituição é mostrar que existe uma produção artística maior e mais diversa do que a que está nas galerias. Por isso é fundamental que o Estado dote as instituições de alguma autonomia orçamentária para aquisições, hoje inexistente. Também é papel do Estado a elaboração de políticas mais consistentes, de fomento à pesquisa e à programas expositivos experimentais, enfim, políticas voltadas ao fortalecimento da esfera institucional, que não deveria ficar tão vulnerável frente a interesses, em última instância, privados, sejam eles corporativos, mercadológicos ou individuais.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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