Notas Dispersas a partir da perspectiva da Agrimensura
Photophobia
ou sobre Édipo
parte I
(…) Tomemos o momento em que Édipo finalmente descobre o oráculo original. Dentro de um sentido pragmático, a profecia ali já se encontra totalmente obsoleta. Quero dizer, seu valor enquanto prognóstico futuro já de nada mais nos vale. Aquilo que antes se desenhava ao clarividente como desígnio e projeto, agora, do ponto de vista do presente trágico instaurado, já se realizou enquanto catástrofe e ruína. Para Sófocles, o transe do oráculo nada tem a dizer a respeito futuro. Por isso que ele pode vir à tona já tão tarde na trama. Sua função não é apontar para frente, mas sim, pelo contrário, apontar para trás. No lugar de uma antevisão do fim da história enquanto supra-vontade abstrata, o que ele nos oferece é a objetiva exposição das razões pelas quais a história parece se comportar como se ela já houvesse se colapsado desde sempre. Estamos aí não mais diante da vontade dos deuses, mas, sim, da conclusão bombástica de um longo processo de exposição analítica. O oráculo aqui não é mais uma predição, um vaticínio, um alerta, ele é a própria fonte, a própria causa, o próprio estopim que vem a desencadear o que se segue. Ele é o relampejo do real no devir do plano simbólico e imaginário do mundo. A cisão traumática a instaurar nossa história enquanto processo neurótico e capital. É assim que a grande tragédia passa a residir aqui no fato de que, assim que tomamos conhecimento da vontade divina e de sua fatal influência sobre o destino do personagem principal, somos instantaneamente atirados em direção a um sentimento estranhamente peculiar. O que parece nos chocar não é mais o fato do destino se cumprir segundo o oráculo. O que realmente nos choca é o fato do destino se cumprir a partir e graças ao oráculo. Não é a história que executa o presságio. É o presságio que executa a história. Todavia, o ponto nevrálgico aqui, o abismo dentro do qual encontramos nosso sentimento de dor e cansaço, nossa verdadeira weltschmerz romântica, é que, em meio a isso tudo, percebemos que os deuses muito pouco ou nada fazem para levar a cabo suas próprias vontades. Somos nós, os homens, que, ao sabor dos trancos e barrancos de nossa própria liberdade, acabamos por nos arrastar de livre e bom grado até o Monte Taigeto de nossa solidão existencial. Somos nós que, sozinhos e sempre sozinhos, nos atiramos com passos firmes ou tropeços inconsequentes ao abismo vazio e absurdo do Absoluto. (…)
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Como Kurt Godël interpretaria o resultado da soma de todos os números inteiros entre 1 e 36?
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Talvez fosse o caso de se olhar para as imagens com o olhar de um maníaco. Ter a coragem de perscrutá-las com as íris desviadas de uma perversão total. Na garganta do refém, o rasgo de uma vagina. No furo de uma bala, um ânus. No corpo dividido do homem bomba, a experiência espacializada de um menage à troi. Uma perversão não das coisas ou das representações, mas do engajamento de nossos desejos para com os ecos produzidos pelo ranger de nossos próprios dentes. O terror não da ordem das imagens em si, mas do vazio libidinal de cada um de nosso globos oculares para com eles mesmos (globos como bagos, feixes de luz como espadas e paus). No estrabismo peculiar que vai da coprofagia ao desastre ecológico, do gang bang à Wall Street, do SM à xenofobia, da porno 3d à auto-ajuda, da selfie ao atentado terrorista, da zoofilia ao marketing de guerrilha, da masturbação à Guerra Morna, o cheiro acre de um mesmo fantasma, uma aparição a vagar pelo reino espiritual da arte contemporânea e da especulação financeira.
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É necessário se escrever um novo Dorian Gray. Um anti-Dorian Gray. Um no qual personagem e retrato seriam ambos aspectos de uma mesma maldição: a solidão inexorável das imagens eternamente indestrutíveis. Durante a narrativa, inúmeras vezes veríamos Dorian em estado de plena estafa sentado massageando seus glóbulos oculares com os ossos de seus dedos. Nesses momentos, como que levado ao torpor pelo aparecer e desaparecer desordenado de flashes luminosos na profundeza de suas pálpebras (flashes, nesse caso, sempre cor de rosa), o personagem se veria acometido por peculiares visões nas quais veria a si mesmo caminhando pelas ruas do antigo império romano acompanhado de uma jovem de traços fisionômicos semelhantes ao dele (em outra partes da história seriam dadas indicações sub-reptícias sobre a possiblidade de Dorian ter tido uma irmã gêmea, a qual teria falecido na ocasião do parto). Antes de recobrar a consciência, o personagem se veria assombrado pelo despencar de uma inesperada frase no martelo de seus ouvidos: ¨The empire never ended¨.
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A boca é a única das passagens projetada naturalmente para um duplo trânsito dos sentidos. Seu mistério é representado sutilmente nos filmes do faroeste mediante a figuração insistente da passagem dos personagens do ambiente público ao privado e vice-versa através de portinholas de mola dupla. Seu debater-se em forma de eco e asas nas costas daqueles que por elas atravessam nos advertem do aspecto ao mesmo tempo místico e banal da passagem de nossos corpos pelas mentepsicoses sucessivas da vida social.
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Para unir Wittgenstein e a Bolsa de Valores (baseado numa antiga anedota infantil)
Logo quando o dia começou, se espalharam os boatos de que havia sido marcada para aquela noite uma Festa no Céu. Dois sapos tomaram seus violões e partiram voando para o alto a partir de uma clareira nos arredores da cidade de Richard M. Era tarde, e o sol se punha túrgido como o pênis de um homem enforcado a se enfiar na concavidade distante do horizonte. As nuvens se estendiam-se para o alto, demonstrando-se demasiadamente gordas e pesadas para aqueles tempos particularmente frios e secos (¨Há muito não se vê outono assim por essas bandas¨, comentavam os velhinhos no açougue da cidade). Foi em direção à gordura daquelas colunas brancas e largas que ambos anfíbios partiram, arrastando atrás de si seus pedaços de madeira e metal. Subiram e subiram como os anjos em Betel. E quanto mais atingiam as camadas rarefeitas de ar e de luz, mais lhe arfavam os peitos e com maior intensidade começavam a cantar e fazer fuzuê. Seu canto podia ser ouvido por todo o vale, sem que, todavia, qualquer um pudesse depreender qualquer coisa próxima de um conjunto de fonemas propriamente discernível de seus estribilhos. Foi só quando seus corpos se afundaram na névoa densa de uma Nimbus Cumulus fria e escura que um deles se apercebeu da enrascada na qual inadvertidamente começavam a se meter. Foi ele quem primeiro alertou: ¨Camarada! Isto está errado. Não deveríamos estar aqui¨. ¨Por quê?¨, disse o outro. ¨Porque sapos não se metem em nuvens assim.¨ ¨Por quê?¨. ¨Porque sapos não podem voar!¨ Nenhum deles enxergava claramente um ao outro, quando-quando-quando, ao tomarem consciência do que havia sido dito, assistiram seus corpos serem atraídos por uma irresistível força aquosa intra-terrena. Era como se suas patas se tornassem maçãs e o centro do globo terrestre se convertesse numa daquelas réplica plastificadas da cabeça de Newton que duas vezes por ano o Museu de Cera retira de exposição para a limpeza. Ambos despencaram lá do alto feito os tocos podres decepados de uma árvore doente. Por conta da velocidade da queda, a umidade se desprendia rapidamente de suas peles de modo que o brilho característico de seus corpos anfíbios se desfazia enquanto cada um se agarrava com tenacidade desesperada a seu instrumento musical. Foi só algum tempo depois, quando já atingiam a distância que tornava possível se ler os letreiros das ofertas do supermercado lá embaixo, que um dos sapos se deu conta da contradição maior daquele impacto fatal. ¨Não. Não!¨, gritou com mansidão reflexiva. ¨Aaaaahhhhhhh!!!!¨, esgoelou o outro sem lhe dar atenção. ¨Não. Não.¨, continuou o sapo pensativo. ¨Não¨, disse ele, ¨Não podemos cair assim¨. ¨Aaaaahhhhhhh!!!!¨, continuava o outro. ¨Não! Sete vezes não. Sapos não falam.¨ Rapidamente ambos corpos verdes puseram-se a desacelerar. Como se um elástico invisível amarrasse cada um pelas costas tal qual num big jump, no momento exato da inversão vetorial de suas acelerações (o instante secreto e sem peso de uma foto, uma corda de big jump estira em seu máximo antes de retroceder), cada um colheu um fruto no topo de uma das copas das árvores que rodeavam a clareira a pouco por eles abandonada. Calados, flutuando como condenados à morte, com seus instrumentos entre as patas e seus caroços de seriguela entre os dentes, a dupla adentrou o salão da Festa noventa e três minutos depois da primeira linha deste texto.
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Há tempos que o organograma da corte foi reordenado a partir da figura exemplar daquele artesão sem tecido do conto clássico. Desde de então, é justamente a exposição despudorada da nudez real, e seu consequente escrutínio crítico público generalizado, o que vem garantindo à ordem estabelecida sua mínima coesão social. É de se pensar que, nos dias de hoje, revestir o monarca de tecido grosso e o botar pra caminhar sobre o gelo fino do lago social vestindo sapatos de chumbo talvez venha a ter mais serventia do que simplesmente se propor a desvelar seu corpo patético mediante a desmaterialização relacionalista de sua capa (Pra quê? Pra revelar quão parecidos com ele somos todos nós?). Deve-se todavia atentar para o fato de que talvez tanto aquele que veste para fazer afundar quanto aquele que despe para fazer boiar participam de uma mesma velha conhecida ordem: o óbvio comum-pertencer (zusammengehörigkeit) tanto do cetro (a expressão objetivada da mão) quanto da coroa (a expressão abstrata da cabeça) à lógica assentada do trono (a expressão obscura de tudo aquilo que nos é traseiro). Se, em última instância, somos obrigados a preferir a tragédia do chumbo à farsa da cortiça, o fazemos somente sob a condição de não esquecer que tal distinção se resume estritamente aos buracos por onde se coopta alimento e dado. Ou como se diria em prosa pseudo-orientalista: Sábio é aquele que jamais se esquece da unicidade do esfíncter de Janus.
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Que se pegue o caso de uma bandeira. A grosso modo, uma bandeira se define a partir do entrecruzamento de duas condições específicas. Uma de ordem objetivo-concreta, sua função de forma: proporções, tipos de materiais e superfícies, lógicas de encadeamento das partes etc etc). E outra, de ordem relativo-circunstancial, sua função de sentido: ser ascendida aos céus, sinalizar à distância, se deitar ao vento, etc etc. Vê-se logo que há uma diferença entre o modo de ser de uma bandeira e os modos de ser de um dente, um padre, um fuzil ou de um mágico a desaparecer por detrás de uma cortina de fumaça. Enquanto a maior parte das coisas tem suas funções de forma e sentido existencialmente condicionadas pelos primados de suas substâncias e condições de uso, uma coisa-imagem como um bandeira opera na chave fatal de uma tautologia. Enquanto um dente, um padre, um fuzil ou um mágico a desaparecer por detrás de uma cortina de fumaça podem ser definidos nos termos de verdadeiros ou falsos, uma bandeira só poderá ser definida nos termos de uma incontornável e fatal verdade. (A miniatura de uma bandeira é, antes de ser uma miniatura, uma bandeira. A projeção de uma bandeira é, antes de ser uma projeção, uma bandeira. A pintura de uma bandeira é, antes de ser uma pintura, uma bandeira - como bem nos demonstrou a Pop). Uma bandeira é sempre uma bandeira é sempre uma bandeira é sempre uma bandeira. E é justamente este sempre o que a define como um tipo hiper-doppelganger da rosa de Stein. Enquanto uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa pelo seu natural prescindir ante às aparências tanto da função de forma na de sentido, uma bandeira é sempre uma bandeira exatamente por seu se fincar enquanto inexorável aparecer de uma forma e de um sentido. Mas o que o distingue o aparecer de uma rosa do aparecer de uma bandeira? O que seria aparecer um e noutro caso? (…)
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A estética enquanto adestramento de pulgas. Se o sujeito ouve pela orelha esquerda, ela pula para a da direita. Se o sujeito ouve pela orelha direita, ela pula pra a da esquerda.
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No exaurir-se do suspiro último, a solitária percepção da derradeira visão. A opacidade desse estado, sua inexpugnabilidade perante cada um de nós, é o que nos choca diante da visão de um cadáver de olhos abertos. Nos horroriza a idéia de que a luz ainda atravessa sua íris. Nos toca o o fato de que ali, no ventre oco daqueles globos oculares, ainda vem a se formar a imagem invertida do mundo sobre o qual teimamos ainda caminhar. Diante do passamento do outro, nos tornamos testemunhas oculares do espelhar-se mútuo de um par de cavernas vazias no interior de outro par de cavernas vazias.
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O problema da crítica da imagem na caverna está em querer nos colocar na opção entre isso e aquilo, como se a abstração não se espalhasse para frente ou para trás. Entre a luz do flash e o breu da câmera escura, a pedra e o aço que nos condenam à visão das incorporações da parede/rua (incorporations of the wall/street) são as únicas coisas propriamente reais que se nos apresentam nessa história.
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¨Eu não quero colocar mais uma imagem no mundo¨, repete o artista contemporâneo, dando mostra clara de não compreender absolutamente nada sobre o que imagem vem a significar.
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Photophobia
ou sobre Édipo
parte II
(…) Que a Luz seja o verdadeiro protagonista aqui, até um ornitorrinco cego poderia perceber. O ponto é: a Luz a partir de que foco? Como bem sabemos, todo o drama de Sófocles é perpassado por insistentes referências à dimensão subjetiva e parcial da ¨visibilidade¨. O ápice disso é o momento do encontro entre Édipo, que apesar de ter olhos sadios, é incapaz de ver o que realmente se passa, e Tirésias, que apesar de ser cego, é capaz de enxergar o conteúdo de verdade por detrás dos ¨raios do sol¨. Pergunte a qualquer um sobre o significado da auto-mutilação final de Édipo e todos responderão a mesma coisa: ¨ele está a aplicar a si mesmo uma punição simbólica pelo fato dele ter sido cego até então em seus atos¨. Ok. Isso não está de todo errado. Mas existe um detalhe aí: por que Édipo não arranca seus olhos ao invés de perfurá-los? Ou melhor, por que ele simplesmente não se mata, assim como fez sua mãe? Esse é um ponto crucial aqui. Se Édipo simplesmente aplicasse sobre si uma punição violenta por sua incapacidade em enxergar ¨a verdadeira luz da verdade¨, estaríamos ainda chafurdando no terreno da crítica dos sentidos aos moldes da caverna de Platão e da filosofia Idealista. Não. Creio ser mais interessante pensar a cena de outra forma. Édipo se nega ver o mundo real em sua parcialidade, no entanto, não para negá-lo em nome do Olimpo, em nome do plano das idéias lá fora. Ele sabe que não há lá fora, ou que pelo menos, isso muito pouco importa. Aquilo que chamamos lá fora, lá em cima, destino, vontade divina, Lei, Pai, Absoluto etc etc nada mais é do que a soma indiscriminada dos atos do homens no devir solitário de uma terra devastada. O absoluto não está para além do homem, ele é o próprio homem em relação a si mesmo no tempo (quatro pernas, duas pernas, três pernas). Ao trespassar seus olhos com a ponta dos broches de ouro que sustinham seu manto, Édipo se desnuda à totalidade de sua própria história. No brilho de seus olhos feridos deveríamos ouvir o eco de sua fala muda: ¨Que meus olhos sejam invadidos pela umidade quente do sangue e a quentura seca do metal solar. Não existe luz verdadeira senão aquela do homem junto às coisas.¨ (…)
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pergunta: Qual é a diferença entre uma ação, um derivativo e um acionista?
resposta: Atire os três do topo de um prédio. O que gritar enquanto cai é o acionista.
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sobre a diagonal
A chave (ou o arcano, como diria o ocultista) é a diagonal enquanto procedimento estrutural.
No construtivismo, a diagonal é o abalo sísmico do plano tectônico da imagem (tectônico no sentido wolffliniano mesmo do termo). Nela se adiantaria enquanto imagem aqueles processos e forças conflitivas próprias ao processo da superação da luta de classes.
Qual seria o desafio?
O desafio seria fazer com que essa mesma diagonal operasse também por detrás da imagem. Ela deveria atacar não só a estabilidade das formas e dos objetos mas também de seus conteúdos simbólico-ideológicos.
A diagonal deveria ser um câncer contra a univocidade da imagem em todos seus sentidos. A diagonal contra a Síndrome de Gerstmann.
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Síndrome de Gerstmann
(ou Síndrome Angular)
Distúrbio neurológico caracterizado por lesões no giro angular da área dominante do cérebro (geralmente o hemisfério esquerdo). Manifesta-se geralmente em quatro sintomas principais: dificuldade e/ou incapacidade de se expressar pela escrita (disgrafia/agrafia); dificuldade/incapacidade de compreender matemática (discalculia/acalculia); a incapacidade de distinguir os dedos na mão (agnosia digital); e, por fim, pela desorientação em relação aos sentidos de direção direita e esquerda.
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Photophobia
ou sobre Édipo
parte III
Se Sófocles fosse judeu ou cristão, ele provavelmente nos diria: ¨Quando o espírito de Deus se move sobre a face das águas, a face das águas também se move sobre o espírito de Deus.¨
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Ópera em dois atos
Cena: Raios solares rasgam intermitentemente o céu iluminando partes do cenário sem que consigamos definí-lo como uma floresta tropical ou uma insólita tundra. Em meio ao pesadelo de uma tempestade, podemos distinguir a figura de um homem alto (talvez uniformizado, talvez nu) e o que parecem ser tartarugas marinhas a expelir ovos. Ao fundo, sons de galinhas copulando com cães e répteis.
Ato 1:
Ele caminha, toma uma tartaruga e a joga sobre seus ovos. Os ovos quebram.
Ato 2:
Ele caminha, toma uma porção de ovos e os joga sobre uma tartaruga. Os ovos quebram.
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Atrasado, o meio-dia bateu seu sol a pino às 11 horas e 93 minutos.