Você está aqui: Página Inicial / Revista / Periódico Permanente #6 / Conteúdo / Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada)

Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada)

 

Autor: Michael Warner

Tradução: Ethiene Nachtigall

Revisão técnica: Diogo de Moraes

Download em PDF

 

Públicos e Contrapúblicos (versão abreviada)

 

Este ensaio tem um público. Se você está lendo (ou ouvindo) isso, você é parte de seu público. Então, em primeiro lugar deixe-me dizer: bem-vindo. Claro, você pode parar de ler (ou sair da sala), e alguém mais pode começar (ou entrar). Seria o público deste ensaio, então, diferente? Seria possível saber alguma coisa sobre o público ao qual, espero, você ainda pertence? O que é um público? Curiosamente, essa é uma questão obscura, considerando que poucas coisas têm sido mais importantes no desenvolvimento da modernidade. Os públicos tornaram-se um fato essencial da paisagem social, e mesmo assim custaria um grande esforço ao nosso entendimento descrever exatamente o que eles são.

Vários sentidos do substantivo público tendem a ser usados indistintamente. Nem sempre as pessoas distinguem entre o público e um público, embora haja determinados contextos em que a diferença seja relevante. O público é uma espécie de totalidade social. No seu sentido mais comum refere-se às pessoas em geral. Um público também pode ser uma segunda coisa: uma plateia concreta, uma multidão que testemunha a si mesma no espaço visível, como é o caso de um público teatral. Tal público tem também um sentido de totalidade, delimitada pelo evento ou pelo espaço físico compartilhado. Um ator no palco sabe onde seu público está, o quão grande ele é, onde estão seus limites, e qual o tempo de sua existência comum. Uma multidão em um evento esportivo, em um concerto ou passeata tem limites menos precisos, mas ainda se sabe onde e quando está reunida, constituindo uma visibilidade e ação comuns.

Eu vou voltar a ambos os sentidos, mas o que eu quero esclarecer no presente ensaio é principalmente um terceiro sentido: o tipo de público que passa a existir apenas em relação a textos e sua circulação - como o público deste ensaio. (É bom ter você conosco, ainda.)

As distinções entre esses três sentidos nem sempre são nítidas, e não são simplesmente decorrentes da diferença entre contextos orais e escritos. Quando um ensaio é lido em voz alta, como ocorre numa palestra em uma universidade, por exemplo, a audiência concreta de ouvintes se considera como representante de uma audiência mais difusa de leitores. E muitas vezes, quando uma forma de discurso não está se dirigindo a uma audiência institucional ou subcultural, como no caso de um segmento profissional, por exemplo, sua audiência pode entender-se não apenas como um público, mas como o público. Em tais casos, diferentes sentidos de público e circulação estão em jogo ao mesmo tempo. Eles sugerem que vale a pena compreender as distinções melhor, mesmo porque as transposições entre eles podem ter efeitos sociais importantes.

 

1) Um público é auto-organizado.

Um público é um espaço de discurso organizado por nada além do próprio discurso. É autotélico; ele só existe como finalidade para a qual os livros são publicados, os programas de TV são difundidos, sites da internet recebem postagens, discursos são distribuídos e opiniões são produzidas. Ele existe em virtude de ser destinatário.

Uma espécie de circularidade do ovo e da galinha confronta-nos na ideia de um público. Alguém poderia falar publicamente sem dirigir-se a um público? Mas como pode existir esse público antes de ser destinatário? O que seria de um público se ninguém se dirigisse a ele? Um público pode realmente existir à margem da retórica através da qual é imaginado? Se você deixasse de lado este ensaio e ligasse a televisão, o público seria diferente? Como pode a existência de um público depender, por um lado, do endereçamento da retórica, e, por outro, do contexto real de recepção?

Estas questões não podem ser resolvidas de um lado ou do outro. A circularidade é essencial ao fenômeno. Um público pode ser real e eficaz, mas a sua realidade está ligada precisamente a esta reflexividade pela qual um objeto endereçável é conjurado a existir, a fim de permitir o próprio discurso que lhe dá existência.

Neste sentido, um público é tanto nocional quanto empírico. É também parcial, uma vez que poderia haver um número infinito de públicos dentro da totalidade social. Este sentido do termo é completamente moderno; é o único tipo de público para o qual não há outro termo. Nem multidão, nem audiência, nem pessoas, nem grupo irão capturar o mesmo sentido. A diferença nos mostra que a ideia de um público, ao contrário de uma audiência concreta ou do público de qualquer entidade política, é baseada no texto - mesmo que os públicos estejam cada vez mais organizados em torno de textos visuais ou auditivos. Sem a ideia de textos que possam ser tomados em momentos diferentes e em lugares diferentes por pessoas que não se relacionariam de outra forma, nós não poderíamos imaginar um público como uma entidade que engloba todos os utilizadores daquele texto, quem quer que sejam. Muitas vezes, os próprios textos não são sequer reconhecidos como textos, como ocorre, por exemplo, com a publicidade visual ou o som produzido por um DJ - mas os públicos que eles trazem à vida ainda são discursivos da mesma forma.

A estranheza desse tipo de público é muitas vezes ocultada, porque os pressupostos da esfera pública burguesa nos levam a pensar em um discurso público como uma população e, portanto, como um conjunto realmente existente dos seres humanos potencialmente numeráveis. Um público, na prática, aparece como o público. É fácil ser enganado por essa aparência. Mesmo na visão imprecisa da esfera pública, um público nunca é apenas um amontoado de pessoas, nunca apenas a soma das pessoas que casualmente existem. Ele deve, antes de tudo, ter alguma forma de organizar a si mesmo como um corpo, e ser destinatário do discurso. E essa totalidade não pode ser definida de qualquer forma. Deve ser organizada por outra coisa que não o Estado.

Aqui podemos ver como a circularidade autotélica do público do discurso não é apenas um quebra-cabeça para análise, mas também o fator crucial na importância social da forma. Um público se organiza independentemente das instituições estatais, leis, marcos formais de cidadania ou instituições pré-existentes, tais como a igreja. Se não fosse possível pensar o público como organizado independentemente do Estado ou outras estruturas, ele não poderia ser soberano no que diz respeito ao Estado. Assim, o sentido moderno do público como a totalidade social de fato deriva muito do modo como entendemos os públicos parciais do discurso, a exemplo do público deste ensaio, como auto-organizados. O modo como o público funciona na esfera pública (como população) só é possível porque se trata, na realidade, de um público do discurso. Ele é autocriado e auto-organizado, e aí reside o seu poder, bem como a sua evasiva estranheza.

Na espécie de sociedade moderna em que a ideia de públicos foi habilitada, a auto-organização de públicos de discurso tem imensa ressonância do ponto de vista dos indivíduos. Falar, escrever e pensar envolve-nos - ativa e imediatamente - em um público, e, portanto, em sermos soberanos. Imagine o quão impotentes as pessoas se sentiriam se seu pertencimento a um grupo e sua participação fossem simplesmente definidas por estruturas pré-determinadas, por instituições e leis, como em contextos sociais nos quais isso é definido pelo parentesco. Como seria o mundo se todas as formas de ser público fossem semelhantes a tirar carteira de motorista ou se associar a um sindicato - isto é, se mediações formalmente organizadas substituíssem o público auto-organizado como a imagem de pertencimento a um grupo ou uma atividade comum? Esta é a imagem do totalitarismo: uma sociedade sem afinidades, organizada pela burocracia e pela lei. A posição, função e capacidade de ação de cada um sendo definidas pela administração. A impotência do indivíduo em um mundo assim assombra também o capitalismo moderno. Nossas vidas são minunciosamente administradas e registradas, em um grau sem precedentes na história; navegamos em um mundo de agentes corporativos que não respondem nem agem como pessoas. Nossas capacidades pessoais, tal como a credibilidade, acabam refletindo expressões da agência corporativa. Sem uma fé – justificada ou não – em públicos auto-organizados, organicamente ligados à nossa atividade em sua própria existência, capazes de serem destinatários de um discurso e capazes de ação, não seríamos nada além de peões do capital – o que é claro que podemos ser, e alguns de nós mais do que outros.

Na ideia de um público, a confiança política está comprometida com um destino estranho e incerto. Às vezes isso pode parecer algo muito estranho. Frequentemente não conseguimos nos imaginar dirigindo-nos a um público capaz de compreensão ou ação. Isto é especialmente verdadeiro no caso das pessoas que se acham em minoria ou na marginalidade, ou pessoas distribuídas através de sistemas políticos. O resultado pode ser uma espécie de depressão política, um bloqueio na atividade e otimismo, uma desintegração da política em direção ao isolamento, frustração, anomia, esquecimento. Esta possibilidade, que nunca pode ser excluída, revela por contraste o quanto fazer parte de algo exige confiança em um público. A confiança na possibilidade de um público não é simplesmente um trunfo nas mãos dos poderosos, dos especialistas e sábios, e subcelebridades oportunistas que tentam fazer de nós o seu público; a mesma confiança continua a ser vital para pessoas cujo papel na mídia pública é o de consumir, testemunhar, reclamar ou especular, em vez de um papel de plena participação ou fama. Se a fé é justificada ou parcialmente ideológica, um público só pode produzir um sentimento de pertencimento e atividade se é auto-organizado por meio do discurso, e não através de uma estrutura externa. É por isso que qualquer distorção ou bloqueio no acesso a um público pode ser tão grave, levando as pessoas a se sentirem impotentes e frustradas. Estruturas de atividade externamente organizadas, como o voto, por exemplo, são percebidas como um substituto pobre.

No entanto, talvez justamente porque parece tão importante pertencer a um público, ou ser capaz de saber algo sobre o público a que se pertence, tais substitutos têm sido produzidos em abundância. As pessoas têm tentado arduamente encontrar ou criar alguma forma externa de identificar o público, de resolver essa circularidade entre o ovo e a galinha. A ideia de que o público possa ser tão mutável e tão incognoscível como o público deste ensaio (você ainda está comigo?) parece enfraquecer o otimismo político que a acessibilidade do público permite.

Institutos de pesquisa e alguns cientistas sociais pensam que seu método é uma forma de definir um público como um grupo que poderia ser estudado empiricamente, independentemente do discurso que nutre sobre si mesmo. No início da história da pesquisa em teoria da comunicação e relações públicas, reconheceu-se que esta investigação ia ser difícil, uma vez que existem múltiplos públicos e que se pode pertencer a muitos públicos diferentes simultaneamente. Pesquisadores de opinião pública têm uma longa história de debate insatisfatório sobre este problema de método. O que determina se alguém pertence a um público ou não? Espaço e presença física não fazem muita diferença; um público é entendido como diferente de uma multidão, uma audiência, ou qualquer outro grupo que requeira copresença. A identidade pessoal por si só não faz de alguém parte de um público. Públicos diferem das nações, raças, profissões, ou quaisquer outros grupos que, embora não exigindo copresença, são impregnados de identidade. Pertencer a um público parece exigir um mínimo de participação, mesmo que passiva ou nocional, e não um estado de ser permanente. Prestar atenção, simplesmente, pode ser o suficiente para fazer de você membro de um público. Como se poderia, então, quantificar esse público?[1]

Alguns tentaram definir um público em termos de interesse comum, falando por exemplo de um público de uma política externa, ou do público de um esporte. Mas essa maneira de tratamento é apenas uma fuga do dilema do público autocriado. É como explicar a popularidade dos filmes ou romances como uma resposta à demanda do mercado; a alegação é circular, porque a demanda do mercado é inferida a partir da popularidade das próprias obras. A ideia de um interesse comum, como a de uma demanda do mercado, parece identificar a base social do discurso público, mas a base é de fato projetada a partir do próprio discurso público, ao invés de ser exterior a ele.

De todos os artifícios destinados a escapar dessa circularidade, o mais poderoso, de longe, tem sido a invenção da pesquisa de opinião. A pesquisa de opinião, juntamente com formas análogas de pesquisa de mercado, tenta nos dizer quais são os interesses, desejos e demandas de um público, sem simplesmente inferi-los do discurso público. É um elaborado aparelho concebido para caracterizar um público como fato social independente da destinação ou circulação discursiva. Como Pierre Bourdieu ressaltou, no entanto, este método continua negando o papel constitutivo da própria pesquisa como uma forma de mediação[2]. Habermas e outros têm enfatizado que esta ferramenta distorce sistematicamente a esfera pública, produzindo algo que se passa por opinião pública, quando na verdade resulta de uma forma que não tem nada do caráter aberto, estrutura reflexiva ou acessibilidade do discurso público. Eu acrescentaria que ela carece da criatividade encarnada e da capacidade de invenção de mundos, inerentes à dimensão pública. Públicos têm de ser entendidos como mediados por formas culturais, mesmo que algumas dessas formas, como a pesquisa, neguem seu próprio papel constitutivo como formas culturais. Públicos não existem à margem do discurso que a eles é dirigido.

Seriam eles, portanto, internos ao discurso? Os estudos literários muitas vezes entenderam um público como um destinatário da retórica, implícito nos textos. Mas o termo é geralmente empregado para indicar algo sobre a condição mundana do texto, o seu destino real, que pode ou não se assemelhar ao seu destinatário. A autobiografia de Benjamin Franklin, para tomar um exemplo famoso, manteve-se dirigida ao seu filho, mesmo depois de Franklin ter cortado relações com ele e decidido publicar o texto; o público da autobiografia resulta crucialmente distinto de seu destinatário. É claro que se pode distinguir, neste caso, entre o destinatário nominal e o destinatário implícito, mas é igualmente possível distinguir entre um destinatário implícito da retórica e um público-alvo de circulação. Que estes não sejam idênticos é o que permite às pessoas moldar o público ao abordá-lo de uma determinada maneira. Isto também permite que estas pessoas falhem, no caso de um destinatário da retórica não ser captado como o reflexo de um público.

O sentido de que um público seja uma restrição mundana no discurso, e não apenas uma criação livre desse discurso, dá credibilidade à abordagem contrária das ciências sociais. A natureza auto-organizada do público não significa que ele deva ser sempre espontâneo ou que organicamente expresse os desejos dos indivíduos. Embora a premissa do discurso auto-organizado seja necessária ao artefato cultural peculiar que chamamos de um público, é contradita tanto pelos limites materiais - meios de produção e distribuição, objetos textuais físicos, condições sociais de acesso - como por outros internos, incluindo a necessidade de pressupor formas de inteligibilidade já em vigor, bem como a clausura social acarretada por qualquer seleção de gênero, idioleto, estilo, abordagem, e assim por diante. Voltarei a essas restrições de circulação. No momento eu quero enfatizar que elas parecem arbitrárias em função da performatividade do discurso destinado a um público e da auto-organização implícita na ideia de um público.

Outra maneira de dizer o mesmo é que qualquer extensão empírica do público vai parecer arbitrariamente limitada, justamente porque o destinatário do discurso público está sempre ainda por realizar-se. Em alguns contextos da fala e da escrita, tanto o destinatário retórico quanto o público têm um referente empírico bastante claro: em correspondências e na maior parte dos e-mails, nos relatórios e memorandos que tramitam nos escritórios, em bilhetes de amor e cartões de dia dos namorados ou nas cartas que iniciam por “querido fulano...”, se entende que o objeto de endereçamento é uma pessoa ou conjunto de pessoas identificáveis. Mesmo que esse destinatário seja um ente público ou genérico – por exemplo, um comitê pessoal, um Congresso ou uma congregação de igreja -, é definido, conhecido, nomeável e quantificável. A interação é demarcada por uma relação social.

Mas em outras chaves e contextos de escrita - incluindo a crítica literária, jornalismo, teorias, propaganda, ficção, drama, a maior parte da poesia - os destinatários disponíveis são essencialmente imaginários, o que não quer dizer que sejam irreais: o povo, academia, a república das letras, posteridade, a geração mais jovem, a nação, a esquerda, o movimento, o mundo, a vanguarda, os pouco ilustrados, as “pessoas de bem” em toda parte, a opinião pública, a irmandade de todos os crentes, a humanidade, meus colegas queers. Todos estes são públicos. Eles são, em princípio, abertos. Eles existem em virtude de serem destinatários.

 

2) Um público é uma relação entre desconhecidos.

Outros tipos de escrita - escrita que tem um destinatário definido, que pode ser conhecido com antecedência - podem, é claro, extraviar-se. Escrever para um público incorpora esta tendência da escrita ou da fala como uma condição de possibilidade. Mas aí não se trata exatamente de um extravio, tendo em vista que alcançar desconhecidos é a orientação primária da escrita. Na modernidade, essa concepção de público é melhor ilustrada nos usos da mídia impressa ou eletrônica, mas também pode ser estendida para cenários de fala audível, isso no caso dessa fala ser orientada a desconhecidos indefinidos, uma vez que o horizonte crucial da "opinião pública" e seu imaginário social tenha sido disponibilizado. Nos tornamos capazes de reconhecer-nos como estranhos, mesmo quando nos conhecemos uns aos outros. Declamando este ensaio a um grupo de pessoas íntimas, eu ainda poderia ser ouvido como dirigindo-me a um público.

Uma vez que este tipo de público se apresenta como um imaginário social, devo acrescentar, a sociabilidade entre desconhecidos adquire inevitavelmente um caráter diferente. Na sociedade moderna, um estrangeiro não é tão maravilhosamente exótico como um nômade errante o teria sido em uma cidade antiga, medieval, ou mesmo numa cidade moderna. Nestas sociedades antigas, ou em análogas contemporâneas, um estrangeiro é misterioso, uma presença inquietante exigindo resolução[3]. No contexto de um público, no entanto, os desconhecidos podem ser tratados como já pertencentes ao nosso mundo. Mais: eles devem ser. Estamos rotineiramente orientados para eles na vida comum. Eles são uma característica normal do social. Os desconhecidos, no sentido antigo do termo – estrangeiro, alienígena, deslocado -, poderiam naturalmente fazer parte da cristandade, da ummah, de uma guilda ou de um exército - afiliações que se poderia partilhar com desconhecidos, tornando-os um pouco menos estranhos. Os desconhecidos alocados nestas filiações estão em um caminho de comunalidade. Os públicos nos orientam aos desconhecidos de uma maneira diferente. Eles não são mais apenas as pessoas-ainda-não-conhecidas; em vez disso, um ambiente de estranheza é a premissa necessária de alguns de nossos mais apreciados modos de ser. Enquanto os desconhecidos precisam estar em um caminho para o comum, em formas modernas a estranheza é o meio necessário de uma condição coletiva. O imaginário social moderno não faz sentido sem desconhecidos. Uma nação, um público ou um mercado em que todos pudessem ser conhecidos pessoalmente não seriam uma nação, um público ou um mercado afinal. Este ambiente constitutivo e normativo de estranheza é mais, também, que uma Gesellschaft[4] objetivamente descritível; ele requer nossa imaginação constantemente.

 

3) O destinatário do discurso público é ao mesmo tempo pessoal e impessoal.

O discurso público pode ter grande urgência e um significado íntimo. No entanto, sabemos que ele foi dirigido não exatamente para nós, mas para o desconhecido que éramos até o momento em que passamos a ser destinatários dele. (Eu estou pensando aqui em qualquer gênero dirigido a um público, incluindo romances e letras de músicas, bem como a crítica, ou outra prosa não-ficcional, e quase todos os gêneros de discursos de rádio, televisão, filmes e internet.) Habitar o discurso público implica em protagonizar esta transição continuamente, e em certa medida, isto permanece presente na consciência. O discurso público deve ser tomado de duas maneiras: como dirigido a nós e como dirigido a desconhecidos. O benefício nesta prática é que confere uma relevância social geral ao pensamento e à vida privada. Nossa subjetividade é entendida como tendo ressonância com outras, e de forma imediata. Mas isso só é verdade na medida em que o traço da nossa estranheza continua presente na nossa compreensão de nós mesmos como os destinatários.

Este elemento necessário de impessoalidade no endereçamento do público é uma das coisas que se perdem na noção althusseriana de interpelação, ao menos como é atualmente entendida. O famoso exemplo de Althusser é a fala dirigida a um desconhecido: um policial diz - "Ei, você!" No momento de reconhecer a si mesmo como o destinatário, no momento de olhar para trás, alguém é interpelado na qualidade sujeito do discurso estatal[5]. A análise de Althusser tinha a virtude de mostrar a importância da identificação imaginária, e localizá-la não na força coercitiva ou punitiva do Estado, mas na prática subjetiva da compreensão. Quando o modelo de interpelação é extraído a partir de exemplos como esse para explicar a cultura pública em geral, a análise será distorcida, pois o caso de Althusser não é um exemplo de discurso público. Um policial que diz: "Ei, você!" será percebido como se dirigindo a uma determinada pessoa, não a um público. Quando alguém se volta para trás, é em parte para verificar se é a pessoa em questão. Se não for, a pessoa segue seu caminho. Se assim for, então todas as outras pessoas que possam estar em pé na rua são espectadores, e não destinatários. Com a fala pública, por outro lado, podemos nos reconhecer como destinatários, mas é igualmente importante lembrarmos que a fala foi dirigida a pessoas indefinidas; que ao nos singularizar não o faz com base na nossa identidade concreta, mas apenas em virtude da nossa participação no discurso e, portanto, no que temos em comum com os desconhecidos. Não se trata de sermos abordados em público por sermos um determinado tipo de pessoa, ou que possamos não querer ser identificados como este tipo de pessoa (embora isso também seja muitas vezes o caso, como quando o público é tratado como heterossexual, branco, interessado em esportes ou americano). Não é exatamente o caso de termos sido identificados incorretamente. Parece mais o caso de dizer que públicos são diferentes de pessoas, que endereçar uma retórica pública nunca vai ser o mesmo que endereçar a pessoas reais, e que a nossa não-identidade parcial com o objeto de endereçamento na fala pública parece ser parte do que significa considerar algo como discurso público.

O apelo a desconhecidos nas formas circulantes de endereçamento ao público, portanto, ajuda-nos a distinguir o discurso público das formas de abordagem a determinadas pessoas em sua singularidade. Resta esclarecer melhor como um público poderia ser traduzido em uma imagem do público, como uma entidade social. Quem é o público? Será que inclui os meus vizinhos? O porteiro do meu prédio? Os meus alunos? As pessoas que circulam nos clubes e bares gays? Os proprietários da bodega da minha rua? Alguém que me liga no telefone, ou me envia um e-mail? Vocês? Encontramos pessoas em tantos contextos díspares que a ideia de um corpo ao qual todas elas possam pertencer, e no qual possam ser destinatárias do discurso, parece ter algo de desejável. Para dirigir-nos a um público não saímos por aí dizendo a mesma coisa para todas as pessoas. É como se disséssemos coisas num local de endereço indeterminado, esperando que as pessoas se encontrem ali. A diferença pode ser uma fonte de frustração, mas também é uma implicação direta da auto-organização do público como um corpo de desconhecidos unidos através da circulação de seu discurso, sem a qual o endereçamento público não teria sua importância especial para a modernidade.

 

4) Um público é constituído meramente pela atenção.

Se pressupõe que a maioria das classes e grupos sociais deva abranger seus membros o tempo todo, não importa a circunstância. Uma nação, por exemplo, inclui seus membros tanto se eles estiverem dormindo quanto acordados, sóbrios ou bêbados, sãos ou dementes, alertas ou em estado de coma. Já um público, uma vez que existe apenas em virtude de seu endereçamento, requer algum grau de atenção, mesmo que nocional, por parte de seus membros.

A qualidade cognitiva desta atenção é menos importante do que o mero fato da captação ativa. A atenção é a principal categoria de classificação pela qual membros e não membros são discriminados. Se você está lendo isso, ou ouvindo, ou vendo, ou presente diante disso, você faz parte deste público. Você pode estar fazendo várias coisas ao mesmo tempo no computador; a televisão pode estar ligada enquanto você estiver aspirando o tapete; ou você pode ter passado pelo campo de audição de um orador em uma sala de convenções, apenas porque ele estava no seu caminho para o banheiro. Não importa: ao entrar neste campo você cumpre a única condição de ingresso exigida por um público. É possível até mesmo compreendermos alguém dormindo durante um espetáculo de balé como um membro do público deste balé, porque a maioria das performances de balé contemporâneo é organizada como eventos voluntários, abertos a qualquer pessoa disposta a assistir ou, na maioria dos casos, a pagar para assistir. O ato de atenção envolvido na apresentação é suficiente para criar um público endereçável. Mas é indispensável algum tipo de captação ativa, mesmo que sonolenta.

A existência de um público é contingente da atividade de seus membros, seja nocional ou comprometida, e não da classificação categórica de seus membros, da posição objetivamente determinada que ocupam na estrutura social ou existência material. No autoconhecimento que os faz funcionar como tais, os públicos assemelham-se assim ao modelo de associação voluntária que é tão importante para a sociedade civil. Desde o início do período moderno cada vez mais instituições têm se conformado a este modelo. A velha ideia de uma igreja nacional estabelecida, por exemplo, permitiu à Igreja dirigir-se ela mesma aos membros letrados ou iletrados, virtuosos ou viciosos, competentes ou idiotas. Cada vez mais, as igrejas se veem inseridas em um mundo de múltiplas denominações, tendo de pensar a si mesmas não como a porção constituída de seus membros. Em lugar disso, elas a todo tempo se empenham em saudar os recém-chegados, buscando manter um rol de membros e solicitando sua atenção. Algumas ênfases doutrinárias, como aquelas sobre a fé ou a conversão, possibilitam que as igrejas orientem a si mesmas a esta captação ativa, da qual são cada vez mais dependentes.

Ainda assim, alguém pode juntar-se a uma igreja e, em seguida, parar de frequentá-la. Em alguns casos, pode-se inclusive nascer no seio de uma Igreja. Públicos, por outro lado, carecem de uma institucionalidade, começam a partir do momento de atenção, têm de predicar continuamente uma atenção renovada, e deixam de existir quando a atenção não é mais predicada. Eles são entidades virtuais, e não associações voluntárias. No entanto, em função de seu limiar de pertencimento ser uma posição ativa, eles podem ser entendidos dentro do quadro conceitual da sociedade civil; ou seja, como tendo uma filiação livre, voluntária e ativa. Onde quer que se evoque o caráter liberal da personalidade, o momento de tomada de posição que constitui um público pode ser visto como uma expressão da vontade dos seus membros. E este fato tem consequências enormes. Ele nos permite compreender os públicos como situações de autoatividade, de pertença histórica ao invés de intemporal, e de participação ativa ao invés de pertença adscrita. Sob as condições corretas, ele ainda nos permite atribuir a faculdade de agente a um público, mesmo que esse público careça de institucionalidade ou manifestação concreta.

O discurso público implora por atenção como uma criança. Textos clamam por nós. Imagens solicitam a nossa contemplação. Olhe aqui! Ouça! Ei! Ao fazê-lo, de modo algum nos tornam passivos. Pelo contrário. O sistema moderno de públicos cria uma fenomenologia social exigente. A nossa vontade de processar um apelo passageiro determina a que públicos pertencemos, e leva a cabo a sua extensão. A experiência da realidade social na modernidade resulta muito diferente daquelas de sociedades organizadas por laços de parentesco, status hereditário, filiação local, acesso político mediado, natividade paroquial ou ritual. Nessas configurações, o lugar que alguém ocupa na ordem comum é o que é independentemente de seus pensamentos, por mais intensa que algumas vezes sua carga afetiva possa ser. A energia apelativa dos públicos nos impõe uma carga diferente: ela nos faz crer que a nossa consciência pode ser decisiva. A direção do nosso olhar pode constituir o nosso mundo social.

Os temas que discuti até agora - a auto-organização dos públicos por meio do discurso, sua orientação em direção aos desconhecidos, a ambiguidade resultante do endereçamento pessoal e impessoal, a adesão como membro através da mera atenção - podem ser esclarecidos se nos lembrarmos de sua suposição comum, que percorre um longo caminho para explicar o desenvolvimento histórico dos outros temas:

 

5) Um público é o espaço social criado pela circulação reflexiva do discurso.

Esta dimensão é fácil de esquecer se pensarmos apenas em um evento de fala envolvendo orador e destinatário. Nesse intercâmbio localizado, a circulação pode parecer irrelevante, estranha. Essa é a razão pela qual os modelos de comunicação pública emissor/receptor ou autor/leitor são tão enganosos. Não existe um único texto que possa criar um público. Nem uma voz única, um único gênero, ou mesmo um único meio poderiam. Todos são insuficientes para criar o tipo de reflexividade que chamamos de um público, uma vez que este se entende como um espaço contínuo de encontro para o discurso. Textos por si só não criam públicos, mas sim a concatenação dos textos ao longo do tempo. Um texto pode ser destinado a um público somente quando um discurso previamente existente pode ser suposto, e quando um discurso responsivo pode ser postulado.

Entre o discurso que vem antes e o discurso que vem depois é preciso postular algum tipo de vínculo. E esse vínculo possui um caráter social; não é mera consecutividade no tempo, mas um contexto de interação. A maneira usual de imaginar o caráter interativo do discurso público se dá através de metáforas de conversação, da resposta, da réplica, deliberando. A relação social interativa de um público, em outras palavras, é percebida como se fosse uma relação entre falante/ouvinte ou autor/leitor. Discussão e polêmica, como gêneros dialógicos manifestos, continuam a ter um papel privilegiado na autocompreensão dos públicos. De fato, é notável que bem poucos trabalhos, mesmo nas formas mais sofisticadas da teoria, têm sido capazes de separar o discurso público de sua autocompreensão como conversação[6]. Ao abordar um público, no entanto, até mesmo textos de maior rigor argumentativo e dialógico dirigem-se também a espectadores, não apenas a partícipes da discussão. Eles tentam caracterizar o campo de interação possível. Quando aparecem em um campo público, gêneros como a discussão e a polêmica têm de adequar-se às condições especiais de endereçamento público; o interlocutor agonístico é colocado lado a lado com interlocutores passivos, inimigos declarados com estranhos indiferentes, partes abertas a uma situação de diálogo com partes cuja localização textual pode estar alhures, em outros gêneros ou cenas de circulação. O significado de qualquer expressão vocal depende do que é conhecido e antecipado por todas estas diferentes origens discursivas. Na discussão pública ou na polêmica, o ato principal é o de projetar o próprio campo de discussão - seus gêneros, a sua gama de circulação, suas participações, o seu idioma, seu repertório de agências. Qualquer posição é reflexiva, não apenas se autoafirmando, mas caracterizando sua relação com outras posições até os limites da cena de circulação imaginada. A relação interativa postulada no discurso público, em outras palavras, vai muito além da escala de conversação ou discussão, para abranger um mundo da vida multigenericamente organizada não apenas por um eixo relacional de enunciação e resposta, mas por eixos potencialmente infinitos de citação e caracterização.

 

6) Os públicos atuam historicamente de acordo com a temporalidade da sua circulação.

O tempo pontual da circulação é crucial no sentido de que a discussão atualmente está se desdobrando em uma esfera de atividade. Não é atemporal, como a meditação; nem carece de conteúdo, como a filosofia especulativa. Nem toda circulação acontece no mesmo ritmo, é claro, e isso explica as diferenças dramáticas entre os públicos em sua relação com possíveis cenas de atividade. Um público só pode agir na temporalidade da circulação que lhe dá existência. Quanto mais pontual e abreviada for a circulação, e quanto mais o discurso indexar a pontualidade de sua própria prática, mais próxima de um público fica a política. Nos ritmos mais longos ou nos fluxos contínuos, a ação se torna mais difícil de imaginar. Esta é a sina dos públicos acadêmicos, um fato pouco compreendido quando acadêmicos afirmam intencionalmente ou por proclamação que estão fazendo política. Na modernidade, a política toma muito do seu caráter de uma temporalidade como a das manchetes jornalísticas, não como a do arquivo.

Os públicos têm uma vida em curso: não se publica algo para um público de forma definitiva (como se faz, digamos, com um artigo acadêmico). É a maneira como os textos circulam, o que constitui a base para novas observações, que nos convence de que os públicos têm atividade e duração. Um texto, para ter um público, deve continuar a circular através do tempo, e por isso só pode ser confirmado através de um ambiente de citação intertextual e implicação; todos os públicos são intertextuais, mesmo os intergenéricos. Isso muitas vezes se perde de vista, porque a atividade e duração dos públicos são comumente estilizadas como a conversa ou uma tomada de decisão. Eu já sugeri que estas são ideologizações enganosas. Agora podemos ver por que elas são ilusões duráveis: porque conferem agência aos públicos. Não existe um momento em que a conversa pare e uma decisão siga, com exceção das eleições, que são conduzidas apenas por quadros jurídicos, e não pelos próprios públicos. No entanto, a ideologização é crucial no sentido em que os públicos atuam em uma temporalidade secular. Para sustentar esse sentido, o discurso público articula-se no tempo com os momentos de sua publicação e circulação.

Uma maneira através da qual a internet e outras novas mídias podem estar mudando profundamente a esfera pública, por sinal, é a da mudança que implica na temporalidade. Formas de circulação altamente mediadas e capitalizadas estão cada vez mais organizadas como contínuas (“acesso 24 horas do dia, 7 dias por semana”) ao invés de pontuais[7]. No momento da escrita deste texto, o discurso da internet tem muito pouco do campo citacional que nos permitiria falar dele como desdobramento de um discurso através do tempo. Uma vez que se disponibiliza um site, pode ser difícil dizer o quão recentemente algo foi postado ou atualizado, ou por quanto tempo continuará disponível. A maioria dos sites não são arquivados ou indexados de forma centralizada. O aparato reflexivo do discurso da internet consiste principalmente em links de hipertexto e sites de busca, e estes não são pontuais. Assim, embora haja exceções, incluindo a migração de alguns periódicos impressos para o formato eletrônico e o uso bem-sucedido da internet por parte de alguns movimentos sociais, ainda não está claro até que ponto a tecnologia em transformação será assimilável ao quadro temporal do discurso público[8]. Se a mudança de infraestrutura continuar nesse ritmo, e se os modos de apreensão mudarem em conformidade a ela, a ausência de ritmos pontuais pode tornar muito difícil conectar atos localizados de leitura com os modos de atuação no imaginário social da modernidade. Pode até mesmo ser necessário abandonar a "circulação" como categoria analítica. Mas aqui eu meramente ofereço este tema para especulação.

 

7) Um público é a feitura de mundo poético.

Em um público, o endereçamento indefinido e o discurso auto-organizado revelam um mundo vivido, cujo encerramento arbitrário permite o próprio discurso ao mesmo tempo em que está em contradição com ele. O discurso público, na natureza de seu endereçamento, abandona a segurança de sua audiência positiva e dada. Ele promete dirigir-se a alguém. Compromete-se, em princípio, com a possível participação de qualquer desconhecido. E, portanto, coloca em risco o mundo concreto que é a sua condição de possibilidade dada. Esta é a sua perversidade frutífera. O discurso público postula um campo circulatório de estranhamento, o qual ele se esforçará por capturar como uma entidade endereçável. Nenhuma forma com uma estrutura deste tipo poderia ser muito estável. O caráter projetivo do discurso público, em que cada caracterização do trajeto circulatório torna-se material para novos estranhamentos e recaracterizações, é um motor (não necessariamente progressivo) de mutação social.

O discurso público, em outras palavras, é poético. Com isso quero dizer não apenas que é auto-organizado, ou uma espécie de entidade criada pelo seu próprio discurso, nem mesmo que este espaço de circulação é levado a ser uma entidade social, mas que, para que isso aconteça, todo discurso ou performance dirigidos a um público devem caracterizar o mundo em que eles aspiram circular, e devem tentar tornar real este mundo através do endereçamento[9].

Não existe discurso ou performance dirigidos a um público que não tentem especificar antecipadamente, de inúmeras maneiras altamente condensadas, o mundo vital de sua própria circulação: não apenas através de suas pretensões discursivas - do modo como pode ser dito para orientar a compreensão - mas também através da pragmática de seus gêneros de discurso, expressões idiomáticas, marcadores estilísticos, endereçamento, temporalidade, mise en scène, campo citacional, protocolos de interlocução, léxicos, etc. Seu destino circulatório é a realização desse mundo. O discurso público diz não apenas: "Haja um público", mas também "que possa ter este caráter, falar desta forma, ver o mundo desta maneira”. Em seguida, ele sai em busca da confirmação de que esse público existe, com maior ou menor êxito – sendo este êxito toda tentativa de citar, pôr em circulação e perceber o mundo compreendendo suas articulações. Hastear a bandeira e ver quem a saúda. Produzir um show e ver quem aparece.

Esta dimensão performativa do discurso público, no entanto, é comumente reconhecida de forma incorreta. O discurso público subjaz à necessidade de abordar o seu público como pessoas reais já existentes. Ele não pode trabalhar declarando francamente seu projeto subjuntivo-criativo. Seu êxito depende do reconhecimento dos participantes e de sua posterior atividade circulatória, e as pessoas normalmente não se reconhecem como projeções virtuais. Elas se reconhecem apenas como sendo já destinatárias, pertencentes ao mundo que é condensado em seus discursos.

A função poética do discurso público é reconhecida erroneamente também por uma segunda razão, já mencionada acima em outro contexto: na tradição dominante da esfera pública, o endereçamento para um público é ideologizado como diálogo racional-crítico. A circulação do discurso público é imaginada de uma forma consistente, tanto na teoria popular quanto na mais sofisticada filosofia política, como diálogo ou discussão entre os interlocutores já presentes. A imagem dominante é algo como a de um parlamentar discursando na tribuna. Eu já havia observado que esta teoria popular favorece que a circularidade constitutiva de públicos desapareça da consciência, porque públicos são pensados para serem pessoas reais em interações diádicas entre autor/leitor, ao invés de uma circulação multigênero. Também tenho notado que a mesma ideologização permite a ideia de que os públicos possam ter a qualidade de agência volitiva: eles existem para deliberar e depois decidir. Aqui, a questão é que a percepção do discurso público como uma conversa obscurece a importância das funções poéticas, tanto da linguagem quanto da expressividade corporal, em dar uma forma particular para os públicos. Neste caso, o público é pensado para existir empiricamente, e para exigir a persuasão ao invés de poiesis. A circulação pública é entendida como uma discussão racional em larga escala.

Este desconhecimento constitutivo dos públicos se baseia em uma ideologia de linguagem particular. O discurso é entendido como sendo resumível em proposições; as qualidades poéticas ou textuais de qualquer elocução são desconsideradas em favor do sentido. Também atos de leitura são entendidos como replicáveis e uniformes[10]. Assim sucede com as opiniões, razão pela qual a leitura privada parece estar diretamente conectada ao poder soberano da opinião pública. Assim como o sentido pode ser resumido em proposições, as opiniões podem ser mantidas, transferidas, reformuladas indefinidamente. (O papel essencial desempenhado por este tipo de transposição no imaginário social moderno pode ajudar a explicar por que a filosofia moderna tem sido obcecada com a semântica referencial e com a fixidez.) Outros aspectos do discurso, incluindo o afeto e a expressividade, não são fungíveis da mesma forma. Sem dúvida, o desenvolvimento de tal ideologia da linguagem ajudou a possibilitar a existência de confiança na sociabilidade com o desconhecido, que é própria da circulação pública. Desconhecidos são menos desconhecidos se você pode confiar neles para ler como você lê, ou se o sentido do que eles dizem pode ser totalmente abstraído da maneira como eles o dizem.

Eu também suspeito que o desenvolvimento do imaginário social de públicos, como uma relação entre desconhecidos projetada a partir de leituras particulares de textos em circulação, tem exercido nos últimos três séculos uma poderosa força sobre a concepção do ser humano, elevando as faculdades do leitor privado, ou o que se entende como tal, à condição de faculdades essenciais (racional-críticas) ao homem. Se vocês conhecem e estão intimamente ligados a estranhos apenas por meio da leitura, opinião, argumentação e testemunho, então pode parecer natural que outras faculdades passem para um segundo plano, abandonando os níveis mais altos de pertença social. A hierarquia moderna das faculdades e o imaginário social estão mutuamente implicados. O discurso crítico do público corresponde, como soberano, ao poder superintendente do Estado. Assim, as dimensões da linguagem eleitas na ideologia da discussão racional-crítica adquirem prestígio e poder. Os públicos mais abertamente orientados em sua autocompreensão para as dimensões poético-expressivas da linguagem, incluindo os públicos artísticos e muitos contrapúblicos, carecem de poder para transpor-se à generalidade do Estado. Ao longo de toda a cadeia de equações na esfera pública - de atos privados de leitura ou cenas discursivas a um horizonte geral de opinião pública e sua oposição crítica ao poder do Estado -, a pragmática do discurso público deve se tornar sistematicamente imperceptível.

A unidade do público depende da estilização do ato de leitura como transparente e replicável; depende de uma clausura social arbitrária (através da linguagem, idioleto, gênero, mídia e endereçamento) para conter sua extensão potencialmente infinita; depende de formas institucionalizadas de poder para realizar a agência atribuída ao público; e depende de uma hierarquia de faculdades que permite que algumas atividades contem como públicas ou gerais, enquanto outras são pensadas como sendo meramente pessoais, privadas ou particulares. Alguns públicos, por estas razões, têm uma probabilidade maior do que outros para representar o público, para enquadrar o seu endereçamento como o debate universal do povo.

Mas, e quanto aos públicos que não fazem qualquer tentativa de apresentar-se desta maneira? Os seus membros são entendidos não apenas como sendo um subconjunto do público, mas sim constituídos através de uma relação conflituosa com o público dominante. Eles são estruturados por disposições ou protocolos diferentes daqueles que se obtêm em outros terrenos da cultura, fazendo suposições diferentes sobre o que pode ser dito ou o que não é preciso dizer. No sentido do termo que eu estou defendendo aqui, tais públicos são contrapúblicos, em um sentido mais forte do que a simples inclusão de subalternos em um programa de reformas. Um contrapúblico mantém em algum nível, consciente ou não, a noção de sua condição subordinada. O horizonte cultural ao qual ele se contrapõe não é apenas um público em geral ou mais amplo, mas um dominante. E o conflito não se estende apenas às ideias ou questões políticas, mas aos gêneros do discurso e modos de elocução que constituem o público, ou à hierarquia entre os distintos meios de comunicação. O discurso que o constitui não é meramente um idioma diferente ou alternativo, mas algo que em outros contextos seria considerado com hostilidade, ou com um senso de indecência.

Como todos os públicos, um contrapúblico passa a existir através de um endereçamento a desconhecidos indefinidos. (Esta é uma diferença significativa entre a noção de um contrapúblico e a noção de uma comunidade ou grupo.) Mas o discurso contrapúblico também se dirige aos desconhecidos como não sendo apenas um segmento qualquer. Eles são socialmente marcados por sua participação neste tipo de discurso; presume-se que as pessoas comuns não gostariam de ser confundidas com o tipo de pessoa que pudesse participar neste tipo de conversa, ou estar presente neste tipo de cena. Dirigir-se a desconhecidos indefinidos, em uma revista ou um sermão, tem um significado peculiar quando se sabe de antemão que a maioria das pessoas não vai querer ler uma revista gay ou ir a uma igreja de negros. Em alguns contextos, as trocas de código do bilinguismo podem exercer uma função similar à de manter o horizonte contrapúblico saliente - assim como a fragmentação linguística dos muitos cenários pós-coloniais cria resistência à ideia de um espaço suturado de circulação.

Dentro de um contrapúblico gay ou queer, por exemplo, ninguém está no armário: a heterossexualidade presumida que constitui o armário para indivíduos na fala comum é suspensa. Mas este espaço circulatório, livre de protocolos dos discursos heteronormativos, é ele próprio marcado por essa mesma suspensão: a fala direcionada a qualquer participante como queer irá circular até certo ponto, no qual por certo encontrará resistência intensa. Ela pode, portanto, circular em locais especiais, protegidos, em publicações limitadas. A luta individual com o estigma é transposta, por assim dizer, para o conflito entre modos de caráter público. A natureza expansiva do endereçamento público procurará manter esta fronteira em movimento para um público queer, buscando mais e mais lugares para circular onde as pessoas possam se reconhecer neste endereçamento, mesmo não tendo plena consciência do risco e conflito aí envolvidos.

Em alguns casos, como no do fundamentalismo ou em certos tipos de cultura jovem, os participantes não são subalternos por qualquer outra razão que não a da sua participação no discurso contrapúblico. Em outros, é possível predicar uma identidade socialmente estigmatizada, mas, nesses casos, um público de subalternos é apenas um contrapúblico quando seus participantes são abordados de uma forma contrapública, como, por exemplo, afro-americanos dispostos a falar em um idioma considerado como racialmente marcado. O status de subordinação de um contrapúblico não reflete simplesmente identidades formadas em outros lugares quaisquer; a participação nesse tipo de público é uma das maneiras pelas quais as identidades dos seus membros são formadas e transformadas. Uma hierarquia ou estigma são os fundamentos assumidos na prática. Entra-se nesse terreno por conta e risco próprios.

O discurso contrapúblico é muito mais do que a expressão da cultura subalterna, e muito mais do que alguns Foucaultianos chamam de "discurso reverso". Fundamentalmente mediados por formas públicas, os contrapúblicos incorporam o endereçamento pessoal/impessoal e o estranhamento expansivo das elocuções públicas como a condição de seu mundo comum. Talvez, nada demonstre mais a importância fundamental dos públicos discursivos no imaginário social moderno do que isso - mesmo os contrapúblicos que desafiam a hierarquia social moderna o fazem projetando o espaço de circulação discursiva entre desconhecidos como uma entidade social, e ao fazê-lo forjam suas próprias subjetividades em torno das exigências de circulação pública e sociabilidade entre desconhecidos[11].

 

Download em PDF




[1] Uma avaliação instrutiva dos problemas metodológicos pode ser encontrada em Communications and Public Opinion: A Public Opinion Quarterly Reader, ed. Robert O. Carlson (New York: Praeger, 1975); ver especialmente Floyd D. Allport, "Toward a Science of Public Opinion," 11—26; e Harwood Childs, "By Public Opinion I Mean—", 28—37.

[2] A crítica da pesquisa de opinião aparece em diversos contextos no trabalho de Bourdieu; ver especialmente "Opinion Polls: A 'Science' without a Scientist," em Pierre Bourdieu, In Other Words: Essays Towards a Reflexive Sociology, trad. Matthew Adamson (Stanford: Stanford Univ. Press, 1990), 168—76.

[3] Este antecedente exótico é o tipo de desconhecido que Georg Simmel tem em mente em seu muito citado ensaio de 1908 "The Stranger", em Georg Simmel, On Individuality and Social Forms (Chicago: Univ. of Chicago Press, 1971). Simmel não consegue distinguir entre o estrangeiro como representado pelo comerciante ou o Judeu Errante e o estrangeiro cuja presença na modernidade é normal, mesmo necessária para a natureza das polis modernas. Um dos elementos definidores da modernidade, a meu ver, é a sociabilidade normativa do desconhecido, de um tipo que parece surgir apenas quando o imaginário social não é definido por parentesco (como nas sociedades não-estatais), nem pelo lugar (como nas sociedades estatais até a modernidade), mas sim pelo discurso.

[4] O termo foi mantido em alemão (assim como na versão original de Publics and Counterpublics) em função da relevância de sua discussão para a sociologia, sobretudo a partir da publicação da teoria da contraposição entre comunidade e sociedade, apresentada por Ferdinand Tönnies em Gemeinschaft und Gesellschaft, de 1887. (N. da T.)

[5] Louis Althusser, "Ideology and Ideological State Apparatuses," em Lenin and Philosophy and Other Essays (New York: Monthly Review Press, 1971), 127—86.

[6] Como exemplo de uma análise promissora e rica marcada por este equívoco, ver Nina Eliasoph, Avoiding Politics: How Americans Produce Apathy in Everyday Life (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1998). A ideia declarada, mas não examinada por Eliasoph é a de uma continuidade da discussão, da interação em pequena escala até os mais altos níveis de organização da política.

[7] Eyal Amiran discute a temporalidade da mídia eletrônica, de uma forma que difere substancialmente da minha, em seu "Electronic Time and the Serials Revolution," Yale Journal of Criticism 10 (1997): 445—454.

[8] É difícil avaliar esta transformação não apenas porque os efeitos das transformações no meio ainda não se tornaram visíveis, mas porque a infraestrutura do meio está ela mesma mudando. Sobre isso, a melhor referência que conheço é Lawrence Lessig, Code and Other Laws of Cyberspace (New York: Basic Books, 1999). O livro de Lessig, embora centrado na regulação legal do ciberespaço, também levanta importantes tópicos para uma discussão mais geral das novas mídias e suas implicações sociais.

[9] Até mesmo se o endereçamento é indireto. O estudo mais perspicaz que eu conheço sobre a relação estreita entre uma forma pública e um modo de vida é também um exemplo de implicação indireta de um contexto de recepção por uma forma que se recusa a endereçá-lo completamente: estou pensando em D. A. Miller, Place for Us: An Essay on the Broadway Musical (Cambridge: Harvard Univ. Press, 2000).

[10] Em toda a literatura sobre a história da leitura, o desenvolvimento desta ideologia continua a ser um fenômeno pouco estudado. Adrian Johns faz uma contribuição significativa em The Nature of the Book: Print and Knowledge in the Making (Chicago: Univ. of Chicago Press, 1998), especialmente p. 380—443. O estudo de Johns sugere que a ideia de leitura como um ato privado e dotado de significado replicável para desconhecidos dispersos pelo espaço, surgiu no período que deu origem aos públicos sob a forma moderna analisada aqui; também pode-se achar apoio a esta conjectura em Kevin Sharpe, Reading Revolutions: The Politics of Reading in Early Modern England (New Haven: Yale Univ. Press, 2000); Guglielmo Cavallo e Roger Chartier, eds., A History of Reading in the West (Amherst: Univ. of Massachusetts Press, 1999); e James Raven, Helen Small, e Naomi Tadmore, eds., The Practice and Representation of Reading in England (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1996).

[11] Para um caso limite interessante, ver Charles Hirschkind, "Civic Virtue within Egypt's Islamic Counter-Public”, Cultural Anthropology 16.1 (2001). Hirschkind analisa os modos complexos de comentários e circulação no Egito contemporâneo; o que permanece pouco claro é o grau em que esta emergente e reativa cultura discursiva ainda pode ser chamada de um público.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

Número 0

Número 1

Número 2

Número 3

Número 4

Número 5

Número 6

Número 7

Número 8

Número 9

PP 09 00CAPA3

Número 10


Edição Especial