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Entrevista com Glauco Mattoso

Um: Quando você publicou seu "Jornal Dobrabil", Glauco, como era o clima político e como você foi tocado por ele? Eu sei que você morava no Rio de Janeiro, onde estava ativa a geração mimeógrafo.

GM - Esses rotulos typo "poesia marginal" ou "geração mimeographo" dão uma falsa idéa de homogeneidade, quando, na verdade, eramos auctores que não se engajavam numa eschola esthetica nem numa corrente politica. O que nos unia era a faixa etaria (a casa dos vinte annos na decada de 1970) e a resistencia à dictadura, mas a obra do Chacal differe da do Braulio Tavares, que differe da minha, e assim por deante. Apesar dos ponctos de contacto (edições caseiras/artezanaes, distribuição extracommercial, thematicas contraculturaes, attitudes rebeldes), cada auctor tinha seu estylo e sua personalidade. No meu caso, mais que uma personalidade litteraria, fui construindo um personagem poetico, ou "eu lyrico", como dizem. Minha rebeldia contra o Systema (que começou como postura hippie e virou postura punk) nasceu duma oppressão sexual (fui bullyingado na phase escholar), passou pela repressão politica (censura) e psychologica (tabus fetichistas e sadomasochistas) para culminar na expressão poetica baseada na contradicção entre valores classicos (como a orthographia etymologica e o soneto) e contemporaneos (como a pornographia homoerotica e o ghetto). Por outras palavras, minha contribuição para as causas sociaes minoritarias partiu duma condição individual (deficiencia visual e tendencia homosexual) em direcção a uma solidariedade universal com outros injustiçados pela "vontade divina" ou humana. O momento politico foi meramente circumstancial. O panno de fundo, bem mais amplo, sempre foi a caretice comportamental da sociedade contra um semicego (depois cego total) que não se enquadrava no prototypo politicamente correcto do "portador de necessidades especiaes", aquelle que "supera barreiras" e "dá exemplo de cidadania" como modelo de "boa conducta". Mais que um activista de esquerda ou de direita, a imagem que se esperaria dum cego escriptor era a dum hetero educado, respeitoso e respeitavel, religioso, pae de familia, profissional competente, por ahi, e não dum pervertido e perverso, libertino e libertario, despudorado e desboccado. Tanto na dictadura militar quanto na democracia civil eu seria discriminado como um verdadeiro "queer".

Dois: O Braulio Tavares me contou que um de seus livros foi recusado pelo Jaguar para publicação nas edições que o "Pasquim" promovia. Daí você fez um logotipo semelhante e escreveu Pasolini em vez de Pasquim. Você acha que o Jaguar talvez não tenha percebido o alcance político das questões ligadas aos papéis sexuais e à militância gay?

GM - Você se refere ao meu livro MEMORIAS DE UM PUETEIRO, cuja cappa parodiava o logo da editora Codecri. O facto é que, por traz dum humorismo esquerdizante e apparentemente progressista, o PASQUIM se egualava a outros vehiculos reaccionarios na hostilidade homophobica. Só emquanto collaborei no LAMPEÃO (ao lado de Aguinaldo Silva e Trevisan) me senti à vontade para thematizar meus fetiches, pois, fosse no PASQUIM, fosse em qualquer periodico "nannico" ou "alternativo", a sexualidade "atypica" ainda era vista como desvirtuamento da lucta pela redemocratização, ou seja, um symptoma de "decadencia burgueza" que não condizia com a "causa maior" das classes proletarias, e piriri, pororó.

Três: Você alguma vez teve problemas com a censura?

GM - Com a censura official, não, pois meus textos não passavam pelas redacções da "grande imprensa" (onde havia censores profissionaes patrulhando descaradamente), mas sempre fui boycottado pela censura moralista camuflada de "linha editorial" ou de "politica cultural" das empresas publicadoras de livros, revistas ou jornaes. Desde cedo me convenci de que a unica maneira de não fazer concessões seria editar meus proprios fanzines e livros. Aos poucos até cheguei a ser publicado por sellos independentes, mas o boycotte persistia na midia quando se tractava de ganhar espaço de divulgação. Eventualmente furei taes bloqueios com a ajuda de amigos, mas demorou para que minha imagem de auctor "maldicto" se firmasse tal qual a da Dercy Gonçalves se firmou como "dama pornô". Só para dar uma idéa da censura convencional, em varias occasiões occorreram casos de demissão de jornalistas que me deram espaço durante o regime militar, embora eu proprio não tenha sido intimado a depor na policia, como foram Aguinaldo e Trevisan.

Quatro: Semana passada, em um encontro na Balada Literária, o João Silvério Trevisan disse que nunca poderia ter esperado ver algo da dimensão da Parada Gay. Uma afirmação pública e celebrativa da diversidade sexual. Como você avalia hoje a colaboração de seu trabalho para a causa da diversidade sexual, pensando em um livro tão franco como "Manual do pedólatra amador", "Memórias de um pueteiro" e "Línguas na papa"?

GM - Acho que nenhum de nós anteviu o grau de permissividade em que vivemos agora. Ainda não se pode avaliar até que poncto foram conquistas duma battalha politica ou reconhecimento do mercado ante nosso potencial consumista, mas, seja como for, a litteratura de Trevisan em EM NOME DO DESEJO ou de Mattoso em MANUAL DO PODOLATRA AMADOR foi pioneira e precursora, quer no plano homoerotico, quer no sadomasochista. Nossa posição chronologica é inequivoca, como a de Ney Mattogrosso na musica ou a de Zé Celso no theatro. Cada qual na sua praia, claro.

Cinco: Queria que você falasse um pouco de duas autoras de literatura erótica, Adelaide Carraro e Cassandra Rios. Como era a circulação desses livros durante a ditadura que os colocou no index de livros proibidos, ao lado de livros de militância ideológica de esquerda?

GM - Sou bibliothecario por formação e presenciei a clandestinidade da Adelaide e da Cassandra, que, entretanto, venderam muito e attestaram a hypocrisia desses moralismos officiaes. Mais que litteratas injustiçadas, ellas são mulheres que illustram nossa historia feminista ainda envergonhada. Estamos devendo a ellas muitas theses academicas e biographias não-auctorizadas. Mas as paradas gays e balladas litterarias um dia as reconhecerão como figuras homenageaveis, tal como Dercy merece ser thema de eschola de samba...

Seis: Hoje parece uma anomalia que, em um clima de restrição das liberdades, grupos como Os novos baianos ou o Dzi Croquettes tenham surgido e florescido. Você acha que estaria nesta mesma categoria, isto é, de pessoas que produziram subversão mas não foram alvo de ações repressivas ou perseguições?

GM - Não se pode dizer que taes grupos não tenham sido alvo de perseguição só porque não morreram numa masmorra nem sobreviveram no exilio sob protecção da Amnistia Internacional. Mas encaro os casos delles como o do bobo da corte, cuja irreverencia é tolerada emquanto inoffensiva ao poder do governante. Meu caso, comtudo, é differente. Elles tinham visibilidade e trabalhavam no palco e na industria do entretenimento. Eu tambem sou inoffensivo aos poderes constituidos, mas actuo num plano bem menos massificado que o do showbusiness. Minha litteratura é para um circulo restricto de appreciadores da esthetica "queer". Posso estar mais valorizado neste momento de affirmação da diversidade e da especificidade, mas sempre serei objecto de boycotte em vehiculos massificantes. Nem faço questão, de resto, de ser consumido em larga escala. Prefiro ser 100% obscuro (como calha a um cego) a ser 50% acinzentado, ao gosto do mercado editorial...

 

Entrevista realizada em dezembro de 2013, por Iuri Pereira.