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Trabalho sem obra, obra sem autor: a constituição do comum, Giuseppe Cocco

 

Introdução

No momento de finalizarmos esse artigo, o debate “brasileiro” sobre direitos autorais foi atualizado pela mudança de gestão do Ministério da Cultura (MinC), em função da nomeação de Ana de Holanda, em janeiro de 2011. Figura desconhecida entre os movimentos culturais, a nova ministra tem uma relação – reivindicada e confirmada pelas nomeações que realizou na área de direitos autorais do MinC – de proximidade com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) e os interesses da “classe artística”. Seus primeiros passos no MinC são emblemáticos de uma ruptura radical com a gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Ainda antes de definir suas primeiras iniciativas, a Ministra decidiu suprimir do site do MinC o selo do Creative Commons e anunciou a vontade de rever (em sentido conservador) a Lei dos Direitos Autorais (LDA), que está tramitando no Congresso. Ao mesmo tempo, a composição das secretarias do Ministério confirma ulteriormente a virada, em particular com a introdução de uma nova Secretaria da Economia Criativa. A cultura volta a ser “culta”, “profissional” e nacional.

Se trata de uma inflexão geral e abertamente conservadora. A economia volta a ser “o” eixo que qualifica as outras políticas: aquelas da cultura, mas também as políticas sociais e de educação, com ênfase no ensino técnico. Pior, o que há de “cultural” na economia passará a ser enxergado como um setor específico: justamente aquele onde a economia teria elementos “criativos”. Nessa nova configuração do MinC, o conceito de “criação” funciona como um aparelho de captura. Por um lado, ele qualifica aquelas cadeias produtivas que se caracterizariam por seus conteúdos culturais e constituiriam assim as “economias criativas”, naturalmente com suas “indústrias” criativas. Pelo outro, quando não se trata de “indústria”, o conceito é usado para reafirmar a primazia da figura do artista como Deus ex machina de uma criação que aconteceria de maneira isolada (da relação social) e ex nihilo (de nada). Como não lembrar as reflexões de Walter Benjamin sobre o estatuto da arte e as relações entre estética e fascismo, em particular quando ele lembrava que os “conceitos tradicionais – como a criatividade, a genialidade, o valor eterno e secreto” conduzem ao fascismo, à estética do fascismo.

A indústria criativa (cultural) e aos vários clusters criativos devem ser proporcionados subsídios estatais adequados. Ao artista “criador” deverá ser garantido um direito (autoral) tão inquebrantável quanto o estatuto divino (transcendente) atribuído a ele: assim, a nova diretora de “direitos autorais” acha normal que o ECAD não possa ser fiscalizado pelo Estado. A aliança de interesses é evidente: o Estado deve subsidiar as “indústrias” e submeter-se à transcendência superior do criador, figura “divina”.

Nesse panorama, a métrica do valor já é dada. A “cultura” volta a ser o enfeite que sempre foi, vista na perspectiva da “economia”. Aqui, reencontramos o novo lema do Governo Federal: “País rico é país sem pobreza”. De repente, ser “rico” é um valor (moral) cuja única limitação seria a existência – externa a ele – da pobreza. A solução da pobreza está dada: tornar-se rico. Apena se trata de implementá-la. Contudo, essa inesperada virada conservadora nos obriga a um pensamento mais profundo dos efetivos desafios que atravessam a questão da cultura e da arte diante das novas condições materiais de sua produção (as redes digitais) e ao capitalismo contemporâneo (organizado em rede).

A excessiva ênfase na evolução tecnológica precisa ser atravessada pela análise das contradições e dos paradoxos a partir do ponto de vista do trabalho. Nossa reflexão sobre “direitos autorais e redes” se organiza em 4 partes. São elas: uma reflexão inicial sobre o “Estatuto da cultura no capitalismo contemporâneo”; em seguida, um aprofundamento da relação entre trabalho e virtuosismo num horizonte de trabalho sem obra; o desdobramento sucessivo diz respeito à crise do emprego e às relações paradoxais que se abrem entre precariado e soberania do artista; enfim, abriremos para um debate geral sobre os desafios do modelo de produção antropogenético e a sociedade pólen.

 

1- O estatuto da cultura no capitalismo contemporâneo

 

Produção de conhecimento por meio de conhecimento

No capitalismo contemporâneo, o papel do conhecimento mudou radicalmente. Se a modernidade industrial foi baseada no uso intensivo do conhecimento para a produção de bens, no regime de acumulação da pós-modernidade o uso do conhecimento se dá para produzir outros conhecimentos (produção de conhecimento por meio de conhecimento). O cerne de nossa reflexão diz respeito ao conhecimento enquanto recurso chave desta produção contemporânea. Logo, aparecem duas importantes linhas de reflexão: a da “crise do valor” e a dos esforços de framing, de construção de um novo horizonte de valoração. Por um lado, precisamos lidar com o desaparecimento da métrica vigente (aquela do paradigma industrial, da produção de mercadorias por meio de conhecimento). Por outro, trata-se de apreender as condições nas quais se define um marco (frame), uma nova unidade de medida adequada ao paradigma (pós-industrial) da produção de conhecimento por meio de conhecimento.

 

Os termos do deslocamento estão definidos:

  • Na modernidade industrial, o conhecimento funcionava como uma racionalidade instrumental voltada a um fim: a produção de bens. A objetivação do conhecimento em um bem funcionava como padrão de valor. Nos mesmos termos, o trabalho que era definido como produtivo era aquele, material, produtor de mais-valia: de um bem separado da práxis de sua produção. A métrica (o valor) se organizava em torno de um trabalho que quantificava a “obra (o bem) e o qualificava, em retorno;
  • Na produção de conhecimento por meio de conhecimento, a produção não é mais atividade instrumental voltada a um fim, mas contém seu fim dentro dela mesmo, como atividade reflexiva: o conhecimento deve produzir sua própria significação, criando um mundo: o framing é uma criação de mundos (world making).

 

Avançando na reflexão sobre esses deslocamentos, cruzamos essas duas linhas de reflexão na perspectiva da antropologia. Dentro dessas transformações paradigmáticas, assistimos como que há uma aceleração das transformações antropológicas, no sentido que o afirma Michel Serres (2001) em Hominescência: “nós já não somos mais os mesmos homens, já vivemos na quadra seguinte”. A intensidade da transformação antropológica leva alguns economistas (Marazzi, Vercellone, 2008) a retomar a profecia marxiana para dizer que, na passagem do capitalismo industrial para o capitalismo cognitivo (depois do interregno “pós-fordista”), afirma-se um modelo antropogenético: por trás da produção de conhecimento por meio de conhecimento temos realmente uma produção do homem por meio do homem. O conhecimento do qual estamos falando é mesmo uma nova dimensão antropológica do capitalismo e, nesse sentido, “cultural”.

 

Do “modo” de produção à produção de mundos: a crise da métrica

Por que fala-se de capitalismo “cognitivo”? Porque a dimensão “cognitiva” faz contraponto com aquela de “informação”: a economia política neoclássica mobiliza a noção de informação como algo natural, imaterial e homogêneo, que cria um conhecimento objetivo do real como base de referência a escolhas, que desta maneira serão racionais, baseadas em um cálculo. No capitalismo contemporâneo, marcado por incerteza e singularização dos produtos, dos produtores e dos consumidores, os mercados ignoram a informação porque ela é substituída pelo conhecimento: a escolha se torna o fato de uma atividade reflexiva de julgamento, e não uma arbitragem instrumental a partir dos preços.

A informação permitia instaurar um mesmo mundo que os atores compartilhavam com base na mensurabilidade e equivalência generalizada: aquela dos preços. A informação é a característica de base de um conhecimento funcional à produção de bens com base na subordinação do trabalho vivo (capital variável) pelo trabalho morto (o capital fixo).

O conhecimento diz respeito a uma multiplicidade de mundos. O que caracteriza o conhecimento é de ser uma produção de mundos. O cálculo (quantitativo − informacional) deve “fazer as contas” com o julgamento (qualitativo − comunicativo): os saberes sociais, longe de serem unitários e indiscutíveis, são múltiplos e controvertidos. Será o julgamento, ou seja, uma atividade reflexiva de world making, por meio de sua dimensão comunicativa, que juntará a singularidade e o conjunto, o valor e o conhecimento: “Quando o mercado inclui a diversidade qualitativa das obras humanas e a diversidade qualitativa dos critérios de avaliação, a escolha toma a forma de um julgamento” (Karpik: 2007, p.58-62).

O relatório da comissão sobre a economia do imaterial encomendado pelo Ministério da Fazenda francês apresenta o caso da empresa norte-americana Nike: o custo de produção de seus sapatos esportivos é estimado em não mais de 4% do preço de venda total; o resto é remuneração dos ativos imateriais (marca, pesquisa, patentes e o know how da empresa) (Lévy e Jouyet: 2006, p.12). Enzo Rullani apresenta os mesmos resultados na análise da composição do valor dos bens de consumo: "Se uma armação de óculos custa 70 euros ao consumidor final, seu conteúdo material é igual   – no máximo – a 7 euros (o valor pago à fábrica do produtor manufatureiro)". O bem material (7 euros) é suporte de algo intangível que vale 7 vezes mais. Mas não se trata só disso.

Se o produtor material for chinês, o peso relativo do conteúdo tangível pode cair para 3,5 euros (apenas 5% do valor total). Na direção oposta, se a armação consegue atrelar-se a uma griffe, seu valor final pode ser multiplicado por dois (140 euros), dando lugar a uma mais-valia incomensurável. Estamos, pois, no âmbito da desmedida. De onde vem esse suplemento de valor para o mesmo objeto de consumo? Com certeza não se trata mais da tradicional extração de um tempo de trabalho excedente. Não apenas o conteúdo tangível pesa apenas 5 a 10% do valor pago pelo consumidor final, mas ele gera uma verdadeira "guerra entre pobres" para defender as partes de manufatura (produtoras deste tangível), que se deslocam para procurar manter esse percentual nesse patamar ou baixá-lo (Rullani: 2004, p.13-4).

Na tentativa de oferecer elementos de quantificação do imaterial, o Relatório Lévy-Jouyet propõe uma dupla qualificação dos ativos imateriais e imateriais tecnológicos, dizendo que eles se qualificam por estarem relacionados ao imaginário e à organização. Por suas vez, o relatório propõe uma taxonomia dos ativos e investimentos imateriais em três grandes categorias: (a) Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento e em softwares se traduzem assim em ativos de patentes, know how, design e modelos. (b) Os investimentos (ligados ao imaginário) de propaganda e comunicação se consolidam em propriedade intelectual e marcas. (c) Os investimentos (gerenciais) em educação e formação permanente e outras tecnologias da informação e da comunicação, bem como as despesas de marketing se consolidam, diz o relatório, em capital humano, bases de dados de clientes, fornecedores, assinantes, suportes de venda, cultura gerencial e processos específicos de organização da produção.

Contudo, as três tipologias apresentam limites analíticos importantes, pois continuam usando o antigo paradigma. Elas conseguem distinguir mais os investimentos do que os resultados e, na realidade, a distinção não é nítida ao passo que seus resultados são dificilmente quantificáveis. Com efeito, o relatório do governo francês sobre o imaterial afirma claramente: "Seria errado reduzir o imaterial a determinados setores (...). Com efeito, a lógica do imaterial (...) se difunde para bem além desses setores específicos e envolve hoje a quase totalidade das atividades econômicas" (Lévy e Jouyet: 2006, p.12). Enzo Rullani (2009) também insiste: a economia dos custos e dos investimentos daquela que ele chama a “fábrica do imaterial” diz respeito não a uma firma, mas a uma cadeia produtiva. E a cadeia é o “mínimo”. O próprio Rullani radicaliza, dizendo: “somos todos – grande ou pequenos – capitalistas cognitivos” que tentamos, mesmo sem ter consciência disso, tornar rentável nossos investimentos: aqueles da famílias na educação dos filhos, das firmas em conhecimentos, dos territórios nos recursos culturais e infraestruturais; do Estado que investe em pesquisa e instituições, etc. “Todos juntos, enfim, investimos nas mídias interconectivas e na padronização artificial dos contextos de vida e trabalho”.

Trata-se das próprias relações sociais e políticas que desenham os territórios produtivos e de uma mudança de paradigma que envolve as unidades de medida tradicionalmente utilizadas pelas contabilidades das empresas e das nações: "Apesar de seu caráter central para a criação de valor e o crescimento, a dimensão imaterial da economia esbarra no problema da medida, tanto no nível das empresas quanto no nível macroeconômico" (Lévy e Jouyet: 2006, p.13).

Isso se traduz na desconexão crescente entre o valor das empresas (mercado dos ativos) e o lucro (mercado dos bens): segundo as avaliações de um escritório de análise financeira, o peso do imaterial nos balanços das 120 mais importantes corporações europeias chegava, em 2004, a 71%. Desses, 21% correspondentes à consolidação dos ativos intangíveis (marcas, patentes, quotas de mercado) e 50% ao goodwill, ou seja a parte do "valor" dos ativos (da empresa), que não encontra lastro em nenhum tipo de capital, seja ele material ou imaterial! (Rebiscoul, 2006). Rullani atribui essa situação a um paradoxo (nós poderíamos falar – mais marxianamente − de uma “contradição estrutural”) entre o fato que o conhecimento se torna o cerne da fábrica do imaterial e o fato que essa fábrica se desmaterializa e perde suas dinâmica de valorização. A contradição que faz explodir a métrica diz respeito a uma contagem (contabilidade) de empresa (executada pela firma e dentro de seu perímetro) e uma valorização difusa nas redes sociais e seus territórios.

Para Maurizio Lazzarato (2006), passamos de um “modo de produção” a uma “produção de mundos”, de significações. Nessa perspectiva, o capitalismo cognitivo diz respeito a uma relação direta entre valor monetário e o valor como significação ética e social mais ampla. Mas também nos remete àquele modelo antropogenético, onde a produção de conhecimento por meio do conhecimento aparece como produção do homem por meio do homem, quer dizer, de formas de vida por meio de formas de vida.

Na economia do conhecimento, as mercadorias são produzidas pelo uso do conhecimento como fator primário. O conhecimento é usado nos processos de produção como fator autônomo e incorporado às pessoas, objetos e serviços que contribuem ao resultado produtivo. Ao mesmo tempo, o conhecimento usado para produzir mercadorias é também uma mercadoria, ou seja, um produto que pode ser comprado e vendido no mercado, da mesma maneira que todas as outras mercadorias. O conhecimento se torna o principal fator produtivo, mas também o principal produto. Trata-se de um processo circular, no qual o output (o novo conhecimento conseguido do processo em andamento) deve voltar a gerar suas próprias premissas, reconstruindo as condições de um novo início do ciclo produtivo. Mas o novo conhecimento não apenas deve reproduzir o seu input (o conhecimento anterior). Deve inovar, adaptar, desenvolver o conhecimento anterior para manter ativas as condições que justificam sua propagação e seu novo uso em contextos que são sempre diferentes. Isso porque o fator produtivo (conhecimento) não foi consumido pelo uso, como acontece na produção de mercadorias por meio de mercadorias, onde o output deve repor o input que foi destruído na sua produção.

Sem uma nova métrica, teremos a impressão paradoxal que a propagação da inovação (tida como know how, patentes e segredos industriais) acaba determinando seu duplo desaparecimento. Por um lado, porque se procura mensurá-la onde ela não está. Por outro, a própria operação de mensuração (patentes e segredos industriais) destrói os processos de inovação. O conhecimento até pode ser produzido ou usado por indivíduos isolados, mas ele é indivisível do processo social. Por isso, diremos que o conhecimento não pode ser confinado dentro do circuito proprietário de cada firma, pois sua capacidade de produzir valor depende de modo determinante das externalidades (seja para os custos que para os lucros) (Yann Moulier Boutang, 2007). Cada vez mais, realiza-se a tendência que antecipava o desaparecimento do autor, de uma “obra sem autor”, que acontece em fluxo, por enxameamentos sucessivos e por propagação virótica.

Rullani, Moulier-Boutang, Negri e Lazzarato indicam que a economia do conhecimento diz respeito a processos cognitivos, envolvendo o conjunto dos atores que trocam entre si conhecimento dentro das diferentes fases da cadeia, passando da produção para o uso e a propagação. Isso significa que a presença do conhecimento como recurso chave da produção muda o objeto da economia: a geração de valor não pode mais ser observada no nível da firma; precisamos assumir como novo campo de observação as redes cognitivas e seu sistema complexo de relações entre firmas diferentes e complementares.

 

2 - O trabalho sem obra : trabalho e virtuosismo

 

O valor instrumental do conhecimento (industrial)

No regime de acumulação da grande indústria, trabalho e capital estavam numa relação de interdependência dialética. Era o paradoxo do socialismo na Rússia pós-revolucionária: Lênin queria compatibilizar os “sovietes” (a democracia de base dos conselhos) com a eletricidade e o taylorismo, quer dizer, com a disciplina da grande fábrica. Aqui, a convenção que liga o trabalho ao emprego (industrial) diz respeito a uma relação social de produção que – com base no direito absoluto da propriedade estatal (ou privada) e do controle separado (pelos trabalhadores intelectuais) da ciência aplicada à técnica – faz com que o trabalho vivo (o capital variável) tenha que subordinar-se ao capital fixo (maquinaria, tecnologia: trabalho morto e ciência) para se tornar produtivo.

Esse é também o paradoxo das sociedades “afluentes”, como dizia J.K. Galbraith (1961), quando apontava o fato de que nelas é preciso produzir bens inúteis para poder distribuir renda, pois é o emprego que funciona como dispositivo de distribuição da renda: “Ao passo que nossa energia produtiva (...) serve à criação de bens de pouca utilidade – produtos dos quais é preciso suscitar artificialmente a necessidade por meio de grandes investimentos, sem os quais eles não seriam mesmo demandados – o processo de produção conserva quase integralmente seu caráter de urgência, enquanto fonte de renda”. Os paradoxos são determinados pela contradição entre “valor econômico” e “significação social” da mobilização produtiva. O mecanismo fundamental desse quebra-cabeça é a convenção que nos impõe reduzir o trabalho (atividade de produção social de significação) ao estatuto de emprego assalariado e dependente.   Isso determina a redução da significação social a dois elementos dialéticos: o salário (custo a ser reduzido) e o lucro (objetivo instrumental a ser maximizado). A dinâmica da inovação e de sua mensuração também é influenciada por esse horizonte.

No segundo pós-guerra, durante a hegemonia do fordismo, essas duas dimensões encontravam sua “síntese” na dinâmica do consumo: estatal e militar no caso dos países socialistas, militar e de consumo no caso do bloco ocidental (Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão). Mais estruturalmente, o trabalho vivo (capital variável) não sabia como tornar-se produtivo sem juntar-se ao capital fixo (fosse o da grande indústria estatal ou das grandes multinacionais) e, ao mesmo tempo, a dinâmica de seu salário real (resultado mesmo dessa subordinação) funcionava – no caso das economias ocidentais do norte − como o elo articulador (e legitimador) entre a produção em massa e o consumo em massa.

No paradigma industrial, a produção de “bens” e “inovações” tecnológicas aparecia como processo determinado por lógicas separadas da atividade que os produzia: para o trabalhador, o “bem” que ele produzia era apenas o meio de aceder a um salário. Já a tecnologia (o conhecimento) lhe aparecia como evolução natural, sob as formas das leis da eficiência, da concorrência e da inovação capitalista. O sujeito se mantinha separado do objeto da mesma maneira que a cultura se mantinha separada da natureza e se apresentava de maneira altamente hierarquizada: por um lado, a cultura “culta”, aquela elitista (da arte) e aquela codificada no saber acadêmico e tecnológico e, pelo outro, a cultura popular, enxergada como fenômeno “natural”, algo a ser superado.

 

O valor no capitalismo cognitivo

No capitalismo cognitivo, o trabalho saiu do chão de fábrica e se descolou do emprego. Com isso, perdeu sua capacidade de funcionar como padrão de mensuração (tempo de trabalho, custo do trabalho) das atividades produtivas e de consumo. Isso se traduziu – como sabemos – em perdas salariais e de direitos trabalhistas (enfraquecimento das organizações sindicais, diminuição da parte dos salários sobre a renda total, aumento do desemprego e, sobretudo da precariedade). Mas, saindo da fábrica, o trabalho perdeu – potencialmente − aquela subordinação dialética que o identificava ao “emprego” (assalariado) e o mantinha numa relação de inquebrantável dependência − tecnológica e cultural − com o capital.

A produção passa a se organizar dentro das próprias redes de circulação: por isso a privatização dos serviços das redes de comunicação é tão importante para o capital − e o neoliberalismo foi desse ponto de vista, a retórica e a política dessa investida capitalista. O capitalismo cognitivo se caracteriza por um paradoxo estrutural, aquele da dupla dimensão dos serviços que permitem aos trabalhadores continuarem a serem empregáveis.

Em 2007, a crise dos subprimes tem como estopim a incapacidade dos trabalhadores precários de continuar pagando as dívidas que eles contraíram para ter acesso aquela moradia que lhe deve permitir, junto aos outros serviços como saúde, educação, transporte, Internet e telefonia, de continuar trabalhando de maneira intermitente, interina e informal (ou até ilegal, no caso dos imigrantes sem visto de trabalho). A crise do capitalismo global é crise de sua dimensão cultural: a produção se torna relação (circulação) e cultura. O trabalho não é mais empregado (assalariado). O que ele produz são serviços (privatizados ou cada vez menos accessíveis, a não ser que se recorra ao crédito) dos quais depende inclusive sua capacidade de se manter trabalhando. O trabalho se tornou imaterial e cognitivo (cultura) e precisa dos serviços para manter-se tal. O emprego foi substituído pela empregabilidade e a variável do custo (do trabalho: salário) é complementada ou até substituída pela que diz respeito os custos de transação: os custos não são mais (ou apenas) imputados ao tempo de trabalho, mas à própria relação de trabalho. Ao passo que a lógica da contenção do custo do trabalho (do salário) comprimia o tempo de trabalho necessário, aquela da contenção do custo de transação comprime a própria transação, estilhaçando a relação salarial.

No capitalismo industrial, a variável estratégica era o salário. No capitalismo cognitivo, a variável estratégica é a relação, ou seja, a cultura. Por sua vez, o trabalho passa por uma transmutação do mesmo tamanho: de trabalho instrumental que se de objetiviza numa obra (um bem) ele passa ao estatuto de uma atividade relacional sem obra. As relações de serviço são de uma crescente complexidade cognitiva, comunicativa e afetiva do trabalho. A separação do trabalho do emprego faz com que tal relação aconteça nos moldes de uma prestação pessoal (terceirizada) que, por sua vez, funciona por terciarização (amplificação do setor de serviços). Terceirização e terciarização se alimentam circularmente, por propagação. De maneira emblemática, recentemente, o tradicional outsourcing (externalização) tenha passado a se chamar também crowdsourcing: a mobilização da multidão de singularidades (Howe, 2008-2009).

 

O trabalho virtuoso

Ainda em 1994, o filósofo italiano Paolo Virno mobiliza as análises de Hannah Arendt sobre os conceitos de trabalho e ação, além das noções marxianas de trabalho intelectual produtivo e improdutivo, para explicitar o novo paradigma como sendo a condição na qual funcionam pelo avesso as clivagens entre: (1) trabalho e ação e (2) trabalho intelectual produtivo e improdutivo. A inversão diz respeito às transformações do intelecto: tornando-se público, o intelecto passa ter como figura emblemática aquela do executor virtuoso.

Diferentemente da poiesis (trabalho da produção), que é repetitiva, taciturna, previsível e instrumental, a práxis (ação) diz respeito não às relações com a matéria (com a natureza), mas às próprias relações sociais. A ação lida com o possível e o imprevisto, e modifica o contexto no qual evolui e acontece. Diferentemente do bios theoretikos (pensamento puro), que é solitário e não aparente, a ação é pública, entregue à exterioridade, à contingência, ao murmúrio da multidão.

Habermas desenvolveu os temas da colonização do mundo da vida (e seu agir comunicativo) pela razão instrumental. De maneira parecida, Arendt afirmava que o capitalismo industrial determina a colonização da ação pelo trabalho.   A práxis se tornava poiesis, um processo de fabricação cujos produtos são o partido, o Estado, a História. Já na passagem do fordismo ao pós-fordismo, isto se deu em direção oposta: é a práxis que coloniza o trabalho. Ou seja, o trabalho introjetou os traços da ação política, tornou-se práxis. Ao mesmo tempo, esse deslocamento fica em aberto, como que diante de uma alternativa radical: entre o eclipse da política (apontada, por exemplo, por Agamben) e a difusão geral de um novo horizonte político.

É exatamente aqui que entra a discussão sobre o terceiro termo de comparação, quer dizer, sobre a dinâmica do pensamento puro. É com relação às formas de vida relacionadas ao intelecto (bios theoretikon) que se define uma alternativa entre um intelecto difuso (mas fragmentado) e um intelecto público constituído por novas formas de atividade livre. Nesse nível, Virno propõe a metáfora do executor virtuoso, deslocando a distinção que Marx fazia entre trabalho intelectual produtivo e improdutivo.

Para Marx, o trabalho intelectual produtivo é aquele que se objetiviza em uma obra que existirá independentemente do ato de produzi-la. O ato de produzir separa-se do produto: práxis e poiesis se separam. A produção é mais importante do que a práxis. A mercadoria se separa do produtor, em objetos distintos das prestações artísticas. São os livros, os quadros, as estátuas, de quem escreve, pinta ou cria. Esse trabalho intelectual, dizia Marx, é produtivo porque ele produz mais-valia.

Ao contrário, há um segundo tipo de trabalho intelectual, que não se objetiviza em obra nenhuma: trata-se das atividades cujos produtos são inseparáveis do ato de produzir. Nesse caso, a práxis coincide com a poiesis e a sobredetermina. Estamos falando das atividades que encontram sua realização em si mesmas – como são todas as execuções virtuosas dos oradores, dos professores, dos médicos, dos padres, dos bailarinos, dos músicos em um concerto, de um artista em uma performance etc. Nesses casos, dizia Marx, temos um trabalho intelectual improdutivo. Pode até ser um trabalho assalariado, mas ele não produz mais-valia, por não haver separação entre o ato de produzir e seu resultado. Para Marx, esse tipo de trabalho intelectual não é apenas improdutivo; este tipo de trabalho também contém elementos de tipo servil, pois funciona com base em prestações pessoais, prestações de serviços! Os executores virtuosos são, pois, improdutivos, embora seu trabalho seja de tipo servil.

Para Virno, o que caracteriza a transformação do trabalho na passagem do fordismo ao pós-fordismo é que a execução virtuosa – quer dizer a práxis – se torna o paradigma de todo e qualquer tipo de produção. No capitalismo contemporâneo, a atividade sem obra deixa de ser a exceção e se transforma em protótipo do trabalho em geral. Walter Benjamin tinha analisado esse deslocamento já na Era da reprodutibilidade técnica da obra (de arte) e o tinha colocado numa perspectiva oposta daquela adotada pelos seus colegas da Escola de Frankfurt. Ao passo que estes enxergavam na sociedade de produção e consumo em massa a perda de aura e de autenticidade da obra, Benjamin apreendia a transmutacão política e social da própria aura e da própria autenticidade e aprendia os novos desafios culturais para os projetos de emancipação social. Diante do fascismo que estetizava a política, Benjamin, apontava para a necessidade do movimento comunista “politizar a arte”.

Benjamin afirmava: “o número muito mais elevado de participantes provocava uma participação de tipo diferente”. Assim como “o desvio quantitativo” ligado à reprodutibilidade técnica da obra de arte determinava uma “alteração qualitativa da natureza da obra de arte”, o trabalho colaborativo em rede implica hoje numa mudança radical do estatuto do trabalho e da obra. Uma mudança que atualiza e radicaliza a antecipação benjaminiana: na Era da reprodutibilidade técnica da obra de arte, “a diferença entre autor e público está prestes a perder seu caráter fundamental” e o “leitor está sempre pronto a tornar-se escitor”.

O que está no cerne da produção é uma ação que é ao mesmo tempo pública e criativa. A práxis virtuosa tornou-se o paradigma do trabalho em geral, pois hoje em dia o trabalho é comunicativo, linguístico, afetivo. A base desse trabalho é a partitura constituída pelo que Marx chamava de General Intellect e Benjamin definia como um bem comum constituído por uma “formação politécnica”. Este é o trabalho que encontramos nos serviços, nas prestações de serviço das quais depende a produção de valor, inclusive dos bens materiais que se tornaram suportes de formas de vida (mundos). Estamos muito próximos da condição da criação artística, quer dizer da definição proposta por Negri da noção de “belo”: produção de excedente de ser, a partir de um trabalho livre. O “belo” é novo ser construído pelo trabalho colaborativo, coletivo das redes e nas redes.

 

Um novo conflito

Esse deslocamento não é linearmente libertador ou emancipador. Ele apenas define o marco de um novo conflito. Na execução virtuosa, nos lembra Virno, temos sempre uma prestação pessoal, quer dizer os elementos ambíguos próprios da mobilização produtiva da vida. Abre-se o horizonte de uma atividade livre e criativa, mas também cria-se uma nova condição servil. A execução virtuosa aparece como o máximo de atividade livre e criativa, mas temos uma prestação pessoal que indica os termos de uma nova escravidão. A clivagem entre esse dois polos não é sempre nítida. Em primeiro lugar porque entre eles há uma infinita modulação de condições que dosam graus diferentes de liberdade e servilismo: entre o trabalhador informal dotado de um telefone celular e o trabalhador intelectual continuamente conectado à rede. Em segundo lugar, porque – uma vez que essas dinâmicas correm fora da tradicional relação salarial – nem sempre fica claro qual mecanismo agencia e qual separa, qual participa da colaboração e qual hierarquiza e modula o controle.

Uma boa maneira de construir a capacidade crítica de apreender esse mecanismo é de articular a metáfora do trabalho virtuoso com a questão dos modos de construção e funcionamento da “partitura” que o prestador de serviços executa. No capitalismo das redes, a partitura do virtuoso é aquela de um intelecto (saber) que se tornou geral: conhecimento que produz conhecimento, formas de vida que produzem formas de vida. Ao mesmo tempo, esse tornar-se geral do intelecto não é um processo linear, nem unívoco. Ou seja, os modos dessa generalidade podem ser diferentes e são o terreno de conflito entre o novo tipo de trabalho (imaterial) e o novo regime de acumulação (cognitiva). O conflito entre capital e trabalho passa por uma outra dinâmica. Em seu cerne não se encontra mais o salário, mas a “partitura”.

As lutas por salário privilegiavam o justo reconhecimento do valor do capital variável (o trabalho e sua reprodução) e deixavam em segundo plano, o da reforma ou da revolução, a questão da propriedade do capital constante (as maquinarias). Aliás, reforma e revolução, mercado ou Estado, se encontravam no mesmo terreno, aquele da legitimidade tecnológica do capital fixo e a ele se dobravam, como mostrou a experiência soviética.

As lutas do trabalho imaterial tem como variável fundamental a partitura e, pois, conjugam num mesmo terreno um novo tipo de luta salarial e a luta no terreno da propriedade. A produção sensata de formas de vida por meio de formas de vida depende dos níveis de liberdade e democracia que caracterizam a produção e a execução, em espiral, da partitura. No plano salarial, a variável diz respeito o reconhecimento da dimensão produtiva da vida e, portanto, o deslocamento do tema salarial em direção ao da distribuição de renda pela implementação de uma “renda universal”, uma biorenda. No plano da partitura, o terreno de luta é aquele da construção das instituições de uma partitura comum. Essas instituições são aquelas que a própria luta produz. Por importantes que sejam, o que interessa no movimento da cultura livre não são tanto as inovações jurídicas (o próprio copyleft e o Creative Commons, por exemplo), mas a articulação entre redes de produção colaborativa e uma nova geração de direitos e dispositivos institucionais.

 

3 - O trabalho das redes: precariado e soberania do artista

 

Plena atividade” e precariado

Há mais de trinta anos, o trabalho continua a descolar-se do emprego e a subsumir o tempo de vida como um todo. Por sua vez, o emprego continua a transformar-se. Ele envolve a alma do trabalhador, suas faculdades linguísticas e suas dimensões afetivas: uma atividade plena que mistura tempo de trabalho e tempo de vida. Mas também se torna “empregabilidade”: não mais uma condição dada, mas uma permanente ausência de condição. Mesmo quando estamos empregados, dentro da relação salarial, precisamos estar fora dela, empregáveis.

O que é a empregabilidade? Uma transação entre o capital comprador da força de trabalho que nunca garante ao “vendedor” (o trabalhador)   um retorno e uma proteção estáveis. O “vendedor” deve sempre estar em condições de ser “vendível”: empregável, implicando não somente a precariedade do emprego, mas também a subsunção da própria vida (o tempo todo, os afetos, as faculdades linguísticas e as relações sociais) dentro do trabalho. O trabalho se torna relação, seu conteúdo é, pois cultura, significação e vida. A exploração passa pelos mecanismos que permitem reduzir a relação à “transação”.

A transação é continuamente negociada e reaberta, sendo que ela implica um custo dependente das condições de informação da procura e oferta de mão de obra. Só que esse custo está sendo repassado para o próprio trabalhador. O conteúdo da empregabilidade é exatamente a dimensão cognitiva e comunicativa (biopolítica) de um trabalho que se torna imaterial.

O capitalismo cognitivo diz respeito à mobilização das formas de vida em suas próprias dinâmicas sociais, inclusive reprodutivas. A vida é mobilizada sem mais passar pela relação salarial e isso confere (e reconhece) ao desenvolvimento das forças produtivas uma potência nova e libertadora. Mas a relação salarial (sua convenção) continua em vigor, baseada na continuidade da propriedade privada e do trabalho subordinado. A imensa potência produtiva do trabalho social (colaborativo) se transforma assim em nova miséria para o trabalhador individual, cujo trabalho sem emprego não é mais reconhecido.

Em uma economia do trabalho imaterial, os gastos em termos de serviços e distribuição de renda são investimentos em capital humano, sem os quais não haverá a qualidade de população (biopolítica) da qual dependem as bacias de forças de trabalho. A substituição de tudo isso pela lógica do mercado (a privatização dos serviços) leva direto para o impasse da crise dos subprimes: o crédito acaba se substituindo à renda, mas o débito se torna impagável.

Para o capital, a transação de custo zero era viabilizada pela sua financeirização, uma acumulação autorreferencial e tautológica que a crise nos mostra em toda sua nudez. Para o trabalho, isso funciona potencialmente pelo avesso: o trabalho que se torna produtivo sem passar pela transação é aquele que consegue socializar-se sem passar pela relação salarial.

O trabalho (capital variável) integrou o capital fixo, quer dizer a cooperação social, o conhecimento, exatamente como acontece no trabalho compartilhado das redes sociais e técnicas. Michael Bauwens fala do papel das práticas emergentes de produção entre “pares” (peer-to-peer) que constroem – com base na autoagregação por meio de motivações afetivas − comunidades que praticam a inovação livre e permanente, procuram a qualidade absoluta e tornam obsoleto todo o tipo de estratégia proprietária (2009, 16). A visão de Bauwens é adequada em termos sociológicos, mas assume a mudança como algo tecnologicamente determinado.

Já as análises de Jeff Howe em termos de crowdsourcing mostram como não podemos confiar no determinismo da técnica como portadora de emancipação. Bauwens acredita que essas práticas emergentes entre pares, paradoxalmente, salvam e colocam em crise o sistema capitalista. André Gorz dizia que   a produção colaborativa nas redes trazia consigo a extinção da acumulação capitalista. Os dois concordam que a base dessa nova condição é o movimento do software livre, ou seja, a produção que tem como base as comunidades de likeminded peers, mais criativas do que as corporações: “o trabalho pode ser muitas vezes mais eficientemente organizado no contexto de uma comunidade do que em um contexto de uma corporação” (Howe, 8).

Todos colocam no cerne da mudança a relação de tipo novo entre o trabalho e os afetos: “a melhor pessoa para fazer um trabalho é aquela que mais quer fazer aquele trabalho, e as melhores pessoas para avaliar sua performance são seus amigos e pares” (Ibid.). Para os apologéticos californianos da web, tudo isso se transforma na mais nova forma de negócio: “O crowdsourcing capitaliza a partir da natureza profundamente social da espécie humana” (Howe, 14). Para os libertários, “a motivação afetiva (dos trabalhadores das comunidades) ultrapassa em produtividade as motivações de origem coercitiva”. Com efeito, a transformação não é linear nem determinista: pelo contrário, ela implica uma dimensão política, em particular no que diz respeito à questão da propriedade, por um lado, e o reconhecimento da dimensão produtiva de todo o tempo de vida que esse tipo de trabalho mobiliza, pelo outro.

 

4 - O modelo da produção antropogenética e a sociedade pólen

 

O modelo antropogenético

Christian Marazzi (2008) fala "da emergência de um modelo antropogenético". Para ele, a produção de conhecimento por meio de conhecimento é na realidade um modelo de "produção do homem por meio do homem", no qual as possibilidades do crescimento endógeno e cumulativo dizem respeito, sobretudo ao desenvolvimento do setor educacional (investimento em capital humano), do setor da saúde (evolução demográfica, biotecnologias) e da cultura (inovação, comunicação e criatividade). Quer dizer, os fatores de crescimento são imputáveis diretamente à atividade humana (...), ou seja, à produção de formas de vida e, pois, criação de valor agregado, que define a natureza da atividade humana" (2008). Isso vale também para a inovação. Precisamos de indicadores que levem em conta as inovações “humanas”: o framing do qual temos que dar conta é aquele de uma bioeconomia (Fumagalli, 2007).

No modelo antropogenético, o conhecimento do qual se fala é na realidade o próprio homem: formas de vida que produzem formas de vida. A questão da significação e, nesse sentido da inovação, diz respeito à relação entre cultura e natureza que o modelo antropogenético carrega. Se a racionalidade instrumental típica da modernidade ocidental não funciona mais, onde encontraremos um padrão de valor e significação de uma relação entre cultura e natureza que se tornou obsoleta? É aqui que temos os termos da questão ecológica e “ambiental” e a ligação que eles tem com os desafios da inovação no capitalismo ou para além do capitalismo cognitivo. A ecologia não é um problema de limite externo (natural) ao desenvolvimento humano (cultura), mas de relação imanente e democrática entre desenvolvimento (cultura) e mundo (natureza): a ecologia é uma questão de imanência e valor!

As reflexões sobre a Amazônia   e sobre a inserção do Brasil no mundo (Cocco, 2009) nos indicam uma das novas e fundamentais linhas de conflito que atravessam a bioeconomia (e o capitalismo cognitivo). Por um lado, nós teremos um horizonte no qual a produção antropogenética se reduz a um novo tipo de antropocentrismo, reproduzindo a clivagem ocidental entre cultura e natureza, numa dinâmica que torna impossível apreender a imanência de nossa condição terrestre. Aqui, a crise do valor se apresenta como catástrofe: perda de mundo. Mesmo quando fala da proteção da natureza, se faz segundo o mecanismo da transcendência, de uma cultura (proteção) separada da natureza (floresta).

Por isso, são os indígenas – com seu animismo − que melhor constituem o horizonte de uma outra relação entre cultura e natureza. E as reservas (sobretudo quando são demarcadas de maneira contínua) assumem uma dimensão completamente outra ao que lhe era atribuído pela lógica estatal. Por outro lado, a propagação antropogenética pode ser pensada como o antropomorfismo animista, do perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro 2002, Cocco 2009). Esse permite pensar a hibridização de cultura e natureza, bem nos termos dos coletivos que habitam a antropologia simétrica de Latour (1994); aqui a crise do valor abre-se à construção de um mundo como desafio democrático de mobilização dos híbridos de natureza e cultura, dos humanos e dos não humanos. A antropologia da cosmologia ameríndia do Brasil renova, em termos inovadores, o trabalho que a etnologia desenvolveu desde as décadas de 1960 e 1980 para apreender a pluralidade das formas de troca, contra a concepção da economia política que afirma o mercado como universal (Karpik: 2007, p.22).

Aqui,        a   inovação é brasileira, animista e antropófaga: o perspectivismo ameríndio é radicalmente não-antropocêntrico. A antropofagia define um antropomorfismo cuja propagação é pura alteração. O sistema de inovação do qual precisamos é um “sistema antropofágico de inovação”: é o saque e a dádiva, a relação de alteração que faz o framing da quebra das patentes (no caso dos remédios), do “sampleamento” como base das atividades de criam o tecnobrega (de Belém do Pará), o funk do Rio (como já estiveram nas bases do tropicalismo). A noção de imaterial diz respeito à dimensão relacional e linguística do trabalho e ao seu tornar-se práxis, para além da dialética sujeito-objeto. Seu modelo é, pois a criação artística que, por sua vez, está cada vez mais parecendo com "a criação científica que sempre foi trabalhada em rede, um trabalho que você trabalha em cima do outro, que exige um aparato institucional complexo de produção propriamente coletiva" (Viveiros de Castro, 2007).

Nesse contexto, falar de trabalho imaterial significa apreender a recomposição materialíssima da mente e da mão, na direção oposta à hierárquica "espiritualização" do mundo. O trabalho imaterial tem como base tecnológica o que Christian Marazzi, usando o “manifesto ciborgue” de Donna Haraway, chama de "Corpo máquina". Ou seja, a disjuntiva que a desmaterialização do capital fixo e a transferência de suas funções produtivas e organizacionais no corpo vivo da força de trabalho geram é a que separa a importância crescente do trabalho cognitivo produtor de conhecimento e das próprias formas de vida, como mecanismos fundamentais da produção de riqueza e, ao mesmo tempo, sua desvalorização em termos salariais e de emprego. A disjuntiva está no não reconhecimento político da mutação (a subsunção da vida como um todo) para permitir seu controle socioeconômico.

Dizer que o trabalho se tornou imaterial significa afirmar que, no pós-fordismo, são as dimensões relacionais do trabalho que determinam as dimensões objetivas (da relação sujeito/objeto), típicas do processo de trabalho industrial. A antropologia permite um aprofundamento dessa dimensão relacional, linguística do trabalho, recuperando e incluindo uma nova maneira de apreender a relação com a natureza, com a história comum que a sociedade e o ambiente constituem. Uma produção que é produção de mundos dentro de um leque aberto de possibilidades, para além do antropocentrismo. Precisamos aqui apreender as inovações que estão nas reservas indígenas, nos territórios dos quilombolas, nos Pontos de Cultura, nos assentamentos da reforma agrária, nas incubadoras de empresas solidária, entre outros espaços. É ali que a res nullius (as terras devolutas) se transforma em um comum que inclui o sampleamento, a mixagem e a mestiçagem antropofágica entre cultura e natureza, um devir Amazônia da inovação. O world making que dá significação à propagação do conhecimento tem no devir Amazônia do Brasil e no devir Brasil do mundo um novo horizonte, na perspectiva do qual pensar um novo tipo de indicadores.

 

A sociedade pólen e o comum como novo padrão de valor

Do lado dos governos, mergulhados na crise,   isso parece organizar-se em torno do discurso do “crescimento ecologicamente sustentável”, bem nos termos do debate que aconteceu diante da falência do conjunto das montadoras norte-americanas: aquelas que sobreviverão (graças à intervenção estatal) deverão tornar-se mais enxutas (com menos empregados) e produzir carros sustentáveis. Isso diz respeito a definição de um novo motor de crescimento e, sobretudo, da tentativa de restabelecer um critério de valor ao qual ancorar uma nova dinâmica da acumulação.

Estes deslocamentos estão longe de ser definidos, estáveis e fechados. Nada diz que essa ressignificação possa acontecer sem uma redefinição radical dos próprios alicerces do capitalismo, do regime jurídico da propriedade privada e estatal. Por definição, a procura de uma economia sustentável não garante em si nenhum padrão objetivo-natural. O “respeito” da natureza não deixa de ser o produto de uma razão tão instrumental quanto aquela que “agride” a natureza. Nos dois casos, o modelo antropogenético reproduz o antropocentrismo ocidental e sua transcendência. O “respeito” da natureza “natural” acaba opondo-a as políticas sociais. O humanismo se desvela pelo que é: um anti-humanismo. A continuidade das atividades predatórias da natureza reproduz um direito de dominação de tudo que não é humano. Este foi o instrumento fundamental da dominação dos homens sobre aqueles animais antropomorfos que não tinham alma e cujas vidas não mereciam ser vividas: os índios, os negros, os ciganos, os judeus, os muçulmanos, etc.

Precisamos de indicadores capazes de reconhecer as dimensões qualitativas e sociais da atividade econômica e de desnaturalizar seus recursos para afirmá-los como artefatos, híbridos de cultura e natureza. Esses passam a ser atravessados por critérios de valoração social – relacionistas e perspectivistas − que não cabem mais na simples contabilidade dos “custos”. De repente, a privatização do domínio público como direito irrestrito de uso-fruto de um bem precisa ser profundamente revisada. Acontece para os bens materiais exatamente o que já está acontecendo para os bens imateriais: a propriedade privada tem dificuldade de sustentar economicamente as posições adquiridas (por causa, por exemplo, da pirataria) e se torna (na forma do copyright e das patentes) um obstáculo à políticas públicas (como no caso da quebra das patentes dos remédios para a luta contra   AIDS)   e até à própria dinâmica da cooperação criativa (que encontra novas formas de propriedade comum: o copyleft e o software livre). O comum é cultura e natureza ao mesmo tempo: nossa imanência terrestre.

Nossa referência deve ser o caráter duplamente artificial da convenção de propriedade do conhecimento (dos bens conhecimento e das obras artísticas). Por um lado, essa dimensão artificial é o fato de uma convenção humana que não depende de nenhuma necessidade natural, mas está sobre uma norma jurídica que precisa ser aceita, legitimada. Por outro lado, ela é artificial pelo fato de depender do artefato humano e do grau de desenvolvimento técnico de uma sociedade.

Hoje, uma série de inovações técnicas desestabilizaram os modelos econômicos de remuneração (crise do valor): a mudança que cria problemas é o caráter indivisível do bem conhecimento. No modelo anterior, eram os efeitos de escala (a multiplicação dos leitores de um jornal, por exemplo) que tornavam rentável os investimentos. Hoje, o público é construído por processos que associam a comunidade e a singularização. O marketing é ameaçado pelas técnicas automatizadas de profiling dos clientes, através da exploração de cookies (memorização dos sites visitados pelos internautas), por exemplo. A singularização do consumidor permite pensar serviços anexados aos produtos: a força de venda deve tornar-se uma capacidade de escuta da vida singular. É o data mining (a exploração em tempo real dos dados amontoados sobre o uso da Internet) articulado a outros mecanismos interativos que promovem a eficácia das redes comerciais por meio de processos bottom up: relações de proximidade e de propagação.

Eis a sociedade pólen. Se abandonamos as metáforas do trabalho humano como aquela das formigas, desenvolvendo aquela da colmeia, poderemos ver que (além da produção do excedente de mel, inicialmente destinado ao autoconsumo, a criação das rainhas e das futuras abelhas bem como ao lucro do apicultor) a construção da rede material dos compartimentos da colmeia em cera é a construção da rede cognitiva do território, que serve à colheita do pólen de flor em flor. A análise tradicional do valor (e da inovação) se limita ao output de mel que pode ser negociado no comércio e, pois, a uma racionalidade instrumental voltada a um fim (o mel) apropriável sob as formas de direito de propriedade privada ou pública (estatal). O desaparecimento das abelhas, por causa do uso e abuso de pesticidas, mostrou que a polinização é fundamental para a agricultura e também para as floresta “selvagem”. Mais do que isso, mesmo calculado em termos de produção agrícola, o valor criado pelo trabalho indireto, imaterial, relacional de polinização é “n” vezes mais importante do que o trabalho material (direto) de produção de mel.

A atividade de polinização aparece como uma multidão de singularidades que cooperam entre si se mantendo tais. Mas a polinização não é uma evolução natural. Trata-se de algo artificial e até contre nature: interespecífica. A polinização precisa das instituições que reconheçam o compartilhamento comum de uma rede, a rede como res nullius: que é de todos e de todos, seja ela a comunidade da Internet ou a Reserva indígena da Raposa Serra do Sol em Roraima. Ao mesmo tempo, a polinização é o fato de uma atividade – ir de flor em flor – não finalizada onde o fun (a felicidade ou o   amor como forma superior do conhecimento) é um indicador de valor enquanto construção de sentido, construção de um mundo.

Estamos na perspectiva onde a produção em rede constitui uma alternativa radical na organização do trabalho. O comum da rede aparece como uma alternativa ao público (estatal: propriedade de todos e de ninguém) e ao privado (mercado: direito absoluto do particular). A inovação está do lado, pois, das instituições que reconheçam a esfera do comum e atualizem seu potencial: na passagem de um esquema proprietário baseado na separabilidade para um fincado na indivisibilidade; de um estruturado em torno da exclusividade e rivalidade do uso para um uso não rival que participa da produção por propagação (Moulier Boutang, 2007): a produção e inovação por propagação polinizadora é aquela do enxame. Precisamos de instituições de enxameamento, de investimentos que reconheçam a dimensão produtiva e propagadora da polinização, de políticas públicas que reconheçam a polinização e não a deixem esgotar-se.

 

Conclusão provisória

A constituição da nova partitura, do intelecto público, está completamente aberta em alternativas que correspondem à clivagem separadora da prestação virtuosa entre as novas formas de atividade livre e os mecanismos de uma servidão renovada. Ou seja, por um lado, a partitura do intelecto pode permitir a uma esfera pública a produção e reprodução (a circulação produtiva!) de suas dinâmicas livres e multitudinárias. Nessa ponta, o intelecto público é constituinte de uma esfera do comum: é aquela que encontramos no movimento do copyleft, do software livre e dos pré-vestibulares para negros e pobres. Aqui temos produção do belo, resistência e criação, excedente de ser de uma vida livre e produtiva.

Pela outra ponta, a dimensão pública do intelecto pode ser capturada – pelo mercado e pelo Estado – pela sua sistemática redução a uma densa rede de relações hierárquicas. Nesse segundo caso, a imprescindível presença de outrem toma uma dupla forma perversa: dependência pessoal e arbitrariedade hierárquica que transformam a atividade produtiva do virtuoso em trabalho servil de novo tipo. Aqui, a esfera pública é constituída e sobredetermina as condições de existência do intelecto em geral. A arte é capturada e reduzida à comunicação e ao marketing: trabalho fragmentado e precário e nova servidão do copyright. Toda a vida é capturada dentro de um processo de produção que barra o ser nas mil formas da segregação espacial e da fragmentação social (a exclusão como horizonte que não pode ser ultrapassado).

Temos aqui todos os elementos para apreender a importância das políticas que contribuem para a constituição de uma esfera pública de mobilização democrática e produtiva, para além do trabalho assalariado. O primeiro governo Lula, talvez até involuntariamente, foi o teatro de duas grandes inovações adequadas a esse desafio: o programa Bolsa Família e o programa dos Pontos de Cultura.

O Bolsa Família indica o caminho da construção de um comum (a distribuição de renda) que pode constituir-se como a base da ação das singularidades. Não se trata apenas da necessária e urgente redução da desigualdade, mas de pensar a mobilização produtiva como algo que depende da cidadania, substituindo a equação que descrevia a integração social como dependente do crescimento econômico. Embora com base em uma escala de investimento ainda apenas simbólica, os Pontos de Cultura aprofundam essa tendência, democratizando a política cultural e pondo a cultura como cerne potencial da mobilização produtiva. Com os Pontos, o MinC não apenas deu sentido público às políticas culturais, mas as democratizou radicalmente, visando a reforçar (e não a determinar) as dinâmicas próprias dos movimentos culturais. Nesse encontro entre políticas culturais e políticas sociais podemos afinal pensar a construção de uma partitura pública e radicalmente democrática para o virtuosismo brasileiro do século XXI.

 

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Texto publicado originalmente no livro Copyfight: Pirataria e Cultura Livre, editado por Adriano Belisário e Bruno Tarin (2012)

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Número 2