Resistência, Criação e Progresso, Giuseppe Cocco
Resistência, Criação e Progresso (1) Giuseppe Cocco
Pasolini sobre "Sviluppo e Progresso"
A obra de Pier Paolo Pasolini é atormentada pela reflexão crítica sobre o advento da sociedade de massa na Itália do segundo pós-guerra: por um lado, sua grande indústria e a padronização dos estilos de consumo e, pelo outro, a hibridização com a herança clerical e fascista do poder. Como o sublinha Alfonso Berardinelli (2007) em sua introdução a Scritti Corsari, uma primeira leitura da violentíssima crítica da idéia de "progresso" (Pasolini 1975a:175-8), de sua revolução conformista, nos dá a sensação de um déjà vu. Depois da sociologia de Frankfurt, tudo o que era preciso dizer sobre a homologação cultural e da mercantilização total da vida tinha sido dito. E o que não tinha sido escrito pelos francofurtianos, foi escrito por Guy Debord, logo antes da “Sociedade do Espetáculo” ser atravessada pela critica social de “maio 68”. Ao mesmo tempo, a obsessão de Pasolini para com as novas formas de fascismo e consenso "democráticos" vinha de uma sensibilidade singular, que vivia com particular sofrimento a mutação antropológica acarretada pela própria dinâmica do desenvolvimento fordista. O sofrimento de Pasolini era atravessado por uma visão trágica que acabou encontrando em sua morte um desfecho não menos trágico. Suas intuições eram plenamente biopolíticas, por exemplo nas posições polêmicas que adotou quando do plebiscito – italiano - sobre a legalização do aborto. Ele, millitante do Partido Comunista, contrariava a mobilização da esquerda e dos movimentos em favor da legalização. Para ele, tratava-se de algo que entregava a vida ao mercado. Ora, o "consumismo era para ele um verdadeiro cataclismo antropológico". Algo, dizia ele, que "eu vivo no meu corpo", pois "minha vida social depende totalmente do que são as pessoas" e as pessoas iam mudando antropologicamente na medida que a vida perdia a sacralidade que a ela atribuíam os pobres, "pois que cada nascimento era a garantia da continuidade do homem". Hoje, a vida é Sacer, ou seja maldita, uma vida "indigna de ser vivida" (Pasolini 1975b:105-109). Sua visão do mundo o cegava ou lhe anunciava como que uma perda-de-mundo, que se traduzia, em um certo sentido, em uma antecipação da obsolescência das tradicionais díades político-teóricas: fascismo e anti-fascismo, direita e esquerda, progresso e reação. Assim, em um breve texto escrito no ano de seu assassinato, Pasolini faz a distinção entre as noções de "desenvolvimento" e "progresso", tentando reconstruir em torno delas uma clivagem ética. Ele atribui a procura do "desenvolvimento" aos interesses do capital: "a palavra tem hoje uma rede de referências que dizem respeito um contexto sem dúvidas de 'direita'". Ao contrário, os que querem o "progresso" são "os que não têm interesses imediatos (...): o querem os operários, os camponeses e os intelectuais de esquerda". Curiosamente, Pasolini atrela os primeiros a uma abordagem material (o interesse imediato de produzir "bens supérfluos") ao passo que os segundos far-se-iam conduzir por uma "noção ideal" que seria o contrário do pragmatismo econômico dos "industriais". Até aqui, Pasolini associa a visão tradicional do papel dos intelectuais de esquerda (orgânicos) a uma vanguarda portadora de um ideal, da "consciência" crítica diante da constatação sociológica – "francofurtiana" – de que a produção industrial virou produção de massa para consumo em massa e que, com isso, essas duas dimensões se alimentam reciprocamente e tautologicamente, destruindo o mundo, tornando-o im-mundo. Ao mesmo tempo, a ideologia tradicional de uma esquerda fundamentalmente paralisada diante da dinâmica do "americanismo" é atravessada por uma sensibilidade que se abre ao novo.
Pasolini percebe que, aos industriais que visam ao desenvolvimento, junta-se o consenso de uma massa de consumidores de "bens supérfluos que estão, quanto a eles, irracional e inconscientemente de acordo em querer o 'desenvolvimento' (esse 'desenvolvimento')". A "massa é, pois, a favor do 'desenvolvimento'". Dessa maneira, a massa "abjura" tranquilamente os "valores culturais que lhe tinham fornecido os modelos de 'pobres', 'trabalhadores', 'poupadores', 'soldados', 'crentes'". As noções de desenvolvimento e progresso indicam assim, segundo Pasolini, perspectivas opostas; ao mesmo tempo, essa oposição não é simples. Na realidade, desenvolvimento e progresso têm relações incestuosas. "Qual foi a palavra de ordem de Lênin logo depois de ter vencido a Revolução?" se pergunta Pasolini e responde: "Foi a palavra de ordem convidando ao imediato e grandioso 'desenvolvimento' de um país subdesenvolvido. Soviets e indústria elétrica...". Pasolini não abre mão de seu incômodo diante dessa reviravolta e o afirma de maneira ainda mais firme para o contexto italiano, onde nunca houve revolução e, pois, o "desenvolvimento" seria sempre "esse" desenvolvimento. O paradoxo é enunciado nesses termos: se, no nível de sua consciência, o trabalhador "vive a ideologia marxista e, por consequência, entre os outros valores, vive na consciência a 'idéia de progresso'", no nível de sua "existência [o trabalhador] vive sua ideologia consumista e, por consequência, a fortiori, os valores do desenvolvimento". Não há solução da ambiguidade, e Pasolini formula esse impasse afirmando que o "trabalhador é, pois, dissociado".
Agora, essa dissociação atravessa também o poder. Um poder que, na Itália do segundo pós-guerra, o poeta comunista define de maneira bastante violenta: "para nós italianos, tal poder burguês clássico (ou seja praticamente fascista) é (o partido) da Democrazia Cristiana". A partir daí, Pasolini se reconhece como "artista" e opta por uma mudança de linguagem: não mais as categorias da ideologia marxista e da consciência de classe, mas suas imagens "vivas" (vivaci) de "artista". Para essa virada, ele retoma um artigo escrito dois anos antes, sobre um slogan de propaganda publicitária para a marca de jeans "Jesus" (Pasolini 1973a). A contradição que "parte" o bloco do poder tem a ver com a questão do nome e da imagem de Jesus: por um lado o "Jesus do Vaticano" e, pelo outro, o "Jesus" de uma marca de jeans, os Jeans Jesus! "A Itália" – observa ironicamente Pasolini – "está coberta de cartazes representando bundas com a escrita 'Quem me ama me siga' e vestidas – justamente – pelosJeans Jesus. O Jesus do Vaticano perdeu". A nova forma de poder, aquela do consumo massificado e seu marketing é mais dinâmica que a antiga, a clerical-fascista. Por um lado, o referencial da ortodoxia marxista e gramsciana enreda Pasolini dentro das ambiguidades irresolúveis do desenvolvimento; pelo outro, demonstra grande capacidade de antecipação. Ele vê que o novo capitalismo não sabe mais o que fazer com a Igreja: "com efeito, a alma do novo poder burguês de consumidores é completamente pragmática e hedonista: um universo tecnicista e puramente terreno (...)". O novo capitalismo investe a vida com um todo, o que ele produz e vende são formas de vida, "o nosso" – diz ele – "horizonte mental" (Pasolini 1973a:15). Já no início dos anos 1970, Pasolini apreendia o novo espírito do capitalismo e de sua mutação de valores: o slogan, dizia ele, é algo mais do que um achado desabusado. Ao contrário "ele (...) conserva (...) os elementos ideológicos e estéticos da expressividade (...)". O novo capitalismo se torna ele mesmo uma religião, mergulhado na iconofilia, no culto das imagens.
Mas o poeta ficava preso nesse deslocamento entre duas formas de poder, a do Jesus do Vaticano e a do Jesus dos Jeans. Ou seja, na ambiguidade de um desenvolvimento que ele não sabia como qualificar, a não ser por meio de uma noção de progresso que implicava valoração tão externa ao processo quanto a valoração proposta pelo poder, fosse o poder da iconofilia cristã ou da iconofilia domarketing. Desenvolvimento e progresso não são dois termos antagônicos, mas as duas faces de uma mesma modernidade ocidental. Na realidade, a brecha para pensar a transvaloração de todos os valores está numa perspectiva radicalmente outra, ou seja na recomposição imanente da relação entre produção e valores, algo que diz respeito, por um lado, à crítica do dualismo sujeito-objeto que desdobra na produção a separação ocidental de cultura e natureza; e, por outro lado, diz respeito à reformulação da própria noção de produção em termos de criação, ou seja de afirmação dos valores dentro do próprio processo de sua produção do mundo: não mais a produção do valor, mas a criação como valor! Para além do Jesus da transcendência, seja ele religioso (o Vaticano, como soberano) ou laico (a soberania do mercado), há um Jesus mundano, aquele do materialíssimo processo de radicalização democrática que estava no uso criativo e antagonista que os jovens e as mulheres faziam da calça jeans nas lutas dos anos 1970! É somente na imanência das lutas que é possível constituir a significação, para além da falsa alternativa entre progresso e desenvolvimento.
Resistência, criação e trabalho
Em conferência de 1987, titulada "O que é o ato de criação?"(2), Deleuze propõe uma abordagem do conceito de criação a partir da distinção que é preciso traçar entre as atividades de informação e comunicação e as que dizem respeito à obra de arte. Ele pensava que a comunicação faz parte do sistema de controle, quer dizer de um comando organizado a partir das palavras de ordem. Assim, Deleuze afirma, por um lado, que não há nenhuma relação entre informação e arte e, pelo outro, que há uma grande afinidade entre obra de arte e ato de resistência. Só nesse caso há uma relação entre informação e arte; só há relação na medida que a informação é contra-informação: um ato de resistência. Com efeito, a proposta é circular. Só a resistência permite sua qualificação e a resistência inclui a arte e a comunicação. Nessas reflexões Deleuze liga diretamente a arte à resistência, mas ainda não rompe nitidamente com seu estatuto de exceção.
Mas, o que é arte? Como podemos defini-la? Para responder, naquele mesmo texto, Deleuze recorre a Malraux, que dizia: "a arte é a única coisa que resiste à morte". Neste caso, continua Deleuze, a questão passa a ser: "O que é que resiste à morte?". A arte resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Assim, o filósofo francês afirmava: "nem todo ato de resistência é uma obra de arte, mas tem muita afinidade com ela"; e "nem toda obra de arte é um ato de resistência, embora tenha muita afinidade com ela". Com isso, uma vez considerado que o ato de resistência tem duas características (é ato humano e ao mesmo tempo é ato da arte), Deleuze pode afirmar que só o ato de resistência resiste à morte, seja na forma de obra de arte, seja na forma de luta dos homens. A ambigüidade da formulação inicial é “resolvida”, pois a luta é arte e o que interessa da arte é seu ser forma da resistência. A única arte que nos interessa, é a arte da luta. Por isso, podemos dizer que não há obra de arte que não faça apelo a um novo povo que ainda não existe, ou seja, apela a uma nova dinâmica do ser, a um acréscimo do ser: na luta e na criação produz-se ser, quer dizer, há produção ontológica! O plano da criação é pois, como o sugere Jean-Luc Nancy o da criação de um mundo, pois que o "mundo não é da ordem objetiva ou extrínseca", mas "um espaço dentro do qual ressoa uma certa tonalidade". Assim, um mundo é sempre, pelo menos potencialmente, da ordem da obra de arte e vice-versa. A mundanização (a mundanidade, a imanência) é uma mundialização e vice-versa (Nancy 2002:34-40). Nesse sentido, Camus dizia que "o homem é uma longa criação", pois que o valor de sua vida diz respeito a seu devir, suas transformações (Bove 2008:117). Isso nos leva diretamente às reflexões de Negri sobre as relações entre criação e produção. Acabamos de ver que a resistência é criação, criação de novo ser, produção ontológica. Nessa mesma direção, Negri propõe a seguinte definição do conceito de "belo": "Belo é o produto da ação coletiva de libertação que se apresenta como excedente de ser" (Negri 1990). Estamos na mesma perspectiva indicada por Deleuze, quer dizer: o "belo" é apreendido como constituição de um novo povo e, pois, de um mundo. Ao mesmo tempo, aqui, o "belo" nos leva diretamente à afirmação segundo a qual "o criativo (a criação do belo) nasce do trabalho". É o conjunto do trabalho humano acumulado que determina valores, formas de vida, novos seres, acréscimos de ser! A arte é apenas um desses valores, mas com a particularidade de ser, ao mesmo tempo, o mais universal (porque coletivo) e o mais singular. A arte é pois o resultado da cooperação entre singularidades que se mantêm tais: multidão em ato. Fazer arte é fazer multidão e viceversa. Em outra carta, Negri desenvolve essas afirmações em uma crítica marxista ao pensamento de Marx sobre a arte. Com efeito, Marx pensava que a arte grega sobrevivesse à história por causa de sua dimensão "clássica". Ou seja, Marx atribuía à arte uma certa transcendência, como se ela fosse o misterioso resultado de uma intervenção angélica, uma descida do céu na terra, um relâmpago. Ao contrário, diz Negri, nós temos que pensar – marxianamente – a arte como afirmação a cada vez atualizada de que todos os homens são anjos: anjos plenamente mundanos. A especificidade do trabalho artístico é exatamente ser o indicador dessa inexaurível capacidade do homem de produzir novo ser, de libertar o trabalho. Eis, novamente, a definição do "belo" como "ser novo construído pelo trabalho coletivo", um novo povo que ainda não existe: devir.
Em um belo artigo escrito em 1994, Paolo Virno complementava as reflexões sobre as novas relações entre intelecto e trabalho na época desenvolvidas – a partir da releitura de Marx – por Negri e Lazzarato (em particular Negri e Lazzarato 2000, sobre o conceito de trabalho imaterial) e por ele mesmo (sobre o conceito de General Intellect). Nesse artigo, Virno (2008) mobiliza as análises de Hannah Arendt sobre os conceitos de trabalho e ação e as noções marxianas de trabalho intelectual produtivo e improdutivo. Nos dois casos, ele as usa para explicitar o novo paradigma – o pós-fordismo – como sendo a condição na qual as clivagens entre (i) trabalho e ação, e entre (ii) trabalho intelectual produtivo e improdutivo funcionam pelo avesso. A inversão diz respeito, como veremos, às transformações do intelecto: o intelecto, tornando-se público, tem como figura emblemática a figura do executor virtuoso. Com efeito, enfatiza Virno, uma das características fundamentais do mundo contemporâneo é a crise da política. Digamos que já não sabemos o que é, mesmo, hoje em dia, a práxis (ação) política. Com certeza, as dinâmicas políticas tradicionais, ligadas a processos de subjetivação bem delineados pela organização disciplinar da sociedade, já não funcionam. A fenomenologia disso, como sabemos, é a crise da representação: crise dos partidos e dos movimentos sociais organizados. Mas, o que é essa ação que entrou em crise? Como poderíamos defini-la? É aqui que Virno recupera Hannah Arendt que, por sua vez, lembra a filosofia grega.
Nessa tradição, a ação (práxis) se definia por duas linhas de diferenciação: distinguindo-se, por um lado, do trabalho da produção (poiesis) e, pelo outro, do pensamento puro (bios theoretikos). Diferentemente do trabalho da produção, que é repetitivo, taciturno, previsível, instrumental, a ação diz respeito não às relações com a matéria (com a natureza), mas com as próprias relações sociais. Ela lida com o possível e o imprevisto, e modifica seu contexto. Diferentemente do pensamento puro, que é solitário e não aparente, a ação é pública, entregue à exterioridade, à contingência, ao murmúrio da multidão.
Sabemos que Arendt afirmava em seu livro que o capitalismo industrial determinava a colonização da ação pelo trabalho: a práxis se tornava poiesis, um processo de fabricação cujos produtos são o partido, o Estado, a história. Na realidade, se, por um lado, é verdade que essa hibridação entre práxis e poiesis realmente aconteceu, pelo outro – na passagem do fordismo ao pósfordismo –, isso aconteceu em direção oposta: a práxis colonizou o trabalho. Ou seja, o trabalho introjetou os traços da ação política; a poiesis tornou-se práxis. Ao mesmo tempo, esse deslocamento fica em aberto, como que diante de uma alternativa radical: entre o eclipse da política (apontada, por exemplo, em Agamben 2006) e a difusão geral de um novo horizonte político. Estamos, pois, diante de uma nova alternativa; e passa a interessar apreender o que faz a diferença, o que qualifica essa alternativa. É exatamente aqui que entra a discussão sobre o terceiro termo de comparação, quer dizer, sobre a dinâmica do pensamento puro. É das formas de vida relacionadas ao intelecto (bios theoretikon) que depende uma alternativa, que opõe um intelecto difuso mas fragmentado a um intelecto público constituído por novas formas de atividade livre. Nesse nível, Virno propõe a metáfora do executor virtuoso, para estruturar essa reflexão, deslocando a distinção que Marx fazia entre trabalho intelectual produtivo e improdutivo. Com efeito, para Marx, o trabalho intelectual produtivo é aquele que se objetiviza em uma obra que existirá independentemente do ato de produzi-la. O ato (práxis) de produzir separa-se do produto. A produção é mais importante do que a práxis. A mercadoria se separa do produtor, em objetos distintos das prestações artísticas. São os livros, os quadros, as estátuas de quem escreve, pinta ou cria. Esse trabalho intelectual, dizia Marx, é produtivo pelo fato que, dessa maneira, ele produz mais-valia, ao contrário de um segundo tipo de trabalho intelectual, que não se objetiviza em obra nenhuma: trata-se das atividades cujos produtos são inseparáveis do ato de produzir. Nesse caso, a práxis coincide com a poiesis e a sobredetermina. Estamos falando das atividades que encontram seu cumprimento em si mesmas – como são todas as execuções virtuosas dos oradores, dos professores, dos médicos, dos padres, dos bailarinos etc. Nesses casos, dizia Marx, temos um trabalho intelectual improdutivo. Pode até ser um trabalho assalariado, mas ele não produz mais-valia, por não haver separação entre o ato de produzir e seu resultado. Para Marx, esse tipo de trabalho intelectual não é apenas improdutivo; este tipo de trabalho também contém elementos de tipo servil, pois funciona com base em prestações pessoais, prestações de serviços! Os executores virtuosos são, pois, improdutivos, embora seu trabalho seja de tipo servil: é uma prestação pessoal que coloca no mesmo patamar o grande músico e... sua empregada doméstica. Ao mesmo tempo, Hannah lembra que na tradição filosófica, o "virtuosismo" era a arquitrave da ética. Isso exatamente pelo fato que na ação não há separação entre meios e fins, a própria conduta virtuosa é um fim. Por isso, ela enfatizava: "As artes que não realizam nenhuma obra têm grande afinidades com a política". Dançarinos, atores e homem políticos precisam de um público para trabalhar, precisam de um espaço público, da presença de outrem. Ora, sugere Virno, o que caracteriza a transformação do trabalho, na passagem do fordismo ao pós-fordismo, à economia do conhecimento e das redes, é que a execução virtuosa – quer dizer a práxis – se torna o paradigma de todo e qualquer tipo de produção. No capitalismo contemporâneo, a atividade sem obra deixa de ser a exceção e se transforma em protótipo do trabalho em geral. O que a reprodutibilidade técnica da obra de arte – analisada por Walter Benjamin em uma fase inicial – parecia ter mantido, os movimentos do copyleft, do creative commons e do peer to peer estão varrendo.
O que está no cerne da produção é, sempre e de toda maneira, a ação, uma ação que é ao mesmo tempo pública e criativa. A práxis virtuosa torna-se o paradigma do trabalho em geral, pois hoje em dia o trabalho é comunicativo, linguístico, afetivo, relacional: este é o trabalho que encontramos nos serviços. Estamos, pois, muito próximos da condição da criação artística, quer dizer da definição proposta por Negri da noção de "belo": produção de excedente de ser, a partir de um trabalho livre. O "belo" é novo ser construído pelo trabalho colaborativo, coletivo: mixagem, recombinação, saque e dádiva generalizados. Ao mesmo tempo, esse deslocamento não é linearmente libertador ou emancipador. Ele apenas define o marco de um novo conflito. Como assinalamos, o próprio Marx tinha intuído que a execução virtuosa contém figuras opostas: as do grande músico, mas também as do mordomo ou... de uma empregada doméstica. Na execução virtuosa temos sempre uma prestação pessoal, quer dizer os elementos ambíguos próprios da mobilização produtiva da vida: por um lado, abre-se o horizonte de uma atividade livre e criativa; pelo outro, estamos presos em uma nova condição servil. Por um lado, a execução virtuosa aparece como o máximo de atividade livre e criativa; pelo outro, temos uma prestação pessoal que indica os termos de uma nova escravidão. A clivagem entre esse dois pólos não é sempre nítida. Isso porque entre eles há uma infinita modulação de condições que dosam graus diferentes de liberdade e servilismo: entre o trabalhador informal dotado de um telefone celular e o trabalhador intelectual continuamente conectado à rede. Ao mesmo tempo, porque – uma vez que essas dinâmicas correm por fora da tradicional relação salarial – nem sempre fica claro qual é o mecanismo que as separa e hierarquiza, ou seja, que modula o controle.
Ora, é fundamental apreender esse mecanismo e ele está exatamente nos modos de construção e funcionamento da "partitura" que o trabalhador virtuoso (o prestador de serviços) executa. No capitalismo das redes, do trabalho difuso na sociedade e da produção misturada com a circulação, a partitura do virtuoso é um Intelecto que se tornou público: saber social geral, competência lingü.stica comum, trabalho compartilhado das redes. Mas, esse tornar-se geral do intelecto não é um processo linear, nem unívoco. Quer dizer, a construção da nova partitura, do intelecto público, está completamente aberta em uma alternativa que corresponde à clivagem que separa a prestação virtuosa entre as novas formas de atividade livre e as formas de uma servidão renovada. Ou seja, por um lado, a partitura do intelecto pode ser o fato de uma esfera pública que permita a produção e reprodução (a circulação produtiva!) de suas dinâmicas livres e multitudinárias.
Nessa ponta, o intelecto público é constituinte: é aquele que encontramos no movimento do copyleft, do creative commons, dos pré-vestibulares para negros e pobres e dos movimentos culturais como a CUFA: aqui temos produção do belo, resistência e criação, o excedente de ser de uma vida livre e produtiva.
Pela outra ponta, a dimensão pública do intelecto pode ser capturada – pelo mercado e pelo Estado – pela sua sistemática redução a uma densa rede de relações hierárquicas. Nesse segundo caso, a imprescindível presença de outrem toma uma dupla forma perversa: dependência pessoal e arbitrariedade hierárquica que transformam a atividade produtiva do virtuoso em trabalho servil de novo tipo. Aqui, a esfera pública é constituída e sobredetermina as condições de existência do Intelecto em geral. A arte é capturada e reduzida à comunicação e ao marketing: trabalho fragmentado e precário e nova servidão do copyright. A arte de fazer-multidão é reduzida à produção de público-consumidor. Toda a vida é capturada dentro de um processo de produção que barra e estilhaça o ser nas mil formas da segregação espacial e da fragmentação social (a exclusão como horizonte que não pode ser ultrapassado!)
Temos aqui todos os elementos para apreender a importância das políticas que contribuem para a constituição de uma esfera pública de mobilização democrática e produtiva, para além do trabalho assalariado. Essas políticas, muito sem querer, dizem respeito à mudança do próprio modelo de transformação revolucionária. Em Marx, lembra Nancy, o revolucionamento da relação de produção (do assalariamento) continha, no próprio movimento da restituição do valor criado ao seu criador, uma transformação da significação da produção. Hoje em dia, a revolução é imediatamente criação, ou seja afirmação da significação da transformação. Organizar a luta (a ruptura do tempo como conquista do porvir) é a mesma coisa que organizar a produção, ao passo que a produção é cada vez mais uma criação e, viceversa, um devir: troca de trocas de pontos de vista, invenção da cultura dentro da relação. (
(1) Esse texto foi inicialmente publicado como Intermezzo em Giuseppe Cocco, Mundobraz: o devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil, Record, Rio de Janeirom 2009.
(2) A conferência foi filmada em 1987, difundida pela televisão francesa em 1989 e publicada pela primeira vez na revista Trafic, n. 27, em 1998. Aqui, nós usamos a coletânea de textos (Deleuze 2003:291-302). Aqui não pretendemos reconstituir o pensamento de Deleuze sobre a arte, mas apenas usar suas declarações como ponta-pé inicial dessa reflexão sobre as relações entre trabalho, arte e democracia.