Letramento midiático e digital: Prática educativa com base na cultura da comunicação, Adriana Veloso Meireles
Resumo: A pesquisa aborda as relações entre comunicação, educação e cultura na sociedade brasileira contemporânea. O objeto de análise é o letramento digital e midiático realizado pela Ação Cultura Digital, do Ministério da Cultura, junto a alguns Pontos de Cultura, instituições conveniadas com o programa Cultura Viva, também do Ministério da Cultura. Como resultado e conclusão apresenta-se um modelo base da metodologia aplicada pela Ação Cultura Digital entre 2005 e 2007 nas atividades junto aos Pontos de Cultura.
Introdução
O Programa Cultura Viva por si só é de grande relevância social, pois a partir dele descentralizam-se os recursos provenientes do Ministério da Cultura, com investimentos em mais de 800 instituições por todo território nacional que trabalham a cultura de diversas formas. Esta pesquisa aborda somente uma parcela deste todo complexo que é o programa Cultura Viva, parte da Ação Cultura Digital, e sua relação com a cultura popular e a educação. O objetivo da pesquisa foi analisar a atuação da Ação Cultura Digital, no Ministério da Cultura, entre 2005 e 2007, a partir da metodologia de atividades e pelo trabalho conceitual que tinha como objetivo facilitar a formação das redes de Pontos de Cultura. A pesquisa denominou de letramento digital e midiático estas práticas e documentou uma metodologia base destas atividades. Para realizar o estudo foram utilizados os seguintes materiais empíricos: o wiki da Ação Cultura Digital, que continha toda documentação online dos três anos de trabalho, tais como relatórios de avaliação, planejamentos de atividades, planos de trabalho, entre outros; os almanaques conceituais e os tutoriais de software produzidos pela equipe Cultura Digital em 2005 e 2006; depoimentos em vídeo de pessoas ligadas a Pontos de Cultura disponibilizados no site Estudiolivre.org, que tratam dos temas em questão ou documentam de alguma forma as atividades realizadas pela equipe da Ação Cultura Digital.
Cultura, comunicação e educação
Nas ciências sociais o conceito de cultura “carrega definitivamente uma marca antropológica” (Velho e Castro, 1978, p.1), e no ocidente assumiu o papel de explicar a alteridade, ou seja, as diferenças presentes em outras sociedades. Pode-se compreender a cultura como “instância humanizadora, que dá estabilidade às relações comportamentais e funciona como mecanismo adaptativo da espécie” (Velho e Castro, 1978, p. 5). Isto quer dizer que ao estarem inseridas em determinada sociedade as pessoas produzem códigos, verdadeiros aparelhos simbólicos, que interpretam a realidade e dão sentido ao mundo no qual se encontram.
No sentido antropológico, cultura tem muito a ver com comunicação, pois a cultura é um mundo de significados, é um código simbólico construído socialmente, isto é, em grupo, e compartilhado por todos os seus integrantes. Cultura é construção (FREIRE, 2001).
Nas diversas sociedades complexas contemporâneas a produção simbólica foca-se no nível das relações de produção, além de outros aspectos como a religião, a política local, a raça, a etnia, o gênero, entre outros critérios e características de uma malha horizontal que estão constantemente influenciando as pessoas. Dito isso é importante frisar que a cultura brasileira como unidade nacional nunca existiu, pois “não existe no Brasil contemporâneo um fator estruturante único capaz de dar inteligibilidade ao conjunto dos processos societários” (Sorj, 2000, p. 12).
Com a ascensão das novas mídias, em especial a Internet, surgem movimentos organizados em rede que se opõem à propriedade intelectual, à imposição cultural da sociedade de consumo, entre outras lutas contra o chamado neoliberalismo ideológico, político e econômico. O movimento do software livre e o movimento antiglobalização são exemplos que em muitas instâncias se convergem ideologicamente com o que atualmente denomina-se cultura livre. Uma das principais questões verticais destes movimentos é a generosidade intelectual, a livre troca de informações e de bens culturais. Tanto o movimento antiglobalização como o do software livre são “modelados explicitamente segundo as estruturas celulares, distribuídas, os sistemas auto-organizáveis” (Johnson, 2003, p. 168), assim como outros movimentos sociais que se apropriaram das novas mídias, como alguns grupos de mídia tática ao redor do mundo e, no Brasil, redes como a de Rádios Livres, Metareciclagem, Mocambos, entre outros.
Novos modelos pedagógicos são discutidos desde o século passado e suas influências são múltiplas e interdisciplinares. Uma teoria que muito influenciou novas formas de encarar o mundo é a tese do pensamento complexo de Edgar Morin (1991), na qual o autor francês desenvolve o paradoxo do uno e do todo, defendendo que o todo está contido nas partes e que por isso não se pode compreender o pensamento complexo a partir de uma perspectiva reducionista. Explicações para esta teoria foram realizadas em diversos campos tradicionais da ciência, da física à biologia, e têm como ponto em comum a crença de que “a mente humana não funciona de modo linear, mas por associação” (Ramal, 2002, p 136). Esta estrutura lógica da mente humana pode ser compreendida como uma interpretação dos signos, que envolve uma complexidade que leva em conta o ambiente, a história pessoal, a estrutura familiar, a formação política, a classe social, entre outras variáveis, que pode ser compreendida como “produto de reorganizações e recombinações de elementos” (Ramal, 2002, p 137).
Com estas referências em mente (que são abordadas mais a fundo no artigo completo) analisamos as oficinas produzidas pela Ação Cultura Digital, que não se caracterizavam nem como curso profissionalizante, muito menos como escola, a pesar de ser uma forma de aprendizagem.
Análise do contexto e metodologia de atividades da Ação Cultura Digital
O programa Cultura Viva promoveu a convergência entre a cultura digital emergente do uso de computadores pela sociedade civil brasileira e a cultura popular presente no folclore e na tradição oral. Não se pode afirmar que as pessoas dos Pontos de Cultura apropriaram-se dos conceitos trabalhados pela Ação Cultura Digital, pois o que ocorre de fato é uma relação dialógica, em que uns influenciam outros. É dizer, ainda que a cultura digital trouxesse elementos conceituais aparentemente novos, o que ocorre é um reconhecimento, uma comunhão com princípios presentes também nas culturas populares brasileiras. A equipe da Ação Cultura Digital não tinha resposta a todas as perguntas tampouco dominava por inteiro as ferramentas livres de produção audiovisual, encontrando respostas por meio da pesquisa e do desenvolvimento do trabalho junto aos Pontos de Cultura. Sendo assim, os conceitos trabalhados pela Ação Cultura Digital – metareciclagem, software livre, generosidade intelectual, desenvolvimento em rede, colaboração, autonomia, mídia autônoma e independente - serão analisados a partir de uma cartografia dos contextos em que se encontravam algumas destas diversas comunidades que se reúnem no programa Cultura Viva. A ampliação do conceito de cultura enquanto produção simbólica, direito, cidadania e economia, e a inserção das diversas iniciativas culturais em políticas públicas do MinC é um dos diferenciais que garantiram o sucesso do programa.
Já o trabalho de letramento em novas tecnologias realizado por grupos e coletivos da sociedade civil junto a comunidades locais teve uma experiência anterior significante que foi o projeto Autolabs. Este projeto, ocorrido no início de 2004, agregou instituições, grupos e coletivos para a construção e manutenção de três telecentros, em três distritos da zona leste de São Paulo. O diferencial da experiência dos Autolabs é que o projeto não trabalharia somente com o letramento digital, mas também com o midiático. É dizer, havia uma crença que o simples acesso por si só não era um agente transformador, havia uma cultura presente no uso das novas tecnologias que precisava ser abordada e conceituada. Fazia-se uma inclusão digital a partir da cultura e do incentivo à produção midiática.
A lógica de colaboração, de desenvolvimento em rede e de generosidade intelectual, pilares da cultura do software livre, encontra-se presente em diversas outras esferas, como na pedagogia de Paulo Freire, nos saberes necessários para educação do futuro de Edgar Morin e na cultura popular. De fato, de acordo com Chico Simões, do Pontão Invenção Brasileira, “não se tem notícia de um mestre que tenha cobrado algum dinheiro de um aprendiz. Foi essa generosidade intelectual encontrada na equipe da Ação Cultura Digital”. O Ponto de Cultura Invenção Brasileira faz parte da Rede Mocambos. Segundo Robson Sampaio, do Ponto de Cultura Casa de Cultua Tainã, de Campinas SP, a Rede Mocambos é uma rede de parceiros colaborativos que integra diferentes programas, projetos e ações voltados para o desenvolvimento humano, social, econômico, cultural, ambiental, preservação do patrimônio histórico e memória. É neste quilombo urbano, a Casa de Cultura Tainã, onde nasce a idéia da Rede Mocambos. O diferencial da rede Mocambos é que ela surge de forma autônoma, trabalhando com a identidade quilombola, tanto urbana quanto rural, com vistas à “possibilitar o acesso à informação, fortalecendo a prática da cidadania e a formação da identidade cultural, visando contribuir para a formação de indivíduos conscientes e atuantes na comunidade”, descreve Robson. A rede Mocambos defende o “uso e o desenvolvimento de Software Livre, já que ele permite e criação e o compartilhamento entre os nós e o mundo, chegando a uma inclusão social auto-determinada nos moldes que a comunidade quer”.
Praticamente todos os grupos que atuaram nos Autolabs tinham o trabalho com software livre como princípio, como o Metareciclagem, “uma rede auto-organizada que propõe a desconstrução da tecnologia para a transformação social”. A Metareciclagem tornou-se conceito e foi amplamente utilizada na Ação Cultura Digital do Ministério da Cultura.
Em paralelo ao desenvolvimento do trabalho da Ação da Cultura Digital, o movimento de democratização dos meios de comunicação fortalecia-se sustentado pela popularização das tecnologias audiovisuais, que criava a possibilidade para que os emissores se multiplicassem. Segundo Paulo Tavares, do Ponto de Cultura TV Ovo Espelho da Comunidade, de Santa Maria, RS, o digital é um divisor de águas na produção audiovisual, pois hoje em dia é bem mais possível de ser ter uma ilha de edição de vídeo em casa. Outro fator relevante e comum tanto às culturas populares, como mídia livre e a cultura digital era o fato de não se reconhecerem na mídia de massa.
Agora que temos a câmera na mão, temos a necessidade de fazer nossa mídia, pra gente ter identidade, se reconhecer, porque a outra mídia num mostra a gente. E temos também que começar a discutir que mídia, que coisa é essa que temos entrando na nossa casa.
O movimento de democratização da mídia trabalha muito com a idéia de retomada dos meios de produção de informação, “não esperando que a comunicação viesse de uma empresa, mas possibilitando que a comunidade se apoderasse do instrumento audiovisual para que ela mesma fizesse sua própria comunicação”, explica Tavares. O fato é que “sem a democratização de nossa mídia não há diversidade e pluralidade de informações” (Lima, 2006, p 63). Portanto, ainda que com várias semelhanças conceituais do software livre com a cultura popular, como a colaboração e a generosidade intelectual acima citadas, não foram as novas tecnologias ou a ‘inclusão digital’ que aproximou e fez possível a colaboração entre jovens da cultura digital e mestres e aprendizes da cultura popular. Foram culturas de resistência de ambas as partes que estavam à deriva tanto do governo como da cultura de massa que deram início a essa batalha simbólica na mídia.
Tinha-se encontrado um jeitinho brasileiro em comum, o que gerou a empatia necessária para a união da tradição e das novas ferramentas digitais no presente. Essa brasilidade expressa nas comunidades mais carentes por meio da gambiarra, do ‘puxadinho’ ou do ‘gato’, também estava presente na reapropriação das tecnologias para a transformação social. A reutilização inóspita de objetos com vistas a solucionar algum problema imediato, também fazia com que dez computadores sem funcionar se transformassem, por vezes, em duas ou mais estações de trabalho. Esta forma de solucionar os problemas cotidianos de injustiça social de todo cidadão brasileiro, que por vezes cria sistemas paralelos, como os camelôs, os kombeiros, entre outros, é uma brasilidade expressa em diversas esferas da sociedade e foi essencial para o desenvolvimento do trabalho da Ação Cultura Digital. Mesmo com um alcance desproporcional com relação ao crescente número de projetos, observa-se que o objetivo de empoderar comunidades na produção de sua própria mídia e na replicação dos conhecimentos em novas tecnologias em novas redes auto-organizadas foi cumprido. Por isso a análise de sua metodologia de atividades é relevante para uma abordagem da tecnologia que tenha uma função social.
É bom frisar que depois de um curto período de estranhamento e até oposição aos métodos pedagógicos usados pelos amigos da cultura digital nas primeiras oficinas de "metareciclagem e conhecimentos livres" percebemos que na verdade eles atuavam como os nossos mestres das culturas populares, apesar da diferença de idade e da forma de vestir... Pois não vinham com apostilas nem estabeleciam padrões do tipo: certo ou errado, pelo contrário, estimulavam o erro como forma de aprendizagem... e sem limites de tempo se dispunham a colaborar, convivendo, construindo o novo saber/fazer, para além da pura técnica e ao encontro da "comunhão" da celebração e do compartilhamento do prazer de estar vivo em construção.
A metodologia base da Ação Cultura Digital é resultado de uma construção coletiva de experiências de mediação pedagógica em mídia tática e em software livre desde 2003. É importante ressaltar que foi construída pela sociedade civil, que veio a integrar um programa de governo do Ministério da Cultura, no qual a inclusão digital era abordada pela cultura. Não se tratava de dar acesso ou simplesmente capacitar jovens, mas de abordar e trabalhar conceitos que levassem à uma prática diferente, a uma libertação por meio do conhecimento.
A construção do conhecimento na sociedade da informação precisa de uma abordagem em que os 'professores' e os 'alunos', “atuem como parceiros, desencadeando um processo de aprendizagem cooperativa para buscar a produção do conhecimento” (Behrens, 2000, p.75). De fato, na equipe da Ação Cultura Digital havia uma forte influência da Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire. O importante não era simplesmente aprender a manusear as novas tecnologias, mas sim o uso que seria feito delas. As bases conceituais deste trabalho tinham acepção de que ensinar exige pesquisa, criticidade, respeito aos saberes dos educandos, valorização da identidade cultural, estética e ética, corporificação das palavras pelo exemplo, enfim, que ensinar não é transferir conhecimento. Esta percepção estava clara para equipe da Ação Cultura Digital desde sempre, já que boa parte de seus integrantes eram provenientes de novos movimentos sociais e de redes. Sendo assim, ao longo de 2006, por meio dos mais de 40 Encontros de Conhecimentos Livres executados em todas as regiões do Brasil, desenvolveu-se um táticas de de trabalho. O objetivo dos Encontros de Conhecimentos Livres, produzidos sempre em conjunto com um ou mais Pontos de Cultura, era trabalhar a comunicação multimídia de culturas locais em mídias livres. Para tanto, inicialmente estabeleceu-se uma divisão por áreas - áudio, vídeo, gráfico e metareciclagem – com dois oficineiros responsáveis em cada uma delas. O público destes encontros variava em número – oficinas com 30 pessoas até 300 – e em prática havia desde pessoas que sequer tinham um e-mail a outras que já trabalhavam com ferramentas multimídia proprietárias.
Tal complexidade necessitava de uma metodologia inovadora, até porque o objetivo não era formar ninguém, mas sim despertar interesse e dar início a um processo de auto aprendizagem, já que com uma conexão à Internet, muito pode ser pesquisado e praticado. Por isso, uma das principais atividades, era a oficina ‘Se Joga na Rede’, que tinha como princípio despertar o ‘sevirismo’ online, ou seja, a propriedade de se virar com o que há de disponível, um dos conceitos base da metareciclagem. A atividade consistia em basicamente desvendar algumas práticas que facilitam o uso da Internet. Esta oficina básica introduzia uma etapa transversal à metodologia, pois focava em demonstrar que o produto da colaboração, que é o conhecimento compartilhado, está presente em nossa vida em sociedade, em nossa cultura humana, não somente a digital, mas também as diversas práticas culturais regionais, como pontos iguais na diferença.
É importante ressaltar também que esta sistematização da metodologia de atividades da Ação Cultura Digital não se pretende ser universalista, simplesmente converge pontos em comum e características desenvolvidas regionalmente pela equipe da Ação Cultura Digital entre 2005 e 2007. Para fins de sistematização, dividiu-se a metodologia em seis etapas básicas, que podem se alternar e variar, mas que independente de sua ordem, estão presentes e são essenciais para o trabalho conceitual. São elas; choque, proposta, realização, ausência, análise e conclusão.
Após as primeiras oficinas realizadas ainda em 2005, quando havia aproximadamente 346 projetos conveniados, percebeu-se que algumas pessoas esperavam dos Encontros de Conhecimentos Livres um certificado de presença do Ministério da Cultura e uma aula com carteiras enfileiradas como na escola. Para romper com tal expectativa desenvolveu-se o primeiro passo da metodologia de atividades da Cultura Digital, que consiste no choque, ou a quebra de paradigmas. Os Encontros passam a ter início com uma grande atividade lúdica, criação de mapas da mente, jogos de palavras, entre outras formas de mediação pedagógica que tinham como objetivo apresentar alguns dos novos conceitos e práticas. Estas atividades funcionavam a partir da colaboração evidenciando que “embora ainda represente o papel do especialista, o professor (no caso o/a oficineiro/a), desempenhará o papel de orientador das atividades do aluno, de consultor, de facilitador da aprendizagem” (Masetto, 2000, p.142). Com isto quebrava-se o olhar comum do oficineiro como professor e a relação entre todos se tornava mais horizontal.
A próxima etapa consistia em apresentar uma proposta de trabalho. Em alguns momentos foi aplicada a metodologia de um projeto que permeasse todas as áreas trabalhadas – áudio, gráfico, vídeo e metareciclagem. Esta “prática pedagógica, com visão de totalidade, que propõe o conhecimento em rede, em sistemas integrados e interconectados” (Beherens, 2000, p. 92) facilitava com que as atividades corressem de forma mais fluída, pois abria espaço para um trabalho em equipe no qual cada um desempenha a função que mais estava interessado e/ou confortável. Isto ajudava a diminuir as diferenças e aumentar a auto-estima do grupo, pois se alguém semi-analfabeto não podia escrever o roteiro de um vídeo, por exemplo, poderia, por sua vez executar as entrevistas, ou gravar uma música. Além disso, esta abordagem potencializa a construção de redes entre os próprios participantes, que se comunicam após o Encontro.
Na parte de execução do projeto, era muito sublinhado o modo processual do produto, ressaltando um dos paradigmas que se modifica com o modus operandi do software livre.
A dinâmica de produção, as regras de circulação de produtos e a mudança de comportamento diante dos meios, operada por sua lógica de utilização, do software livre difere do proprietário não só quanto à natureza de sua materialidade, mas, principalmente, quanto às relações sociais em que está inserido. (...) Enquanto o modelo proprietário é baseado na competição e retenção de informação, o livre é motivado pela colaboração e generosidade. Em qualquer dos níveis de interatividade, estabelecem-se relações multidimensionais desenvolvedor/usuário que são alternativas às relações unilaterais produtor/consumidor ou provedor/cliente. Como resultado, obtém-se um produto que ao mesmo tempo é um processo. Esse processo pode ser definido como um ciclo de realimentação cumulativo, que faz a rede pensar e baseia-se no compartilhamento de informação como força motriz da inovação tecnológica e da produção de bens culturais (BALVEDI, 2006) .
Nesta etapa, o oficineiro segue atuando como orientador do grupo e ao perceber a colaboração entre os mesmos retira-se do recinto para o estágio quarto da metodologia que é a ausência. Defende-se o afastamento do orientador da turma com vistas a motivar a ajuda mútua entre o grupo e o ‘sevirismo’. O fato de o oficineiro não estar presente leva com que as pessoas busquem soluções para as dificuldades encontradas ao invés de ir pelo caminho mais fácil, que seria perguntar ao suposto especialista. Outro fator importante que ocorre durante esta etapa são as confissões entre os oficineiros, ou seja, muito é dito, criticado, levantado e abordado acerca da dinâmica, justamente porque o objeto de crítica não está presente. Mais uma vez o grupo debate, mas desta vez sem interferência.
No retorno, o oficineiro conversa com o grupo com vistas a avaliar a atividade. Aqui existe outro choque, pois o trabalho não está concluído, mas o interessante é justamente aproveitar as críticas para poder concluir o trabalho com mais eficiência. “A negociação conjunta das atividades pressupõe que os alunos terão voz e que o consenso deverá ser atingido pelo grupo com o intuito de responsabilizá-los pelo sucesso ou fracasso da proposta” (Beherens, 2000, p. 106).
Por fim, a etapa de conclusão é o momento decisivo no qual as dúvidas são sanadas e as redes de colaboração entre os participantes são delineadas com mais nitidez. Neste momento, a percepção e a sensibilidade do oficineiro é essencial, pois aqui é o momento em que ele deve atuar como facilitador, cruzando informações sobre a área de atuação e demandas de cada um com vistas a potencializar a construção orgânica da rede. Na maioria das vezes, os Encontros de Conhecimentos Livres terminavam com uma mostra coletiva dos trabalhos dos grupos. Esta nova forma de mediação pedagógica foi aplicada pela Ação Cultura Digital do Ministério da Cultura, ainda que não tenha se estabelecido como política pública. De fato é incomum ver a inclusão digital ser abordada como letramento digital e midiático.
Conclusão
Um dos grandes méritos do Programa Cultura Viva foi promover a aproximação entre as culturas populares brasileiras e as emergentes culturas digitais tupiniquins, ambas em várias formas e abrangentes em sua diversidade. Desta forma traçou-se pontos em comum de teorias e práticas tradicionais e experimentais, cuja ramificação central aproxima-se da antropo-ética, “que supõe a decisão consciente e esclarecida de assumir a condição humana indivíduo/sociedade/espécie na complexidade do nosso ser” (Morin, 2007, p. 106). Além disso, a partir a sistematização e análise da atuação da Ação Cultura Digital, por meio das atividades realizadas nos Encontros de Conhecimentos Livres, foi possível traçar uma metodologia base, cuja autoria é coletiva, pois foi a partir de práticas e erros que se pode traçar um perfil de orientação pedagógica. Percebeu-se que as bases conceituais que orientaram esta prática são uma evolução, uma adaptação do método Paulo Freire de alfabetização, aplicado como política pública no início dos anos 1960, até a repressão da ditadura militar.
De lá até os dias de hoje, muita coisa mudou, inclusive os conceitos de alfabetização e letramento. Além disso, houve uma evolução técnica que culminou na popularização das ferramentas digitais e possibilitou que o Ministério da Cultura incorporasse a cultura digital como prática. Ainda assim é preciso ressaltar que a sistematização realizada neste trabalho pode servir de base para a construção de uma política pública de letramento digital e midiático. Este exercício de análise, na medida do possível, agregou as práticas mais relevantes da Ação Cultura Digital em termos de metodologia de atividades e conceituação em uma sistematização que pode ser aplicada com vistas a aperfeiçoar trabalhos de inclusão digital.
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