Discurso selvagem, Néstor Gutiérrez
Atenienses:
Um mal contagioso invadiu a Grécia, mal funesto que faz
necessárias vossa vigilância e a proteção da Fortuna. Os
cidadãos mais notáveis que cada Estado acreditou serem
dignos de dirigir seus assuntos, renegam a liberdade, e
adornando-se com os nomes de hóspedes e de amigos
íntimos de Filipo, evocam e preparam a servidão.
DEMÓSTENES
(Acusação contra Esquines no Processo da Embaixada)
Estou parado na fila para entrar no Refeitório. Penso que deve haver algum problema porque não avançamos há cinco minutos. Avançamos um pouco. Detemo-nos outra vez por um tempo prolongado. E quando finalmente estou em frente à catraca, percebo que o último tíquete que tinha já não está comigo. Sinto uma pontada no lóbulo direito: primeiro aviso de enxaqueca. Considero a possibilidade de discutir com a pessoa encarregada de receber os tíquetes mas desisto da idéia rapidamente. Viro-me. Vejo a grande fila adiante. Faço o possível para não gritar. Afasto bruscamente a bolsa da pessoa ao lado para voltar, abrindo caminho pela multidão, até sair. Respiro fundo. Outra vez. Penso no desconforto de esperar novamente na fila. Resigno-me. Dirijo-me até o guichê onde vendem os tíquetes sem ter que caminhar muito. Esta fila também é grande, não tanto como a primeira mas o suficiente para me fazer hesitar. As pessoas ao meu lado falam alto e ao mesmo tempo. Gritam. Estão eufóricas. Não posso entender que alguém se expresse com tanta emoção dadas as circunstâncias, que se não são exatamente as minhas, pelo menos coincidem no clima severo e no tédio da espera. Sinto raiva e quero mandar que se calem, mas não me atrevo. Ponho a mochila em cima da cabeça para diminuir um pouco o sol. A mochila pesa e meus braços se queixam. Prefiro dor nos braços à dor de cabeça.
Três sujeitos cumprimentam o grupo que esta a minha frente. Eles não dissimulam sua emoção e a demonstram efusivamente. Se abraçam e se beijam. Gritam. Todos gritam. Os sujeitos entram na fila bem na minha frente. Um deles se dá conta de minha contrariedade e me pergunta se há algum problema. Demoro em responder. Respondo “Não, nenhum problema” com muita dificuldade. O sujeito nota minha hipocrisia sem dar-lhe muita importância. Vira-se e imediatamente retorna à conversa de seu grupo, que mais que uma conversa, soa como o murmúrio caótico de um bosque. Olho o relógio. Tenho pouco tempo para almoçar. Sinto necessidade de culpar alguém mas antes meus pensamentos mudam de rumo num estalo, ocupando-se de novo do efeito do sol sobre minha cabeça: segunda pontada.
O grupo na minha frente sai da fila intempestivamente. Alegra-me não mais escutá-los. Para minha surpresa somente três pessoas me separam do guichê. Um ar fresco percorre meu corpo e me dá ânimo para continuar. As três pessoas são despachadas rapidamente. Separo o dinheiro. Pago. A voz trás do vidro preto do guichê me informa laconicamente que não tem troco. Sem discutir e olhando para o chão, saio da fila. Dirijo-me pela segunda vez à fila da entrada do Refeitório. Outra surpresa agradável: a fila é menor do que eu imaginava. Tento sorrir, sem muito sucesso. Estou tão perto da pessoa em frente que seu cabelo me tapa a visão. O odor de sebo do cabelo me desestabiliza. Olho para baixo. Sinto-me asfixiado. Meu pensamento e raciocínio se nublam. Empurro o sujeito. Me olha surpreso com a mesma cara que havia lhe dado. Olho-o diretamente nos olhos, com um olhar de todo mal-intencionado e levantando ligeiramente uma sobrancelha. Ainda visivelmente surpreso pergunta: “Por que me empurra?” Não respondo. Me devolve o empurrão e me diz: “Qual seu problema, idiota?” Respondo “Qual o seu, maldito nazista?” Me pergunta: “Que disse?” Respondo “Está surdo?” Me empurra de novo. Volto a chamá-lo de “nazista”. Olhamo-nos nos olhos. Os dele desconcertados e bravos, os meus desumanizados. Digo-lhe: “Você me humilha por que sou moreno”. Me responde: “Mas…você me empurrou primeiro!” Chamo-o de “nazista” mais uma vez. O amigo o toma pelo braço e diz que não vale a pena. Antes que responda, digo-lhe “Claro, não valho a pena.” Me olham como se não acreditassem no que escutam. Meneiam a cabeça, viram-se e passam pela catraca.
Estar em frente à catraca me tranqüiliza um pouco. Ouço-os perguntando-se “O que foi isso?”. Tiro o tíquete da carteira e entrego junto com meu documento. Acho difícil passar pela catraca. Sinto-me debilitado. Avanço um pouco. Dirijo-me ao balcão de distribuição B. Pego bandeja, prato e talheres. Estão escorrendo água. Estão quentes, suando. Acabaram de lavá-los e mesmo assim fica evidente o hálito da pessoa que os usou há poucos minutos. Digo: “Pouco feijão e os ponha ao lado do arroz”, e recebo mais feijão que o usual, em cima do arroz, molhando-o todo. Depois vem a camada de proteína, seguida da de verdura. Vêm-me a cabeça a imagem de um cavalo de corrida. Pergunto-me se alguém tem a capacidade de comer um prato inteiro, e lembro que sou dos poucos que deixam comida. Por que camadas? Por que não separar os grupos alimentícios independentemente. Que se toquem mas sem misturarem-se. Enquanto enchem meu prato forço a vista procurando assento. O reflexo da metade superior de meu corpo se sobrepõe ao corpo da pessoa parada em frente a mim do outro lado do grande vidro que separa balcão e refeitório. A imagem me causa calafrios.
Feijão, 1 escumadeira (93 kcal.)/ Arroz, 1 escumadeira (156 kcal.)/ Couve refogado, 1 porção (101 kcal.)/ Frango a milanesa, 1 porção (251 kcal.)/ Mini-pão, 1 unidade (47 kcal.)/ Salada de alface, 1 porção ( 8 kcal.)/ Suco de laranja, 1 copo (91 kcal.) Passo a segunda catraca que controla o acesso ao Refeitório. Olho ao redor procurando assento. Não parece haver nenhum livre. Detenho-me ao lado de uma pessoa cujo prato está quase vazio. Ela fala com o sujeito à sua direita. São as únicas pessoas que vejo falando no perímetro, o resto trata de comer. Olho ao redor de novo. Conto as mesas em voz alta, quem sabe para anular meus pensamentos, quem sabe como mecanismo de defesa, e quando digo “quinze”, a pessoa do prato vazio me olha. Parece incomodada com minha presença. Olho-a com desprezo. Ela prevê a possibilidade de uma discussão, como se fosse especialista em linguagem dos olhos. Prefere evitar o desgaste. Despede-se de seu interlocutor, agarra a bandeja, pára e caminha até o cartaz que diz ‘devolução de bandejas’.
Sento-me. O assento retém o calor da pessoa que acabou de levantar-se. Sinto uma gota de suor escorrendo-me pela frente. Tenho as axilas empapadas. As costas também. Sinto nojo do meu corpo. O indivíduo à minha direita se levanta rapidamente, derrubando meu copo de suco. Me diz: “Perdão, foi sem querer”. Não o olho. Penso que a única coisa que eu queria era o suco. Vejo a protuberância de comida a minha frente. Olho a esquerda e a direita como que procurando uma saída. Alargo a gola da camisa com a mão. A luz de dentro é branca e fria. Entendo-a como uma provocação. Contradiz o clima. Caçoa de nós em nossa cara. As janelas estão abertas mas o ambiente é tão espesso que as moléculas do ar parecem mais sólidas do que as paredes. Linóleo amarelo preenchendo os vazios. Reconheço muitas das pessoas ao meu redor. Se não desconfiasse de minha memória, asseguraria que sempre somos os mesmos. Penso no incidente com o sujeito do cabelo seboso, e ainda não me resta a menor dúvida de que o provoquei, guardo-lhe rancor e sinto necessidade de insultá-lo de novo.
A pessoa ao lado rasga o pão em pequenos pedaços, deixa-os cair no prato e mistura tudo. Parte da comida cai sobre a bandeja. Recolhe-a e continua misturando. Contemplo o resultado. Penso que é uma premonição. Aquele prato é um símbolo. Olho para cima e vejo uma retícula interminável suspensa sobre o teto negro. Quadrados de madeira brancos que se repetem. Creio que vou desmaiar mas recupero-me logo. O piso, também negro, reverbera o teto interminavelmente, como dois espelhos postos frente a frente, dois espelhos negros. Um repetindo pequenos relevos circulares, o outro repetindo quadrados. À minha direita há uma pessoa parada carregando uma bandeja. Eu a olho. Ela me faz entender que quer se sentar. Não respondo. Me pergunta se vou me demorar. Seco o suor da minha testa em um movimento rápido e respondo: “Sabe... eu ainda nem comecei”. Levanto-me na hora. Salto em cima da mesa. A pessoa assume uma expressão infantil que me anima a continuar. O único sinal de vida que percebo dentro do Refeitório. Tomo forças nesta imagem e começo:
Companheiros:
Estou aqui com vocês. Assim é. Se algo importa neste momento é demonstrar minha presença, nossa presença, afirmarmo-nos como presenças, rechaçando a diminuição de que temos sido vítimas ao enfrentar este edifício produtor de zumbis. Companheiros, estamos sendo contagiados com este vírus letal do ausentismo. Cada vez que nos submetemos aos rigores desta máquina arquitetônica, quando entregamos nossos corpos a disposição espacial do refeitório comunal, nos é arrebatada a vida durante o tempo de permanência, como uma apoplexia induzida. Quanto mais freqüentamos este edifício, a duração de seu efeito sobre nós se estende e se acumula assaltando-nos em diferentes espaços e momentos do nosso quotidiano, não apenas dentro do Refeitório, mas também em nossos lares, enquanto trabalhamos, durante nossos momentos de ócio, sua presença adquire a dimensão de onipresença. Neste edifício cada elemento foi estrategicamente disposto. Pensem na vertigem provocada pela cor amarelo-queimado das cadeiras, contrastando com o negro do piso. A grande retícula branca tapando o teto escuro que nos induz a compartilhar seu estado de suspensão, ou o desfile de luzes brancas que nos introduz em uma vitrine maligna falsamente oferecida como redenção, ou o contato metálico com esses fiscais que se fazem passar por catracas. Pensem no arame farpado que coroa a cerca que rodeia o edifício. Pensem nas falsas paredes cor de creme, ou na sinalização. Companheiros, este edifício quer nos subtrair do espaço e do tempo enquanto cumprimos com nossa necessidade diária de alimentarmo-nos. Quer arrebatar nosso espírito vital, ausentando-nos de nós mesmos, mas senhoras e senhores, estamos presentes. Aproveito nossa convergência e peço uns minutos de atenção para expressar algumas idéias sobre a vida e sobre a morte.
Dirão que a morte não lhes cabe, que concentre meu discurso na seção que se refere à vida. Que fale por exemplo do sol que nos cobre com seu manto incondicional, do ar que enche nossos pulmões, das belas aves coloridas que nos observam com compaixão desde as janelas de nosso limbo compartilhado, do robusto oceano, dos alimentos... “Não queremos mais sofistas!” grita aquele sujeito da esquina. Estou de acordo mas agregaria: Não queremos mais eufemismos! O menu de hoje: Feijão, 1 escumadeira (93 kcal.)/ Arroz, 1 escumadeira (156 kcal.)/ Couve refogado, 1 porção (101 kcal.)/ Frango a milanesa, 1 porção (251 kcal.)/ Mini-pão, 1 unidade (47 kcal.)/ Salada de alface, 1 porção ( 8 kcal.)/ Suco de laranja, 1 copo (91 kcal.). Pensamos que a comida nos proporciona energia vital e agradecemos ao recebê-la. Mas as 251 kcal. de frango não são de qualquer tipo de frango. Isto, companheiros – agacho-me e meto a mão no prato do meu vizinho – é uma especialidade africana milenar. Isto – aponto – é conhecido pelo nome de Frango à Egípcia.
Todos os dias na hora do almoço nos prestamos dócil e agradecidamente a receber uma múmia que irrompe pelos nossos organismos como um fantasma. Sua presença é ativa. Lentamente, respeitando o processo digestivo, cola-se a nossas carnes num ato de sincretismo do maior refinamento. Sempre silenciosa, como corresponde a sua condição, entrega-se a nós prostrada sobre o prato, seguindo a lógica de rituais de sacrifício milenares. Um sacrifício duplo composto pelo par ela/nós. É assim que a múmia inicia a tarefa de induzir-nos ao seu limbo existencial. A dádiva da vida eterna. A dádiva da morte. Existem hipóteses que interpretam o sacrifício da múmia como sua própria vontade de deixar o limbo e, mediante o oferecimento de seu corpo, dar-se à morte absoluta, doando sua condição a outra entidade, neste caso a nós. Obviamente uma hipótese errada já que a condição de morto vivente exclui a possibilidade de atuar com vontade própria. Uma múmia não escolhe, uma múmia é usada. Cabe a nós perguntarmos quem administra as múmias. Recuso-me a continuar comendo no Refeitório até saber quem, ou o quê, dispõe das múmias e com que fins. Por tudo isso convido a todos a fecharem a boca para a múmia, a que rechacem seu convite provocativo.
Estimados companheiros, convido a todos que se unam a Grande Greve de Fome do Refeitório, aquela que será recordada por nossos filhos, netos e bisnetos como a maior tentativa de esclarecimento administrativo, saneamento espacial e revolução alimentícia.
Não só pedimos mudança imediata de carne e remodelação do local de alimentação, também pedimos que se esclareça esta farmacodinâmica sombria, solapadamente obscura. Não estamos negociando, estamos exigindo a verdade! ( A multidão se levanta dos assentos, aplaude, se anima em meio à exaltação).
Um sujeito sobe na mesa. Digo-lhe que a mesa é minha: “Esta é minha mesa”. O personagem ri, seguramente tomando minhas palavras como brincadeira. Eu o empurro. Cai no chão e submerge no mar de gente. Reaparece sua cabeça que parece gritar-me algo. Não o escuto. Sua presença se dissolve na multidão até desaparecer. Restam apenas seus ossos esquecidos sobre o piso. O calor aumenta progressivamente com o ruído. Não o suporto. Reincorporo-me ao papel de revolucionário. Digo-lhes “Silêncio por favor!” Me escutam e obedecem. O Refeitório se converte num deserto. Nem um murmúrio. Sinto-me satisfeito, tranqüilo. Creio que não preciso de mais. Considero a possibilidade de acabar com minha revolução agora, enquanto ainda estou ganhando. Tenho o silêncio. Mesmo assim, continuo:
Nenhum de vocês se deu conta mas um homem acaba de morrer em batalha. Seus ossos invisíveis, estão empilhados sobre o piso formando a estrutura de uma pirâmide frágil, cumprindo as funções simbólicas de demarcar o perímetro onde se consumou a morte e recordá-la. Contemplem seu futuro próximo, tanto invisível como iminente. Iminente, se nos omitirmos em relação à única, a última opção que nos resta: a Grande Greve de Fome do Refeitório. A proposta é simples em sua aparência, mas eficiente como pressão. Permaneceremos neste recinto sem dar uma mordida até que as diretrizes na pessoa do Exmo. Sr. Dr. se dignem a suprimir as múmias do menu, levem a cabo adequações drásticas nas instalações do Refeitório, gerando um ambiente acorde com a atividade diária da alimentação, e acima de tudo, aclarem o modus operandi (agora parcialmente desmascarado), os implicados e a finalidade por trás da ‘Conspiração da Múmia’. Mas ouçam-me bem quando digo que não podemos comer um grão de arroz até que nosso pedido seja satisfeito. A viabilidade de nossa empresa depende de sua veracidade. Esta não é uma greve simbólica como tantas outras. Não se trata de uma mise-en-scène, nem de uma ocupação de meio prazo para espíritos inquietos. Cansados de tanta pantomima exigimos feitos reais, e os exigimos dando-nos de exemplo na própria carne do que significa ser conseqüente. (Aplausos esperançosos retumbam dentro do mausoléu).
(Um ano depois)
Atenienses:
De tudo quanto dirá Demóstenes, eis aqui, pelos deuses do
Olimpo!, o que me indigna mais: que me compare às
sereias. Assim como elas matam os que cedem ao encanto
de sua melodia, tristemente famosa, assim dirá: “a arte
e o talento de Esquines causa a perda de sua audiência”.
ESQUINES
(Acusação contra Demóstenes no Processo da Coroa)
Companheiros, dirijo-me a vocês nesta ocasião para comemorar o primeiro aniversário da Grande Greve de Fome do Refeitório. Começarei honrando a memória de nossos heróis mortos. Aqueles que pereceram valente e dignamente sobre o campo de batalha depois de ações magníficas, participando ativamente da greve, entregando suas próprias vidas para defender a causa, podem sentir-se satisfeitos por que sua valentia nos manteve em pé até o presente dia. A estes heróis e a vocês aqui presentes quero agradecer pelo comprometimento, confundindo-os na mesma glória, que nos une ao estabelecer entre nós uma comunidade de virtudes. Sem sua entrega esta greve não seria possível. Mas também por vocês e em busca de um melhor futuro, estamos aqui. E estaremos até conseguir a vitória.
Temos sofrido algumas dissidências de revolucionários sem convicção, e o que é pior, desprovidos de suficiente desejo libertário e guiados por suas falsas consciências. Ai daqueles que nos trairão. Viverão o resto de seus vergonhosos dias carregando o peso dessas falsas consciências, e mais cedo do que tarde se arrependerão. Partiram sem honra e se privaram de compartilhar conosco o magnífico porvir que nos espera. Mas nego-me a continuar desperdiçando palavras com aqueles covardes. O importante agora é que nós que continuamos, permaneçamos juntos e olhando para o mesmo horizonte de justiça que nos tem guiado durante o último ano.
Recebi um comunicado da Administração esta madrugada. Dizia que cederão a nossa petição de mudar a cor do piso do Refeitório. Que terão em conta o dinheiro correspondente à remodelação no orçamento do ano que vem. Apesar de ser uma das melhores propostas que recebemos neste ano de luta, está longe de ser suficiente. Não menciono a soma de dinheiro que estão dispostos a ceder por respeito a vocês, não quererão saber a falta de decência com que nos trataram. Se aceitássemos, trairíamos as convicções que nos tem mantido lutando até agora. Desonraríamos a memória dos valentes combatentes que entregaram suas vidas para servir nossa causa. É evidente que não podemos ceder agora. Trata-se de um anzol posto pelos Administradores espertos, para testar nossa vontade, convencidos de que cederemos ante suas migalhas. É certo que temos fome, mas umas poucas sobras não a acalmarão. Agora mais do que nunca devemos resistir, mantermo-nos firmes e continuar com nossa abstinência. Estamos mais perto do que nunca de nossa vitória final! Eles já começaram a ceder e a lógica dos acontecimentos nos leva a induzir que se trata do começo de uma constante que a qualquer momento desembocará no cumprimento de todas as nossas exigências. É questão de nos mantermos firmes em nossas demandas originais e manter o semblante. Falta pouco, posso sentir... (Os revolucionários começam a discutir entre si . Protestam. Dizem que não continuarão, que têm fome. Alguns tentam subir a mesa).
A poucos metros de minha mesa, roendo ossos de revolucionários mortos em combate, está a matilha de cães selvagens que se instalou dentro de nossa sede e que acompanhou nossa aventura revolucionária desde suas origens. São os mesmo cães que perambulavam como chacais nos arredores do Refeitório, a procura do mesmo que nós, alimentação, e que paradoxalmente a encontraram dentro de nossa sede revolucionária da fome. Durante muito tempo não quisemos tirar a matilha por que cumpria um papel útil ao limpar a sede de cadáveres. Mas sendo eles os únicos que se alimentavam no recinto, notaram nossa debilidade física e psicológica, e ultimamente perderam a paciência (ou o medo) de esperar a morte de algum revolucionário, e tomaram a liberdade de comer quando melhor o considerarem, assumindo com freqüência o papel de caçadores. Hoje em dia ninguém se atreve a expulsá-los. Conheço os perigos de deixar minha mesa. Mas sabendo-me negligenciado, e vendo com claridade que os revolucionários me trairão cedo ou tarde, decido enfrentar os cães pela primeira vez.
Pego minha manta de acampamento. Ponho-a sobre meu corpo, cobrindo-me inteiro, da cabeça aos pés. Lanço-me ao vazio. Penso que não tocava o piso havia três anos. Sinto-me diferente. Pego a vassoura que está ao lado da mesa. Os cães me rodeiam. Não posso vê-los mas sinto sua presença. São dez, quinze. O primeiro chega perto. Espero com paciência. Está perto mas não o suficiente. Não se decide a me enfrentar. Espero um pouco mais. Se aproxima timidamente. Quando alcança a proximidade suficiente para me atacar reajo lançando um golpe de vassoura. O cão gane e se afasta. Outro se aproxima. O recebo com um golpe no que parecem ser suas costelas. Agora nenhum se atreve a me enfrentar. Espero um pouco mantendo os sentidos alertas. A presença dos cães se multiplica, não sei se chegaram reforços ou os ânimos dos já presentes se acresceram. Suponho que re-planejam sua estratégia e que agora serão mais cautelosos. Seguramente não estavam acostumados a enfrentar a mínima resistência, a maioria dos revolucionários restantes estão em piores condições físicas que eu. Um cão se aproxima. Lanço um golpe mas desta vez no ar. Tal como pressenti, agora são mais cautelosos. Sinto a presença de três aproximando-se lentamente. Com precaução. Giro trezentos e sessenta graus sobre meu próprio eixo com a vassoura como hélice. No ar. Justo no instante em que paro, sinto que puxam a manta. Aproveitam o momento certo e me surpreendem quando menos espero um ataque. Um deles morde a manta e puxa. Eu ponho resistência e lanço um golpe. Desta vez acerto a cara do cão possivelmente rompendo alguns de seus ossos. Mando outro golpe. Acerto mas este nem chia nem desiste. Penso que é um cão valente e me alegra sua atitude. Começa a puxar de outro lado da manta. Resisto. Aproximam-se mais cães, sinto seu ranger de dentes. Agora puxam por três flancos de uma vez. Agora de quatro. Cinco. Agora por todos os lados. A manta se estica. Chega ao máximo nível de resistência e se rompe.
Desfaço-me da manta, agacho-me e enfrento os cães de joelhos e mãos no chão, assumindo sua mesma postura. Estou desarmado embora cheio de vigor. Ladro. Os cães me olham surpresos. Mordo o que está mais próximo de mim. Gane e se afasta. Os outros retrocedem mas mantém a vista fixa em mim. Sinto nossa proximidade. No fundo queremos o mesmo. Eles também a percebem. Contudo um, o maior, que parece ser líder da matilha, se aproxima. Sei que não tem intenções de compartilhar nada comigo. Também entendo que o duelo está marcado e que o único final possível é a morte de um dos dois, assim encaro-o sem reservas. Retrocede ante meu ataque. Mede o terreno. Nota-se sua experiência. Percebe uma pequena distração minha e aproveita para atacar com todo seu vigor. Dá um salto e quase imediatamente está sobre mim. Por sorte morde o colarinho da camisa, bem endurecido pelo tempo, cravando só ligeiramente um de seus caninos debaixo de minha clavícula. Recomponho-me furioso. Mando-lhe a mão com o punho fechado na cara. Lhe dói. Salto-lhe em cima, fecho seu focinho com as duas mãos, mordo seu pescoço, logo no crânio e novamente no pescoço. Solto-o para golpeá-lo com as mãos. E golpeio repetidamente. Meu opositor perde o equilíbrio e cai no chão. Trata de levantar-se mas volta a cair. Se recompõe mas cai mais uma vez. Levanta e torna a cair repetidamente. Aproximo-me lentamente como quem se sabe dono do momento e centro do espetáculo. Espero um instante. Vê-lo prostrado no chão sem a menor esperança em suas faculdades individuais me dá pena de certa forma. Também me fortalece. Aplico-lhe o golpe final.
O resto da matilha entende a situação. Me reconhecem como parte do grupo. Sacudo-me e levanto a cabeça em um gesto que dá conta do fim da luta e de minha vitória. Uivo, não como cão, mas como lobo. Sorrio como cão e me dirijo até a porta do Refeitório. Dou uma olhada para a matilha. Saímos caminhando.