Uma pergunta para Guilherme Bueno
Gilberto Mariotti: Partindo das questões colocadas pelo texto, ou até das respostas que ele contém, o MAC Niterói me parece um caso emblemático de uma certa tensão ou ambiguidade entre modernidade e contemporaneidade. Como é dirigir um museu em que a arquitetura tem papel tão ativo sobre a dinâmica da instituição? Como pensar a ação curatorial para esta situação em específico?
Guilherme Bueno: Boa pergunta. Desconfio que a resposta ainda não se definiu, mesmo porque ela precisa ser reescrita de tempos em tempos. Apenas colocando um parêntesis, lembro do museu de crescimento ilimitado, vislumbrado por Le Corbusier, que previa uma construção em caracol infinita (e parêntesis dentro do parêntesis: e que, de certo modo, reproduzia a dinâmica do crescimento urbano de Paris - isto me ocorre apenas como outra analogia na relação mediada pela historia entre o espaço da "arte" e o espaço "real"), ou seja, na qual estava implícita a idéia de seguir a dinâmica do tempo. O mesmo vale para um texto do Mondrian, que também imaginava um museu de arte contemporânea - no caso entenda-se por contemporânea aquela do "seu tempo".
Voltando concretamente ao assunto: além de ter que lidar com diferentes "velocidades" no museu, isto é, apresentar desde uma arte contemporânea hoje histórica e outra que vem se fazendo - vale notar esta particularidade do museu desde a modernidade, ou seja, preservar o passado mas absorver o tempo imediato, sem querer, entretanto, virar centro cultural - o que se desenha em linhas gerais nos perfis de exposições do acervo ou de mostras de artistas convidados. Ou ainda acolhendo projetos de outros curadores, pois além do acervo e de seu manejo, também é preciso assimilar outros pensamentos.
O acervo tem a particularidade de cobrir desde o final da modernidade (anos 1940/50) até hoje, o que representa a possibilidade de tentar analisar como se constitui esta passagem na arte brasileira. Dentro dela mesma nota-se que tal processo é bastante heterogêneo, pois temos artistas que permanecem dentro de seu universo moderno mesmo em um contexto contemporâneo e, não raro, exercem influência direta ou indireta nele, malgrado, talvez, sua própria posição estética (o caso de Iberê Camargo é exemplar). Como lidar, pois, com fronteiras moveis e percebê-las não só no campo brasileiro, como internacional (como longamente estudado em relação a abstração dos anos 1950)? Se, para mencionarmos apenas um viés mais discutido, a arte brasileira atual ainda reflete sobre sua vivência diante de sua tradição moderna "construtiva" e, simultaneamente, de algo que poderíamos genericamente chamar de uma "tradição contemporânea experimental", intuímos que há um lugar histórico a se denominar e, no contexto de um museu, tentar cotejar estas questões parece apropriado.
Pensando pelo lado da arquitetura, a pergunta poderia ser conduzida para o seguinte lado: como é um museu contemporâneo projetado por um arquiteto moderno? Depois de saber se a indagação é valida ou não, e de perceber também como era a arte produzida naquele momento (pensando, inclusive, em problemas como suporte, escala, objetualidade, etc.), imagina-se como um museu precisa incorporar obras que já são de outro tempo posterior àquele em que foi projetado. O MoMA resolveu isto fazendo uma reforma, construindo anexos, etc. Outros prédios hoje tentam imaginar a maior flexibilidade possível, especulando o que eles terão que expor e guardar daqui a alguns anos... e querendo ainda ser logomarcas... hoje fala-se dos "starquitetos". Enfim, em um certo sentido o prédio também transparece a própria história da qual participava quando de seu surgimento.
No caso do MAC de Niterói ha ainda a presença da paisagem (e muitos visitantes entram no espaço como quem visita um mirante) e do tombamento, que resulta em certas regras a serem cumpridas. Na pratica, o "problema" da arquitetura se impõe mais quando algum trabalho eventualmente esbarra nos termos do tombamento. Quanto a disputa em si entre obras e paisagem, pelo menos eu não a vejo como tão importante: prefiro acreditar no potencial das obras, que serão capazes de prender o visitante. De fato, talvez seja um "mito" contra outro que se coloca ali: autonomia da obra x especificidade do espaço; nos dois casos, o que resolve, insisto, é a potência do trabalho (por exemplo, a instalação feita por Antonio Manuel), ou seja, desconfio da existência efetiva de um problema a priori (como já foi sugerido por outras pessoas) que indique como as aproximações criticas do museu sejam reféns de sua arquitetura.
Que ela tem presença tem, isto não se nega. Mesmo sabendo de todo apelo "espetaculoso" criado em torno dela, alguns incautos preferindo reificá-la em detrimento do que ela contém (seu acervo) - o que não deixa de sugerir o recalque do meio de arte brasileiro em querer ver sua produção e historia - do ponto de vista formal ela anuncia uma qualidade peculiar: como seus espaços são em parte autônomos, em parte integrados, as exposições podem ser articuladas ou segmentadas conforme o caso. Além disso, duas das galerias não seguem o desenho classico do cubo branco no que tange um espectador estático em uma posição central dominando todo o espaço. Ao contrario, algumas partes só funcionam com o espectador se movimentando, sem ter idéia do que encontrara na próxima parte. Em termos curatoriais isto é uma boa situação, pois tanto o desenho como o conceito podem tirar partido destes cortes. Certas vezes explora-se um determinado ângulo em que dois segmentos podem ser cotejados, comparando as obras. Noutras segmenta-se decididamente uma área da outra.
Pensando a partir de tais aspectos, no que diz respeito a programação, ha um espaço reservado para o acervo, pois é necessário oferecer ao publico uma percepção geral do que é a arte brasileira desde a segunda metade do século XX. Isto é uma carência de nosso sistema, que discretamente procuramos contribuir para a solução, além de reforçar a importância efetiva do acesso aos objetos que constituem a historia de nossa visualidade. Atualmente esta mostra adotou um perfil simples, que poderia mesmo ser tido como conservador - o de uma apresentação seqüencial e cronológica, quando possível cobrindo seus conflitos internos ou mostrando transformações no processo de um artista. Não se trata de acreditar na ressurreição de uma narrativa totalizante, mas de considerar dois pontos: o primeiro, o fato da maioria dos visitantes de museus no Brasil (sobretudo no MAC) carecer de um convívio maior com seus bens culturais, tendo ainda dificuldade em adentrar universos conceituais mais complexos. Por outro, para que tal partido não soe paternalista, a própria liberdade deste visitante em traçar suas associações, visto que, como disse, o desenho do espaço permite suas idas e vindas.
Não se deve cometer a ingenuidade de minorar o papel de recortes curatoriais, nem de achar que a disposição cronológica é neutra, imparcial ou absoluta. Mas também, apesar de todas as carências ainda reincidentes, não se deve considerar o publico - para la de variado, composto de curiosos, experts, estudantes, e curadores, um pouco de tudo - incapaz de definir suas estratégias de olhar. Como ponto de partida, é decisivo dar a ver as obras, torná-las públicas, ou seja, oferecer a condição mais básica para a formação de qualquer discurso ou narrativa.
Visto o papel central do acervo, algumas mostras se definem complementares a ele. Em certas ocasiões aprofundando alguns de seus episódios, sobretudo em torno da fronteira histórica entre modernidade e pós-modernidade. Em outros, pensando em trajetorias concluídas e consolidadas. E, finalmente, acompanhando produções atuais. Neste ultimo, elas podem ou não ter dialogo direto com a historia contada no acervo, mas isto é outro problema que talvez não importe tanto agora, mas que pode ser sugerido: ver em tais distâncias que outras referências tem sido incorporadas ao nosso imaginário. Isto nos ajudaria bastante a refletir sobre tópicos da arte brasileira dos últimos 30 anos.
Guilherme Bueno é diretor do Museu de Arte Contemporânea de Niterói. Entrevista realizada em setembro de 2010.