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A Modernidade é a nossa Antiguidade?

 

Por Guilherme Bueno

... e é  Atenas que queremos

Clement Greenberg

 

Sim, ou pelo menos em um certo sentido parece que concedemos àquilo que chamamos de modernidade atuar para nós o papel de ser nossa Antigüidade. Dizer isso significaria, por um lado, atribuir-lhe o estatuto de antecessor de nossa errática condição, o que a condenaria ao historicismo. Entretanto, por outro, é o dúbio valor operativo por ela exercido em relação à História – ao instituir discursivamente o que lhe precedera e a constatar a derrisão do mesmo rumo a um estado de deriva presente – que a inscreve na fronteira de construção positiva de um local para o sujeito e a negatividade intrínseca à relativa perda sofrida principalmente no Pós-Guerra.

A Antigüidade exerceria junto à cultura moderna o valor de exemplaridade necessária a um mundo secularizado. Sua virtude seria a de fornecer modelos de subjetividade e um espelho de economia existencial para um mundo que categoricamente não conseguiria mais demonstrar sua razão final em uma procissão rumo aos céus. Para além – ou junto – do sentimento arqueológico, ela é a base de construção do sujeito histórico, isto é, aquele fundamentado no parâmetro das ações e experiências exclusivamente humanas, segundo o qual é possível e razoável o constituir-se do indivíduo e sua sociabilidade. O anseio nostálgico de restituir uma essência, uma verdade intrínseca localizável tão somente na pesquisa arqueológica / histórica (e não seria descabido aqui relembrar a tensão com que estes dois termos defrontam-se reciprocamente na ótica positivista de descortinar a “realidade dos fatos”), de recuperar em alguma instância elementos de um mundo perdido, mais uma vez redivivo no anseio de (auto-)descoberta, conduziria freqüentemente ao olhar do mundo antigo como, mais do que evocação, a aferição de possibilidades cabíveis e de referenciais singulares e coletivos após a ruptura com o firmamento, exemplarmente sentida na decapitação do representante terreno do Direito Divino. Se as sensações não conduzem mais diretamente a Deus, qual o lugar a partir de então conferido a elas? Que razão de ser urge encontrar para um sistema produtivo (no qual a arte participa) desamparado de sua antiga lógica e pirâmide hierárquica? Ainda que esta crise permaneça irresoluta em suas diversas modalidades, olhar para os “antigos” (grosso modo, uma invenção, uma ficção acerca da Grécia e de Roma) subentendia a crença de localizar um paradigma de experiência constitutiva, a história é uma espécie de “romance de formação”. É digno de menção observar que tanto boa parte daquilo que hoje reconhecemos ser os mais significativos empreendimentos modernos, assim como as suas versões corrompidas (o academicismo), recorreram ao expediente do parentesco histórico tomado por baliza de sua verdade irrecusável. Da leitura dos versos homéricos feita por Goethe nas praias da Sicília ao “Juramento dos Horácios” ou a morte de Byron em combate, calcula-se uma contigüidade devotada a tornar a visão do passado em Estética Historicamente Demonstrada do presente.

Feito um salto temporal destas considerações gerais para alguns casos do século 20, seria justamente no âmbito discursivo que a Antigüidade será reivindicada como imagem (literalmente) legitimadora de certas investigações das vanguardas construtivas. Há simultaneamente a recusa de seus repertórios ou sentimentos externos (sob o signo da refuta à cultura oficial) e a enquête por sua essência, vista como um fluxo contínuo que deságua, por exemplo, na Ville Savoye. Esta reinvenção atualizada da Antigüidade estaria nos livros de Le Corbusier, com seus traçados reguladores perscrutando um idioma comum entre ele e o Parthenon; nos escritos de Van Doesburg, nos quais uma polaridade recíproca (e paradoxalmente progressiva) atravessa a arte do Antigo Egito até Mondrian; no pintor holandês, em seu vislumbre de um museu cujas salas se sucederiam até as obras neoplasticistas; e, mesmo – ainda que mudada a modulação – com Gropius e a metáfora da catedral aplicada à Bauhaus, que fermentará entre diversos historiadores de arquitetura entre os anos 10 e 40 como cumplicidade secreta e profunda entre a Antigüidade, o Gótico e os arranha-céus, que, em última instância, pronunciariam demonstrativamente com clareza o que seria arte. Outros exemplos podem ser buscados indefinidamente na historiografia e crítica modernas, seja na suposição de uma “psicologia mediterrânea” em Matisse, na “fase neoclássica” de Picasso, etc., etc., etc... Mais importante assinalar neste caso o elo aparentemente incorruptível demarcado nesta estratégia, a saber, o compromisso triádico entre forma, história e projeto como plataforma das agendas modernas (não menos curioso assinalar que todas usam a forma como instrumento de ultrapassagem em direção ao sublime). O projeto é a construção da história tomada por um sujeito que se entende por ator. A história é demonstrada pela forma: a um só tempo ela testemunha uma universalidade sensorial, dispõe um mecanismo de ação e recupera a seu favor um legado até então monopolizado pelo reacionarismo.

A questão que se colocaria desde o Pós-Guerra, em sua dimensão mais ampla na constatação do novo e multiplicado desastre bélico (no campo da arte, na incompletude ou bloqueio das investigações do Entre-Guerras), radicalizar-se-ia nos anos 60 justamente na emergência de determinados recalques operados pelo império da forma sensível. Em outras palavras, a “redescoberta” de Marcel Duchamp e do dadaísmo permitira recolocarmos até mesmo a pergunta inicial de mote: é a arte nossa Antigüidade? O ready made, dentre muitos outros problemas lançados, incidia na opacidade e na intencionalidade da sensação desinteressada, deixando em suspenso o aparato calculado ao redor da experiência estética da forma, menos construtiva do que construída.

Seria a implosão da forma a implosão da história? Em primeiro lugar, seria um equívoco expurgarmos a forma e a experiência sensorial, sob o risco de incorrermos em novas teleologias e positivismos unívocos. Até mesmo porque se testemunhou mais de uma vez nas poéticas “pós”-modernas que a sensorialidade pode se manifestar independente da forma e vice-versa. O que se abdicou foi a hegemonia estabelecida na aliança entre ambas durante a vigência de um determinado modelo formalista, erigido em um arco de aproximadamente cem anos. Talvez seja preferível dizer que o reino da estética se tornou um principado, isto é, a arte não é mais coercível a um procedimento único de consecução ou de diálogo, fato que, exatamente por sua dificuldade de abordagem, o torna no mesmo passo instigante e vital. É provável que hoje, assim como há pelo menos 150, 170 anos, não saibamos e saibamos muito bem o que é arte, com, suponho, a dificuldade adicional de especularmos por onde ensaiaremos conciliar interesses tão díspares, e, ao mesmo tempo, tão convictos.

É neste ponto que me parece possível retomar o tom da pergunta inicial: a modernidade é (seria) nossa Antigüidade porque, logo de início, pensada a condição de “pós”-modernidade em que vivemos, a modernidade exerce uma função indicial, obviamente diferente, mas análoga em seu papel emblemático àquele atribuído à Antigüidade na alvorada da cultura moderna. Não se deve colocar este ponto com o mesmo teor de “nostalgia” exercido outrora pela Antigüidade, conquanto a sua ausência seja a todo instante denunciada, demarcada perceptivel e enfaticamente. A presença fantasmagórica da modernidade em nossos dias transparece o sentimento de perda a ser enfrentado. Qual seria este? Pode-se cogita-lo sendo a melancolia crítica diante da incompletude de sua premissa projetual. Igualmente, o destronar de uma unidade reconfortante garantida pela tríade estética-forma-história. A meu ver, a estas duas soma-se um terceiro vão, aquele da indagação de uma decorrente condição de “pós-historicidade” da arte. Em outras palavras, não é a retirada da arte da história, outrossim, de, cogitada a insuficiência desta como mecanismo consolidador de sua coisificação no mundo e da comprovação assegurada de sua pertinência produtiva (o “fim da História da Arte” seria uma de suas variantes), quais patamares podem regular um idioma comum pelo qual se consigne a experiência e o campo que ainda hoje delimitamos e insistimos chamar de “arte”. Após a irônica (e corrosiva) realização integral da promesse de bonheur na obra de Warhol, a possibilidade de transformação estética, ética e existencial ambicionada pelas vanguardas construtivistas não se tornou outra coisa senão um sentimento arqueológico – classificável e apreensível hoje como apenas mais um simulacro. Com a desvantagem, nesse caso, de ser histórico. Haveria outro signo mais elucidativo deste desamparo incontornável (ainda que em nenhum momento trágico) do que a presença imagética das arquiteturas de Mies van der Rohe nas fotos de Thomas Ruff? Não teria a arquitetura moderna se tornado um emblema de um mundo perdido (interessa-nos retoma-lo?) exatamente no momento de sua reconversão em imagem, do mesmo modo que a geração do arquiteto alemão fizera uso propositado da obra de Calícrates, Ictínos e Fídias ou, avançando no tempo, de Nôtre Dame de Paris? Em outro caso, o que é o esquilo suicida do Bidibidobidiboo de Cattelan senão um novo Werther, a cruel evidência da fetichização, espetacularização e controle técnico e mercantil (em vias de digitalizar-se e “genetizar-se”) das sensações, que cinicamente enfrentamos a todo instante, mas que, certo dia, corresponderam aos nossos desejos mais caros de emancipação? É nesse sentido que o espelho indelevelmente distorcido e indicial da modernidade faz dela nossa nova Antigüidade; não por reivindica-la por modelo a ser atualizado, e sim na medida em que nos inquire como ou por quê queremos e devemos a partir de seu (suposto) encerramento, esboçar modalidades de existência em um mundo pós-histórico.

*artigo publicado anteriormente na Revista Arte & Ensaios (PPGAV-EBA-UFRJ)

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