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Luminoso, Liliane Benetti

Alguns comentários a partir de Luminoso

Por um momento, diante das fotos do Luminoso, pareceu-me irresistível confabular acerca do misterioso caso das cerejas surrupiadas, um clássico policial jamais escrito, cujo enredo, banal à primeira vista, articularia, no entanto, indícios meticulosamente superpostos por pistas falsas, de modo tão engenhoso que, ao final, desvendar uma provável autoria não elucidaria o ocorrido por completo; desconfianças restariam, a começar pelo próprio aparecimento pouco plausível daquelas singelas frutinhas encaixadas num tampo de mesa metálico.

Um letreiro opaco, horizontal, anuncia em vermelho vistoso: OS MOTIVOS PERMANECEM OBSCUROS. As instruções são claras, cinco regras para ajustar cerejas nas pequenas cavidades de uma espécie de bandeja, muito semelhante aos tabuleiros de “Resta Um”, jogo cuja finalidade é precisamente a eliminação calculada das bolinhas que o compõem. Aqui, as peças são perecíveis, exigem reposição, eis o porquê do manual detalhado. Cada cereja comporta-se como um ponto luminoso ao mesmo tempo em que se exibe madura, apetitosa. Uma “máquina para escrever com comida”, disse-nos João Loureiro em conversa informal. Não à toa a máquina, dentre as múltiplas possibilidades, escreve frase tão apropriada, algo entre a divulgação ambígua de uma máxima curiosa e a notícia cifrada daquilo que se passa com as cerejas, desaparecidas e reaparecendo conforme as normas. Impossível não suspeitar de que o roubo das cerejas não passe de mero “imprevisto previsível”, uma regra dedutível das características do material empregado e subjacente ao guia de montagem. O acontecimento é, afinal, facilitado pelas dimensões e pela disposição espacial do objeto, calibrado na escala do corpo. E a mensagem do anúncio poderia, de fato, ter sido contrabandeada do entremeio de uma narrativa detetivesca.

A aproximação do jogo ficcional não é dado novo na obra do artista. Bastam alguns exemplos: Projeto para a ocupação de uma casa (2004), uma residência na qual os cômodos foram habitados por conjuntos de trabalhos que propunham o desmonte analítico de certos códigos de domesticidade ao passo que engendravam regras especificamente derivadas de cada um dos objetos lá instaurados como legítimos moradores; Jaz (2007), o repentino surgimento fictício de um personagem histórico em meio às ruínas jesuítas da cidade de São Miguel das Missões; Carro esmagado por pedra (2012), escultura de sinistro absurdo instalada na área de estacionamento de um parque público; ou mesmo Primeira Parte do Fim, trabalho em andamento, a ser mostrado nos próximos meses, no Centro Universitário Maria Antonia (as etapas deste projeto serão acompanhadas e comentadas em breve, neste site).

Se em tais trabalhos é possível inferir uma estrutura narrativa cuidadosamente forjada e em flerte com as características de gêneros tão diversos quanto a fábula, os contos de mistério ou a crônica cotidiana de jornal, que fique claro que nessas ideações não nos cabe papel algum, jamais seremos convidados a participar do enredo ou a tecer conclusões. Nunca passaremos de meras testemunhas oculares farsantes, para as quais as cenas chegam prontas, cenários montados num tempo póstumo. Ficcionar, na obra de João Loureiro, implica reiterar um distanciamento, formalizar tantas mediações quanto o necessário para projetar o recuo correto, o afastamento adequado, em relação àquilo que nos é mostrado. O jogo se dá estritamente no interior dos trabalhos, cada qual mobilizando regras determinadas e intransferíveis, consonantes aos elementos utilizados e aderidas aos materiais.

Notáveis são, aliás, as codificações sucessivas impostas aos materiais de que o artista costuma lançar mão, obstinadamente inspecionados a cada projeto, cumulados de tantas regras que deixam transparecer as abstrações que os mobilizaram. Muitos deles se assemelham a “objetos quiméricos”, conforme Carlos Eduardo Riccioppo formulou em entrevista com João Loureiro, posto serem trabalhos que retêm qualidades prototípicas, aludindo vagamente ao teor inventivo próprio de uma época remota da ciência, tal como as engenhocas voadoras de um Da Vinci[1]. Penso que também se possam assemelhar ao fugidio Odradek de Kafka, um ser indecifrável, de poucas palavras, algo parecido com um carretel de linha achatado em forma de estrela, em cujo centro uma varetinha se encaixa, seguida de outra, em ângulo reto, como a amparar o conjunto, que se move licenciosamente pelas casas da vizinhança do pai de família, em convívio inexplicável. Odradek é irredutível, “o todo na verdade se apresenta sem sentido, mas completo à sua maneira”. No mundo de Odradek, regrado pela estranheza, muito naturalmente os motivos permaneceriam obscuros...

Na obra de João Loureio, todavia, o estranhamento não é programático. Um certo absurdo, um certo fantástico, só se instala ali quando o uso lógico encerrado em cada material é não apenas testado de modo diverso da convenção, mas também potencializado ao seu limite. Nada de extraordinário em escrever com comida, afinal. Confeitos comestíveis para ornamentar bolos servem para deixar mensagens festivas, sem mencionar a trivial sopa de letrinhas. Já a máquina Luminoso está ciente desses usos e, a partir deles, formaliza um código particular, e propaga com seus LEDs de cerejas uma frase certeira, capaz de estabelecer uma conversa com os próprios procedimentos recorrentes na obra do artista.

E, de fato, o vislumbre de um viés narrativo projeta-se em trabalhos nos quais as formas de estruturação ficcional comparecem como uma matéria entre outras, a ser devidamente submetida ao escrutínio. Este parece ser justamente o caso de Primeira Parte do Fim, do qual se tem, até o momento, uma série de desenhos.

Este desenho, por exemplo, insinua que Primeira Parte do Fim será uma grande escultura instalada um tanto cenicamente, de modo sugerir uma suspensão temporal aos moldes de uma “cena congelada”. A composição da imagem traz algo dos registros do fotojornalismo, como se tivesse sido captada para a veiculação junto da notícia dos festejos de aniversário de uma cidade qualquer, para o qual costumeiramente se prepara um bolo quilométrico, devorado em poucos minutos. No entanto, não se trata de um usual fim de festa, conforme o desalinho das cadeiras possa dar a entender. Do bolo, visivelmente despedaçado, restam ainda bocados fartos. Parece que o evento foi bruscamente interrompido. Ou, melhor dizendo, o evento interrompeu-se bruscamente. As suposições hipotéticas, na obra de João Loureiro, articulam-se adequadamente no modo impessoal; o jogo é interno, conforme foi dito. O curioso é que há uma sugestão de contiguidade entre os elementos de Primeira Parte do Fim, o bolo desdobra-se na bandeja, esta desdobra-se possivelmente numa toalha e depois na própria mesa. O desenho não indica os materiais ou as cores que serão empregados, todavia ressalta a compactação de um bloco sólido de cena, por assim dizer, circundado por elementos mais dispersos, como pedaços soltos do gigantesco bolo e algumas cadeiras lançadas ao longe. Os elementos de Primeira Parte do Fim parecem cumprir dupla função: se, por lado, comportam-se como objetos de cenário que compõem a totalidade da cena emprestando-lhe certa verossimilhança, por outro, cristalizam em si mesmos as ações que representam, cada parte um fragmento exemplar de uma ocorrência. Talvez por isso a impressão de que, ali, algumas das cadeiras não estão apenas jogadas mas “desmaiadas” no chão. Há algo de tragicômico na descompostura flagrante desses objetos.

(Este texto será retomado em breve)

(Liliane Benetti, 28 de fevereiro de 2013)



[1]Cf. RICCIOPPO, Carlos Eduardo. “Conversa com João Loureiro” e “João Loureiro: a regra absurda”. In:______. Cinco artistas diante da cidade contemporânea. São Paulo: Funarte, 2011.