Editorial
Periódico Permanente tem como principal estratégia a publicação de conteúdos que disparam e repotencializam o arquivo do site do Fórum Permanente – plataforma que articula artigos, relatos criticos, conferências, debates, registros de eventos e discussões relativos ao meio da arte contemporânea e museus.
Como editor residente do número 1, pensei quatro seções – Museu Ideal, Discussão Bissexta, Público/Privado e Luz Fria –, organizadas a partir de uma proposição feita aos colaboradores (artistas, críticos, curadores, pesquisadores) em conversa com um grupo de conteúdos selecionados, com o qual o produto desta proposição deve se relacionar.
Museu Ideal se assume, logo de início, como um desdobramento da proposta da revista número 0, em que o material publicado anteriormente no site passou a existir em uma nova organização (ver editorial da zero link). Em outro momento, a necessidade de reorganizar este arquivo já se fez presente, quando o Fórum Permanente editou o primeiro livro de sua coleção, Museu Arte Hoje, apoiado pelo Programa Brasil Arte Contemporânea da Fundação Bienal de São Paulo e Ministério da Cultura. No prefácio deste volume, Martin Grossmann e eu já apontávamos a nova leitura gerada pela ordenação dos textos, artigos e entrevistas – efeito que, espero, ocorra novamente neste Periódico.
Fórum Permanente, afinal, se define como arte contemporânea e museu, e ao longo de sua trajetória se afirmou como referência para pesquisadores e estudiosos focados na prática institucional, e na sua relação com estes espaços. Esta reunião de artigos se coloca como parte importante deste processo de discussão pública.
Uma dívida para com tal discussão, agora quitada, era a publicação de “O anti-museu” (1989), de Martin Grossmann, que nos conduz em direção à necessidade de repensarmos os formatos institucionais em suas contradições.
Outra contribuição, mais recente, “A Modernidade é a nossa Antiguidade?” de Guilherme Bueno (acompanhada de entrevista que parte do texto), funciona enquanto questionamento sobre o que funciona como legado de uma modernidade que chega a nós tanto como limite quanto como princípio.
Conversando diretamente com Museu Ideal, Discussão Bissexta retoma uma pauta a qual voltamos com periodicidade regular: nossa Bienal de São Paulo. Inicia-se pelo trabalho “Vital Brasil”, de Thiago Bortolozzo, servindo de abertura para uma discussão sobre a especificidade do pavilhão Ciccillo Matarazzo rumo a outros espaços, além de ser exemplo de intervenção potente e questionadora. Um texto do artista e uma entrevista acompanham os registros de algumas situações espaciais e institucionais heterogêneas em que Vital Brasil atuou.
Já Vinicius Spricigo, em “Contribuições para uma reflexão crítica sobre a Bienal de São Paulo no contexto da globalização cultural” situa algumas das mais importantes iniciativas curatoriais nas últimas edições desta Bienal, bem como a intencionalidade de suas propostas, mantendo como guia de argumento o trabalho de Hélio Oiticica e os limites e possibilidades de interrelação entre trabalho de arte e instituições museológicas.
O filósofo tcheco Vilém Flusser concebia a Bienal de São Paulo como um privilegiado lugar de intervenção, antecipando reflexões e fundando conceitos que se mostraram inovadores para se pensar o espaço expositivo hoje. Em “Salto para um mundo cheio de deuses”, Mario Ramiro expõe as várias e frustradas tentativas de Flusser em coordenar um projeto de reformulação da estrutura deste evento, nos anos 70 e 80, no intuito de integrar o Brasil à cena internacional, transformando nossa "periferia" de então em modelo para o mundo. Terão as projeções e o pensamento de Flusser se provado pertinentes a ponto de lamentarmos o fato de que nenhuma alteração substancial proposta pelo filósofo chegou a ser incorporada ao programa dessa grande mostra?
A discussão sobre as possibilidades abertas por Flusser deve ser ainda mais explorada com as conexões entre as perguntas presentes nestes textos publicados agora e outros já muito lidos no Fórum Permanente.
A relação tensa e ambígua que toca nossas dinâmicas culturais entre público e privado tem lugar fundamental na atuação do Fórum Permanente, quase como uma diretriz conceitual; daí a opção de uma seção, Público/Privado, que explore essa posição e retome a discussão de situações onde esta ambigüidade se mostra de modo exemplar.
A consciência da importância do binômio e sua publicação permanente dão ao Fórum um caráter definido politicamente, apesar de sua plataforma aceitar conteúdos por meio de procedimentos posicionados a partir de um distanciamento duchampiano. Estes conteúdos acabam trabalhando, um tanto apesar de si mesmos, de forma contundente: anfitrião e convidados acabam implicados em uma imagem ou espectro de suas potencialidades políticas e estéticas, de sua fantasia em relação ao que pode ser realizado, do que poderia ter sido atingido e como resultado de suas frustrações (guest + host = ghost).
Isto se vê quando em Dossiês, um formato replicante que acompanha andamentos polêmicos de forma a aceitar igualmente todas as posições, se formaliza uma narrativa fiel à nossa identidade. Não há uma ação finalizadora: prevalece o apreço enorme que temos aos nossos mecanismos de repetição. Há formas que retornam continuamente, sempre com um lugar garantido em nossa cultura, como uma “pathos formula” warburguiana.
Prova disso é a convivência entre o dossiê formado sobre Inhotim, contendo questionamentos contundentes à esta iniciativa e o relato de um momento profícuo pelo qual esta instituição é responsável, o Primeiro Seminário de Educação de Inhotim. De encontro à usual proposição do Fórum Permanente aos colaboradores de que elaborem um relato crítico, Roberto Bellini propôs fazê-lo em formato de HQ, sobre sua experiência pessoal na fundação do instituto (“Inhotim pra mim, arte contemporânea, nome caipira”).
Esta escolha pela narrativa é um caminho aberto para colaborações que escolhem um registro de verdade próprios da ficção, como se para dar conta de um real contraditório, fronteiriço, entre público e privado. Como o ensaio de Néstor Gutiérrez, “Discurso selvagem”, onde o refeitório industrial de uma universidade restaura o espaço da Ágora grega enquanto cenário para uma narrativa em que os ideais de convivência democrática de nossa civilização, que tanto deve aos antigos desaparecem em uma insurgência irreversível, talvez por não resistirem à razão utilitária da vida moderna de nossos espaços públicos – nem à selvageria dos desejos privados de seus administradores.
Em “Margem errante”, Carolina Tonetti analisa criticamente “Errante” trabalho do artista mexicano Hector Zamora, realizado entre outubro e novembro de 2010, em São Paulo, como a primeira etapa de um projeto voltado para arte pública elaborado para o Instituto Itaú Cultural pelo curador e arquiteto Guilherme Wisnik. Para a arquiteta e pesquisadora, os processos envolvidos em seu desenvolvimento e execução explicitam diversas tensões nas relações entre obra de arte, espaço público e instituição.
Luz Fria se apresenta como um lugar de discussão sobre a relação entre projeto e o processo de realização do trabalho artístico, e situações limite criadas a partir da proposição de intervenções em espaços de arte – como pano de fundo, um projeto em andamento de João Loureiro, “Primeira Parte do Fim” (instalação pensada para o Centro Universitário MariAntonia) e outros trabalhos já realizados pelo artista. A discussão ocorre paralela ao andamento do projeto, causando influência mútua entre artista e os colaboradores Carlos Eduardo Riccioppo e Liliane Benetti, que acompanham criticamente o processo de trabalho.
Como editor, atuo como organizador dos registros desta discussão e propositor de conversas e formatos, mas não me furto a oportunidade de colocar também, se possível, alguma reflexão sobre o trabalho discutido. O ponto de partida para que se criasse esta base comum foi a proposta de Riccioppo de que o artista escolhesse um de seus trabalhos como objeto de análise para um texto inicial produzido por cada um de seus interlocutores. Assim, discutindo este trabalho chamado “Luminoso”, temos três textos críticos, ainda em desenvolvimento, que inevitavelmente também interagem entre si por suas diversas formas de abordagem.
Para concluir, esclareço que este editorial é, por assim dizer, um início: as publicações já disponíveis neste número 1 são disparadoras deste processo e não um conjunto fechado. Elas funcionam como propositoras tanto de discussão quanto do conteúdo que carregam ou defendem. São disparadoras de um processo de interlocução que deve durar inicialmente o tempo que define a periodicidade trimestral da revista. Ao longo deste intervalo, novas colaborações e atualizações devem aparecer e redimensionar o todo. Há, assim, a possibilidade de receber novo material reativamente ou em diálogo com outras colaborações; remontá-las, editá-las, suprimir coisas e, por fim, levar adiante o projeto de colagem mais identificado com as possibilidades de uma revista digital.
Meus agradecimentos aos colaboradores que me acompanham neste jogo, que deve assumir ainda outras formas e regras no momento em que o próximo editor residente iniciar o Periódico Permanente número 2.
Gilberto Mariotti
Editor / Curador associado
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