Salto para um mundo cheio de deuses*, Mario Ramiro
A relação de mais de duas décadas entre o filósofo Vilém Flusser e a Bienal de São Paulo, documentada por meio de sua correspondência, arquivada na Escola Superior de Arte e Mídia de Colônia (na Alemanha), pode nos oferecer uma idéia bastante abrangente do engajamento cultural e da forma de exercer a filosofia desse intelectual polêmico e ousado no seu estilo de pensar, falar e escrever sobre temas que, segundo ele, estavam remodelando toda a história do Ocidente.
As suas várias tentativas de coordenar um projeto de reformulação da estrutura da Bienal de São Paulo, nos anos 70 e 80, demonstram também a sua vontade de poder integrar o Brasil na cena internacional, transformando a "periferia" em modelo para o mundo. Em todos os momentos em que se envolveu com o assunto, Flusser concebeu a Bienal de São Paulo como um laboratório mundial para a criação de uma verdadeira "cultura de massas". Seu primeiro projeto, elaborado nos anos 70, pretendia aglutinar num trabalho de pesquisa criativa artistas, críticos, teóricos e especialistas em comunicação, na concepção de um setor da Bienal que, segundo ele, poderia "ter sua importância sempre aumentada até transformar-se talvez na própria Bienal".
Em 1971, Flusser apresentou à Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) sua primeira proposta para uma reformulação da estrutura da Bienal. Em seu texto ele afirmava que: "as Bienais têm obedecido a estruturas "discursivas", relegando o consumidor [o público] a mero receptor das mensagens. As Bienais nunca estabeleceram conscientemente que tipo de mensagem desejam transmitir: se querem comunicar ao máximo, se querem informar ao máximo, ou se querem procurar um ótimo meio termo".
Como alternativa para superar esse impasse ele propunha três itens: "1) estudar um método de fazer participar o consumidor da programação das Bienais futuras, transformando-as de "exposições" (na realidade: "imposições"), em diálogos com feedback ; 2) decidir provisoriamente se a meta da próxima Bienal é informar (apresentar máxima originalidade), ou comunicar (apresentar alguma originalidade em ambiente parcialmente redundante); 3) instituir um grupo de comunicólogos (inclusive sociólogos, psicólogos etc.) que acompanhem constantemente os trabalhos preparatórios e executivos das Bienais futuras".
No ano de 1972, Flusser seria chamado por Francisco Matarazzo Sobrinho, presidente da Fundação, para elaborar o projeto de regulamentação da Bienal, atendendo assim às resoluções deliberadas pela Associação Internacional de Críticos de Arte. É a partir daí que se inicia um relacionamento de colaboração e luta entre o filósofo, hoje reconhecido como um dos mais emblemáticos pensadores do final do século XX, com a mais importante Bienal das Américas.
O projeto encabeçado por Vilém Flusser propunha que a vinda para a Bienal de São Paulo não fosse de obras, mas de equipes especializadas em trabalhos estéticos, "com aplicabilidade prática nos mais variados campos de atividade". Ele havia sugerido que as representações nacionais deveriam ser compostas por artistas, teóricos, museólogos e especialistas em comunicação de massa para a elaboração das diretrizes do evento. Ele afirmava que o efeito desse projeto "deverá ser de impacto imediato nos campos de atividades escolhidas (laboratórios, escolas, indústrias etc.), tanto no Brasil, quanto no estrangeiro".
Uma dessas propostas, intitulada "Ambiente humano diário", de Manfred Eisenbeis e Alexandre Bonner, do Institut de l'Environnement de Paris, procurava enfocar o ambiente de trabalho na indústria e nos escritórios, a partir de pressupostos estéticos. Outra enfocava os problemas artístico, arquitetônico e urbanístico da "janela"; enquanto outra seria referente à "escola", além dos trabalhos de elaboração de um novo símbolo para a Bienal.
Em seu projeto para "Uma Organização das Futuras Bienais em Base Científica", Flusser vai defender a criação de um espaço de comunicação que tire os "detentores da cultura" do seu isolamento, como também fazer com que a arte volte a ter "influência significativa na vida diária do homem moderno". A ruptura do isolamento dos "detentores da cultura" -os emissores e transmissores dos códigos culturais - tinha por objetivo criar uma rede de interações entre artistas, críticos, teóricos, políticos, economistas e comunicadores, com uma massa de "receptores" formada pela juventude acadêmica, estudantes das escolas secundárias, a classe média e os trabalhadores, "ainda não substituídos definitivamente pela automação".
Mais do que uma grande feira internacional de artes a Bienal de São Paulo poderia se transformar num fórum cultural com implicações mais profundas na vida de todos que dela se aproximassem.
Ao retornar no início dos anos 70 para a Europa, Flusser irá manter, de Genebra, uma intensa correspondência com o Ministério das Relações Exteriores em Brasília, com a presidência da Fundação Bienal em São Paulo,1com vários curadores de museus europeus, com artistas, com a imprensa internacional e com seus dois assistentes na capital paulista, Gabriel Borba e Alan Mayer.
A manutenção dessa rede transoceânica acabou gerando uma carga enorme de trabalho para um homem envolvido ainda com conferências, publicações e com o trabalho constante à frente da máquina de escrever; pois como intelectual, Flusser mobilizava seu pensamento como uma fonte de renda para si e sua família.
Em carta de novembro de 1972, endereçada a Gabriel Borba, ele afirmava que com relação ao dinheiro, as coisas o preocupavam. "São coisas ridículas que me faltam (comparadas com a importância da Bienal), mas podem destruir tudo. Não é inacreditável?". Numa outra carta, Flusser dizia não poder enviar toda a documentação referente aos projetos que ele havia sugerido, por falta de dinheiro. Ele, como qualquer um numa situação dessas, sentia-se envergonhado por ter que admitir isso. "Eu não tenho jeito para insistir em coisa tão vergonhosa [pois] parece que estou pedindo, quando na realidade continuo botando dinheiro [no projeto] sem tê-lo". E, apesar de tudo, ele ainda dizia, "continuo entusiasmado, a despeito. Não largarei tão cedo, agora que a coisa está quase ao alcance da mão, e pode vir a ser um evento sem paralelo. (...) Creio que devemos dar tudo agora, já que se trata de oportunidade que não voltará tão cedo. Não se deixe desanimar por dificuldades que surgem sempre quando se trata de realizar coisa séria. Eu também as tenho".
Na sua correspondência com "Ciccilo" Matarazzo, Flusser passa, em poucos meses, do entusiasmo à inquietude ao sentir a relutância do Conselho da Fundação Bienal quanto ao projeto. Ele dizia ter assumido "vários sacrifícios" de bom grado, esperando, naturalmente, "o apoio moral, legal, financeiro e administrativo" para seus esforços. Flusser solicita de Matarazzo uma posição a esse respeito: "Considere, ao me fazer sua proposta, que não viso lucro no meu empenho, mas que, de outro lado, não posso arcar com a totalidade de prejuízo proveniente do abandono temporário das minhas fontes de renda no Brasil".
Como filósofo, ele procurava deixar claro qual era a sua intenção de trabalho: "Deve ser esclarecido o seguinte: o aparelho legal e administrativo da Bienal não me interessa, (...) já que não viso ser empregado da Bienal. O que me interessa, isto sim, é a realização do meu projeto. Para tanto preciso ter a certeza que as minhas iniciativas serão transformadas em realidade pela Fundação Bienal. Não quero uma confirmação legal de minhas funções, mas a certeza de que as minhas iniciativas terão a ressonância devida."
Ao final de 1972, depois de muitas cartas e telegramas enviados e das muitas promessas abandonadas pela presidência da Fundação, Flusser se desliga definitivamente de suas funções. Suas idéias foram apenas parcialmente integradas ao "Laboratório de Comunicações", um dos "núcleos" expositivos da 12. Bienal Internacional de São Paulo, inaugurada em 1973.
Um modelo para o mundo
Mesmo depois de sua primeira tentativa frustrada, Flusser parecia disposto a se engajar num novo projeto cultural que colocasse o Brasil à frente da cultura internacional. Em agosto de 1981, ele preparou um texto, intitulado "Encontro: analogia das linguagens", no qual apresentava a sua participação na 18. Bienal de São Paulo como convidado para um ciclo de conferências e como um de seus "animadores" já que, por seu intermédio, haviam sido convidados dois artistas franceses, Louis Bec e Herve Fischer.
Procurando ampliar as discussões sobre as "analogias de linguagem", Flusser convidou um grupo de artistas, cientistas e críticos de arte para um encontro informal na aldeia provençal em que vivia, para participar de um "laboratório de idéias", com o objetivo de preparar um elenco de sugestões a ser discutido na Bienal de São Paulo e servir como uma espécie de suporte teórico, visando as mostras futuras, tal como ele já havia definido no terceiro item de sua proposta de 1972.
Flusser havia preparado um breve discurso para a abertura desse encontro e esperava que a sua divulgação pudesse interessar às pessoas que se sentissem "desafiadas pelo tema a ser dialogado". Ele parecia sentir uma certa urgência em aproveitar o momento e o contexto histórico-geográfico em que se encontrava, que lhe proporcionava um "campo para reflexões com espírito calmo e em clima de liberdade". O encontro seria ainda motivado pela perspectiva, já apontada em seus textos e palestras, de que as novas formas de trabalho emergentes nas sociedades do ocidente já estariam produzindo uma mudança do foco de atenção, até então colocado sobre os objetos, para uma nova categoria "desmaterializada" de arte.2 Com o interesse cada vez mais voltado para a própria informação, seria necessário iniciar uma discussão urgente, estimulada pelo trânsito das informações "em quantidade e variedade por ora inimagináveis". Nesse cenário, as "analogias de linguagens" se tornariam um dos problemas centrais da vida cotidiana: um estágio a partir do qual o "nó" entre "arte" e "vida" estaria desatado.
Ele considerava que a preponderância das imagens técnicas (fotografias, tv, filme, vídeo e as imagens computadorizadas), como meios de transporte das informações, estaria substituindo a língua falada e escrita no seu papel de veículo das informações decisivas às necessidades culturais. Na sua forma de pensar, o que caracteriza a nossa sociedade é o "pensamento linear, histórico, conceitual e computacional" (calculador), e esse fator, preponderante nas culturas do Ocidente, já estaria sendo desafiado por outras formas, "pelo pensamento em mosaico e pelo pensamento 'imaginístico', mágico, das tecno-imagens".
Para ele, trazer essa discussão para o núcleo central da Bienal de São Paulo significava poder transformar todo o enorme capital de trabalho, dinheiro e inteligência nela investidos, "num centro modelar, não apenas para o Brasil, mas para a atualidade toda".
No início dos anos 80, o filósofo parecia ter sido novamente tomado pelo mesmo entusiasmo da década anterior, ao vislumbrar a possibilidade de surgimento de uma nova cultura, de "um novo homem" no Brasil. Além do que, essa reformulação da Bienal num "centro modelar para a atualidade" seria uma das formas que o Brasil teria de "saldar" a sua dívida externa. Sobre isso ele já havia escrito: "Os modelos que o Brasil emprestou da Europa e dos Estados Unidos, e os que continua emprestando (modelos de automóveis, de usinas atômicas, de sistemas econômicos e administrativos, de modas, de sociedade, de filosofias, de cultura de massa e da elite) são todos modelos ligeiramente ultrapassados e cobrados excessivamente". Para ele, "o Brasil importou modelos imprestáveis, e está pagando por eles o preço da alienação individual e coletiva. Poderá saldar tal dívida apenas se conseguir elaborar modelos alternativos, e exportá-los para o Ocidente".
Nessa perspectiva, o país não precisaria perder tempo seguindo os passos dados pela Europa no longo processo de alfabetização das massas. Como ele disse em 1988, numa de suas palestras do ciclo "Casa da Cor", em São Paulo, o Brasil poderia dar um salto sobre esse processo histórico linear e emergir diretamente no novo contexto regido pelas imagens técnicas. O evidente fascínio do brasileiro pelos meios audiovisuais (rádio e televisão), já lhe parecia ser uma prova de que no país haveria uma pré-disposição "inata" para o pensamento relacional, 'mosaical' e mágico; uma pré-disposição em construir redes entre os homens num "mundo cheio de deuses".
Mas apesar de todas as tentativas encaminhadas às várias presidências e curadorias que passaram pela organização da Bienal, nenhuma alteração substancial proposta pelo filósofo chegou a ser incorporada ao programa dessa grande mostra. Mesmo tendo a sorte de contar com o entusiasmo de um intelectual como Vilém Flusser, empenhado em oferecer uma alternativa cultural que se irradiasse do Parque do Ibirapuera para o mundo, a impressão que fica é a de que ainda temos muito trabalho pela frente, para fazer da Bienal de São Paulo "um fórum cultural com implicações mais profundas na vida de todos que dela se aproximem".
* Uma primeira versão reduzida deste artigo foi publicada no Caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, em 26 de maio de 2002.
1. Em 26 de julho de 1972, Flusser envia um primeiro relato à presidência da Fundação sobre sua proposta de "reorganização comunicológia da próxima Bienal". Ele salienta cinco importantes contatos de adesão realizados na Europa: o Stedelijk Museum, de Amsterdam; René Berger, da AICA; a Bienal de Veneza; o Frankfurer Allgemeine Zeitung; e a Delegação Brasileira em Genebra.
2. Sobre este tema, veja o artigo: FLUSSER, Vilém. Do Inobjeto. ARS, São Paulo, ano 4, n. 8, 2006, p. 30-35.