A exposição como medium: as bienais a partir das perspectivas teóricas abertas por Vílem Flusser*, Vinícius Spricigo
To Biennial or not to Biennial?
Em 2009, a questão foi colocada pelas organizadoras da Bergen Biennial Conference, SolveigØvstebø, Marieke van Hal e Elena Filipovic[1]. A pergunta se referia simultaneamente aos planos da cidade de Bergen em criar mais uma exposição periódica de arte contemporânea e ao próprio processo de “bienalização”, no qual apenas sete bienais em meados dos anos 1980 multiplicaram-se e chegam a mais de 150 espalhadas ao redor do mundo atualmente. Quarenta anos antes, a mesma pergunta servia como manchete para uma revista argentina, ao noticiar o boicote à X Bienal de São Paulo (1969)[2]. Colocava-se então em questãoo papel de uma bienal criado no modelo de pavilhões nacionais da Bienal de Veneza na cidade de São Paulo em 1951. A coincidência dos títulos aponta para o fato de que os debates em torno da Bienal paulista antecipam umadiscussãosobre as chamadas “bienais” que iria emergir nos chamados “centros” da arte moderna e contemporânea somente nos anos 1990, com autores, idéias e eventos que permanece ainda desconhecidos por grande parte dos pesquisadores situados nesses centros. Para citar apenas um único exemplo, em 1981, Walter Zanini, que ocupava o posto de curador da 16ª Bienal de São Pauloorganizou o “Primeiro Encontro de Organizadores de Bienais Internacionais” com a participação de Bernice Murphy (Bienal de Sidney) George Boudaille (Bienal de Paris), Luigi Carluccio (Bienal de Veneza), RudiFuchs (documenta) eOskarMejia(Bienal de Medelín), com o objetivo de discutir, entre outras questões, os “princípios teóricos que regem essas manifestações”[3]. O encontro organizado por Zanini ainda não recebeu a devida atenção por das pesquisas dedicadas às bienais. Portanto,uma "escavação arqueológica" (nos termos usados pelo filósofo VilémFlusser)nos arquivos históricos dessas exposições poderia nos levar muito além dessa mera coincidência de títulos, bem como da aparente atualidade dos debates sobre as bienais.
O eixo central ao redor do qual se desenvolve essa pesquisa é a proposta apresentada pelo filósofo Vilém Flusser na24ª Assembléia Geral da Associação Internacional de Críticos de Arte (1972). O debate em Paris confrontou a reformulação proposta pelo filósofo para a 12ª Bienal de São Paulo (1973) e o boicote organizado pelo critico francês Pierre Restany à Bienal de 1969.Por um lado, a posição de Restany representava a posição de grande parte da critica internacional sobre a situação da Bienal no Brasil sob o regime ditatorial. Por outro lado, o discurso teórico de Flusser enfatizava a articulação de novas relações entre centro e periferia e uma mudança radical na posição assumida pelo Brasil no âmbito da arte internacional.Interessa-nos aqui não revisitar o projeto de Flusser para a reformulação Bienal de São Paulo [4], mas antes entender como o pensamento do filósofo sobre a imagem-técnica foi articulado com uma reflexão singular sobre a Bienal e como ele, Flusser, entendia a oportunidade de reorganizar a exposição como uma tentativa de colocar em prática a sua teoria da comunicação.Nesse sentido, poderíamos chamar a atenção para o artigo “Diacronia e Historicidade” (1972), enviado pelo filósofo ao amigo Milton Vargas, “tentativa de racionalizar “o seu engajamento com a Bienal [veja o relato "Imagens migrantes" de Gilberto Mariotti sobre a fala de Vinicius Spricigo no Seminário Internacional Isaac Julien][5]
Aproximadamente uma década mais tarde, convidado por Walter Zanini como conferencista e articulador da participação dos artistas franceses Louis Bec e Hervé Fischer na 16ª Bienal, VilémFlusser retomaria essa relação entre uma teoria da imagem e a Bienal de São Paulo abordando a exposição não como uma mera mostra de “obras de arte”, mas antes como uma possibilidade de “critica do “aparelho"[6], a ser transformado por aqueles que participam da Bienal. Nesse momento a sua ênfase recai sobre a práxis dos produtores, especialmente de imagens técnicas(foco da sua reflexão) a ser decifrada pela leitura das imagens.Segundo Flusser, a razão pela qual o homem pós-moderno não é capaz de decifrar as tecno-imagens está no fato de que,assim como as imagens tradicionais, elas perderam a sua função primordial de servirem como instrumentos, armazém de informações e mediações entre o homem e o mundo.A imagem “vai se tornando opaca ao mundo. Em vez de representar o mundo, a imagem passa a encobrí-lo como biombo"[7] e passamos a viver em função das imagens. Por conseguinte, o argumento principal da série de Conferências intituladas “Imagem-imagem técnica”, no total foram seis (1. “Leitura da imagem tradicional”; 2. Dialética texto/imagem; 3. Invenção da imagem técnica; 4. Leitura da imagem técnica; 5. Dialética imagem/técno-imagem; 6. Crítica do aparelho)apresentadas por Flusser na Bienal de 1981, é a necessidade urgente de aprendizado da leitura da intenção existencial do produtor contida nas imagens. Segundo Flusser, “torna-se de mais em mais urgente retomarmos em mãos as imagens, e não permitirmos que nos programem. Utilizarmos as imagens enquanto instrumentos armazenadores de informação e mediadores com o mundo que são, e não vivermos em função das imagens"[8]. Somente ao final de suas conferências o interesse do filósofose desloca da intenção do produtor para a intenção dos“aparelhos” de produção e sobretudo de distribuição de imagens, entre eles as galerias, museus e bienais.Encerra assim Flussersuas conferências na 16ª Bienal, com um apelo:
Sobretudo aos que produzem tecno-imagens , mas também aos que possibilitam tal produção e aos que a criticam. Que se tornem conscientes que as tecno-imagens não são “obras”, e muito menos “obras de arte”, mas articulações de intenções humanas desvirtuadas por aparelhos. A práxis dos produtores de tecno-imagens é luta constante contra todo tipo de aparelho, contra a funcionalização e contra a programação de sua atividade. Pois graças a tal práxis são os produtos das tecno-imagens os que melhor conhecem os aparelhos, e os que melhor podem imaginar que projetos opor-lhes. Longe de serem meros “artistas” no significado burguês, são eles os desbravadores de novos caminhos estéticos, científicos e políticos da sociedade. Sua vocação é lutar contra aparelhos, tomá-los em mãos, e obrigá-los a servirem como instrumentos. O que a tela era para o pintor, o aparelho o é para o produtor de tecno-imagens. Sua vocação é a de informar os aparelhos com suas experiências existenciais, afim que sirvam de mediações com o mundo e com os outros. Meu apelo é que os produtores, os “animadores” e os críticos assumam tal vocação com imaginação e conceituação deliberadas.[9]
Seria entretanto ao comentar o projeto curatorial de Sheila Leirnerpara a Bienal de 1985, que Flusserressaltaria o papel dos aparelhos distribuidores de imagens (entre eles as galerias, o museus e as bienais), transferindo finalmente o interesse do produtor, para a exposição como meio (medium). A superação do objeto pela imaterialidade das imagens técnicas é adotada pelo filósofo como uma paradigma, no qual a intenção existencial de armazenar em objetos informações que sirvam de mediações do homem com o mundo é superada pela criação de contextos e processos dialógicos. No artigo “A 18ª Bienal de São Paulo, exemplo de espaço tempo novo” (1985), redigido para a revista Spuren (Hamburgo)ele afirma:
Simplificando, eis o problema encarado pela equipe criadorada 18ª Bienal de S. Paulo: escolher obras individuais, englobá-las em contexto relacional, e fazer com que tal contexto informe o visitante de forma conotativa sobre "O Homem e a Vida". O Contexto relacional é o ponto central do problema. A escolha de obras passa a ser o input do contexto, e a informação do visitante passa a ser seu output. […] A escolha das obras não se faz mais, como em exposições tradicionais, segundo critérios adequados a própria obra e seu autor, mas segundo critérios adequados ao contexto relacional a ser produzido. E a informação a ser proposta ao visitante não mais emanará das obras, mas do relacionamento estabelecido entre elas. A atenção se desviada “fonte”, do emissor, para o “canal”, o “medium”, jáque “the medium is the message”. A estrutura tradicionalmente discursiva, (o artista fala, o receptor escuta), cede lugar a estrutura dialógica, (os artistas falam entre si para darem a palavra final ao visitante). Criar tal espaço-tempo dialógico é o problema de toda criatividade futura.[10]
Flusser desenvolve essa concepção da exposição como medium portanto em consonância com suas reflexões acerca da imagem técnica e principalmente como crítica ao determinismo dos aparelhos e da “sociedade de consumo”, usando o jargão da época como veremos adiante. A mudança estrutural sofrida pela Bienal de São Paulo nos anos 1980 (certamente já vislumbrada por Flusser na década precedente) com a criação do cargo de curador e por conseguinte a atuação de Walter Zanini e Sheila Leirner na substituição do modelo de representação nacionais pelaarticulação da exposição ao redor de núcleos e convite direto a alguns artistas,era considerada pelo filósofo também de um ponto de vista geopolítico.
Algo de novo está acontecendo lá na península sulamericana longínqua, é o novo e, não tecnicamente, mas existencialmente novo. A Bienal não nos mostra novas técnicas para fazermos arte, mas mostra-nos nova atitude com relação a técnicas antigas. E isto não teorica-, mas concretamente. Devemos estudar o evento com toda atenção crítica, não apenas porque o evento merece, mas sobretudo porque necessitamos de modelos, se quizermos superar nossa crise. A 18ª Bienal é um dos raros exemplos para a inversão do fluxo de informações que se dirige do norte rumo ao sul: é ela fonte de informação que flui do sul rumo ao norte. Tomemos nota disso.[11]
Contudo, antes de nos aprofundarmos nessa fenomenologia suigeneris que Flusser nos apresenta da Bienal, vamos recuperar um pouco do histórico da sua participação no processo de reformulação dessa exposição.
2. A proposta para a organização das Bienais em bases científicas
VilémFlussertornou-se membro do Secretariado Técniconomeado pelo presidente da Fundação Bienal de São Paulo, Francisco Matarazzo Sobrinho, em conformidade com as recomendações da resolução daSegunda Mesa Redonda de Críticos de Arte e Artista Internacionais, realizada em 1971 (paralelamente à11ª Bienal) e presidida por René Berger, presidente da AICA.[12]De acordo com tais resoluções, um secretário geral (Mario Wilches, Fundação Bienal de São Paulo) e uma equipe (formada por Antonio Bento de Araújo Lima, presidente da seção brasileira da AICA, BethyGiudice, presidente da AIAP, seção Brasileira da InternationalAssociationofArteVilémFlusser)estavam encarregados da elaboração de um projeto para a12ª Bienal que seria realizada em 1973.É importante assinalar que a posição ocupada pelo filósofo na Fundação Bienal como conselheiro técnico, estava relacionada à sua cadeira de Teoria e Estética da Comunicação na Fundação Armando Álvares Penteado.Flussernão atuou como um curador, embora isso possa ser sugerido pelos contatos estabelecidos e planos elaborados pelo filósofo.Na verdade, desde a desvinculação da Bienal de São Paulo do Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1962, a Bienal deixou de contar com a organização de um diretor artístico e o cargo de curador seria criado somente nos anos 1980. A exposição era organizada pelo seu presidente fundador com a ajuda de assessorias específicas. Ademais o início da tentativa de reformulação da Bienal de São Paulo capitaneada pelo próprio Matarazzo datava de meados dos anos 1960 e tornava-se mais urgente com a crise instaurada apos o boicote.
Além disso, como anotado anteriormente, a proposta de VilémFlusser é articulada no exterior, principalmente em contato com o meio intelectual e artístico francês. Flusser aproveitou a oportunidade de viajar à Europa portando uma carta de apresentação do Ministério de Relações Exteriores como membro do secretariado técnico da Bienal para deixar o país e asua assessoria foi enviada da Europa através de relatos para Matarazzo ecorrespondência a outros interlocutores no Brasil: Alan Meyer e Gabriel Borba Filho (FAAP), Rubens Ricupero (Ministério das Relações Exteriores), além de Mario Wilches. No exterior, contatos foram estabelecidos, entre outros, com Emanuel Massarani (Adido Cultural da Delegação Brasileira em Genebra), Radu Varia (Bienal de Paris Biennale), Eduard de Wilde (StedelijkMuseum Amsterdam) e Umbro Apollonio (Bienal de Veneza). Muitos desse contatos foram resultantes da participação do filósofo na Assembléia Geral da AICA na qual ele apresentou sua proposta de reformulação para a Bienal de São Paulo.Em correspondência ao presidente da Fundação Bienal de São Paulo, Flusser assinala a importância do evento: “Por especial deferência do Professor Berger deverei participar de 12 a 16 de setembro próximo da Assembléia Geral da AICA em Paris, aonde por sugestão do próprio Berger submeterei à apreciação dos delegados a proposta cuja cópia estou lhe anexando em esbôço. Trata-se de um forum da maior importância, que será muito útil para a nossa Bienal”[13].
O ponto nevrálgico da proposta apresentada por Flusser era crise da mediação da arte com o público e para que essa fosse re-estabelecida de forma aberta e dialógica se fazia necessário uma reestruturação “comunicológica” da Bienal.Assim apresenta o filósofo a sua proposta: “A teoria da comunicação tendo sido elaborada em disciplina científica, não se justifica mais a organização meramente empírica de empreendimentos importantes como é a Bienal, sob pena de desaparecerem.”[14]. Desse modo, a teoria da comunicação seria uma base científica a fornecer subsídios teóricos para a reestruturação da Bienal de São Paulo e superar a sua crise na mediação com o público. Seria portanto papel da Bienal romper o seu isolamento e chegar às massas, “fazer com que a arte volte a ser influência significativa na vida diária do homem moderno e proporcione motivação para suas atividades”[15]. Para romper tal isolamento a arte deveria deixar de ser consumida contemplativamente e tornar-se produção criativa, rompendo suas barreiras e aproximando-se de outras atividades.
Inicialmente, Flusser analisa a “estrutura comunicológica da Bienal”, a comunicação interna entre produtores (artistas, críticos, teóricos, detentores de decisão e manipuladores dos canais de comunicação) e desses com os consumidores da cultura. O projeto dá especial ênfase à escolha dos “elementos que perfazem o repertório da Bienal” e aos “critérios de triagem”, alem de propor, é claro, a ampliação dos meios de comunicação da Bienal com o público (além da exposição, o discurso críticos, grupos de trabalho, mesas redondas, cursos preparatórios e cursos críticos depois da bienal). Por fim, conclui o filósofo:
As propostas submetidas obedecem à estrutura de árvore e são abertas. Não devem ser aceitas, nem realizadas, necessariamente na sua totalidade. O importante é a estrutura. Mas não se não for aceita a estrutura, se a Bienal continuar com estrutura fechada, terá sido perdida esta oportunidade de transformá-la em centro decisivo da vida artística, cultural e modeladora da atualidade. O grande valor da Bienal no momento é este: ter ela criado o potencial para a comunicação verdadeira da arte na atualidade. Se tal potencial não for utilizado, o valor da Bienal será anulado. Se for utilizado poderá resultar em centro modelar não apenas para o Brasil, mas para a atualidade toda.[16]
Eu faço um apelo a todos os críticos membros da AICA para essa reorganização. Eu ofereço a Bienal como um laboratório de experiência. A assim chamada crise da arte não é uma crise da estrutura da arte, mas trata-se de uma crise da comunicação entre arte e público. Exposição é um falso nome para a Bienal de São Paulo, trata-se de uma imposição. Os especialistas estrangeiros deveriam ser artistas-críticos-especialistas de comunicação de massa. O grande público deve ser modificado pela media de massa para poder participar desse trabalho. Deveriam ser constituídos diferentes grupos com tarefas específicas precisas. [...] Mais uma vez, faço um apelo a todos os críticos de arte para nos ajudar nessa realização. [17]
A apelo não foi entretanto acolhido com unanimidade, conforme elereportou à Matarazzo após a Assembléia: “De volta de Paris resumo para seu conhecimento os resultados da reunião da AICA: nossa proposta de reorganização foi submetida quarta-feira, dia 12, ao plenário e discutida em comissão ‘ad-hoc’, especialmente constituída, no dia seguinte. Os presentes se dividiram quanto à reação, recusando-se alguns a colaborar e hipotecando outros o seu apoio irrestrito”[18].
Entre os opositores estava o critico francês Pierre Restany, quem invocou o boicote sistemático de muitos artistas que se recusavam a participar da Bienal, ele próprio tendo cancelado sua participação na organização de uma sala especial sobre o tema “Arte e Tecnologia” em 1969. Restany foi ainda o organizador de um encontro no Musée d’artmoderne de laVille de Paris, no mês de junho daquele ano, para debater a participação francesa naBienal de São Paulo, que iniciou com a leitura dodossier“NonalaBiennale”, que destacava o fechamento de uma exposição organizada pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro na qual estavam os artistas escolhidos para representar o Brasil na 6ª Bienal de Paris. O documento apontava a Fundação Bienal como uma instituição oficial servil ao regime militar e a reunião transformou-se em assembléia na qual a maioria decidiu pelo boicote de artistas e críticos brasileiros e estrangeiros.[19]De acordo com Walter Zanini:
A Bienal em São Paulo pagou o pato, de certa maneira, pelo fato de o governo daquela época ter censurado os trabalhos dos artistas brasileiros que iam para a Bienal de Paris. Eu me lembro bem disso porque eu estive nessa escolha. E aí os artistas resolveram, no mundo inteiro, a fazer um boicote na Bienal. Houve um grande encontro lá no Centro Pompidou com o Restany. Não sei quantas centenas de adesões, de subscrições a favor do boicote, e a Bienal daqui, então, esvaziou. [...]. O Restany ia trazer uma belíssima exposição de arte e tecnologia. Essas coisas são muito vivas ainda hoje. Pra mim, que sou daquele tempo. Ele queria trazer uma série de artistas, cada um com uma sala, para uma obra só. Não podia ser obra muito grande, mas ia trazer acho que quarenta artistas. Ia dar todo o desenvolvimento da arte e tecnologia, não só da Europa e os Estados Unidos. Pouca gente talvez saiba [...].[20]
Devido ao boicote a Bienal de São Paulo perdeu muito do seu prestígio o que contribui para que as bienais realizadas nos anos 1970 se tornassem um “ponto cego” na historiografia sobre o período[21]. No Brasil esse período está associado à idéia de “vazio cultural” (termo cunhado pelo jornalista Zuenir Ventura)enquanto no exterior não se considera o projeto de reformulação da Bienal de São Paulo como umareferência fundamental para o estudo das exposições de arte contemporânea.
Apesar de um dos destaques[22] da 12ª Bienal de São Paulo ter sido um projetos da seção “Artee Comunicação”vinculado ao projeto apresentado porVilémFlusser, este havia se desligado da Fundação Bienal no final de 1972. Corroborando como motivo a falta de aportes financeiros por parte da Fundação Bienal, apresentada por Ricardo Mendes a partir da revisão da correspondência trocada entre Flusser e Matarazzo[23], temos a afirmação de Walter Zanini:
[…] defato, foi um pecado o queaconteceu. Todoaqueletrabalho [...] Todososcontatosfeitos, no começo com o Flusser, depoisporumapessoaqueeledeixoulá [RaduVaria], ele [Flusser] reclamavaque era mal pago, queprecisavareceberdinheiro de acordo com oscontatosqueestavafazendo. E a Bienal, ainstituição, Matarazzo,nãoatendeu, ouatenderamem parte e eleentãocancelou. E deixououtrapessoa.Masoscontatos dele com um ououtroartistaestavamcomeçando.[24]
Os temas e grupos de trabalhos definidos por Flusser a partir desses contatos incluíam: (Comunicação e Happenings – Derrick de Kerckhove, Eric McLuhan e Fred Forrest; Comportamento e Gestos – PetrSpeilmann, Museu de Bechum; Ambiente Humano Diário – Manfred Eisenbeis e Alexandre Bonnier, Institut de l’Environment de Paris; Escultura – Jean Duvignand; Cultural Events – Radu Varia, Bienal de Paris; Arquitetura e Urbanismo, HorisDamian; Introdução de elementos africanos na cultura – Joseph Cornet; Alimentação). A temática evidencia a transformação da Bienal em laboratório para proposições e pesquisas de arte e comunicação, realizada parcialmente na seção de mesmo nome na Bienal de 1973. Contudo, em carta à Mario Wilches, o filósofo expressou sua preocupação a realização da sua proposta:
A ideia que submetí a você e aos outros, (e que foi aprovada), foi a de convidar estrangeiros para formarem equipes-laboratórios com brasileiros. Embora praticamente todos os temas e personalidades propostos por mim tenham sido aceites, e embora o Varia tenha sido aceite conforme minha proposta, receio que você está enganado ao dizer que a reformulação segue praticamente minha proposta. Parece que a contribuição ativa brasileira ficou marginalizada. Gostaria que esta minha objeção fundamental fosse devidamente registrada e divulgada pela Diretoria, e apelo a você neste sentido.[25]
Flusser assinala uma oportunidade perdida de articulação de novas relações entre centro e periferia na qual o Brasil poderia transformar-se em modelo para outras exposições internacionais. Nesse sentido, a incapacidade de uma reestruturação completa do aparelho de distribuição de imagens a partir de bases científicas contribuiu para que a Bienal de São Paulo permanece como mera receptora dos fluxos de informação recebidos do hemisfério norte.Veremos a seguir, como essas questões geopolíticas estão associadas com uma fenomenologia das exposições que iniciacom o ensaio “Da Bienal” (1965) publicado porVilémFlusser no Suplemento literário do Estado de São Paulo.
3. Por uma arqueologia das exposições
Para concluir, gostaríamos de retomar aqui a proposta de uma “escavação arqueológica” colocada no início desse texto, concordando com NorvalBaitello Junior na afirmação de queuma ciência arqueológica busca o sentido prospectivo no sentido retrospectivo.[26] Arqueologia para Vilém Flusser é a pesquisa do lixo. O lixo ao qual Flusser se refere é tudo aquilo descartado da nossa cultura, aquilo que perdeu o seu valor como in-formação. A cultura consumida transforma-se, segundo Flusser, em detrito, ou seja: a natureza in-formada pela ação manipuladora humana adquire valor, para posteriormente perder esse mesmo valor(a informação armazenada) tornando-se por fim descartável e retornando à natureza, na forma de lixo. O reino da cultura como resultado da “devoração”[27] do reino da natureza é igualmente devorado pelo consumo para produzir o reino do lixo. Em razão deste último surge a arqueologia, a escavação do lixo, do passado recusado e jogado fora, esquecido, recalcado e não apresentável (deliberadamente). Tudo aquilo que não foi arquivado, colecionado ou historicizadovai se acumulando sob uma superfície cultural e formando um verdadeiro labirinto que determina a condição humana na sociedade atual.
Para VilémFlusser, “já que o passado recalcado e consumido nos condiciona muito mais que o passado histórico e apresentável, estamos perdendo o interesse pela história e adquirindo o interesse pela arqueologia”. Assim, as ciências arqueológicas deveriam “libertar-nos da determinação do lixo”, assim como as “ciências da cultura pretendem libertar-nos da determinação cultural”: “A nossa esperança ao elaborarmos tais disciplinas é que o lixo rememorado deixe de condicionar-nos. Que, se nos tornemos conscientes de sua impotência para o consumo, essa impotência passe a ser mais um dado a ser por nós manipulado criativamente.”[28]
Trata-se aqui de uma possibilidade de, ao indagar pelo esquecimento e recalque do processo de reformulação da Bienal de São Paulo, questionar sobretudo o significado e propósito da Bienal hoje em meio às tantas outras bienais que se proliferaram pelo mundo todo nos últimos vinte e cinco anos. Seria oportuno, entretanto, anotar de antemão o fato de que VilémFlusserde modo algum analisou a bienal paulista de maneira isolada, mas no contexto de uma “sociedade de consumo” emergente que ainda se localizavarestrita nos países do Ocidente (Europa e Estados-Unidos). A realização obstinada daBienal de São Paulo tratava-se, segundo Flusser, antes de mais nada de uma tentativa de inversão da posição periférica de São Paulo no contexto da cultura ocidental[29].
O filósofo empregou na década de 1960, um método fenomenológico, ferramenta fundamental das ciências arqueológicas nos seus dizeres, para abordar a Bienal de São Paulo, em artigos nos quais o filósofo analisa os temos “exposição” e “obra de arte” na “tentativa de apreciar o fenômeno da Bienal no conjunto da civilização da qual participamos”.[30] O ponto de partida é uma distinção entre objetos de consumo resultantes da tecnologia moderna e obras de arte no sentido tradicional (pintura e escultura). Embora as obras de arte no sentido moderno sejam anacrônicas em relação às imagens produzidas e consumidas massivamente (revistas ilustradas, anúncios publicitários, etc.) de acordo com o raciocínio de Flusser pode-se afirmar que o motivo principal da realização de uma exposição Bienal seria justamente revelar a excepcionalidade das obras de arte enquanto objetos que não se prestam ao consumo, cuja informação permanece armazenada em sua forma.Não à toa são objetoscada vez mais valorizados em um mundo de proliferação e circulação de imagens descartáveis.
Atualmente dentro de um discurso globalizado sobre as bienais emprega-se o termo não-ocidental para referir-se às Bienais de São Paulo, Havana e Joanesburgo[31]. No entanto, de acordo com a fenomenologia que Flusser faz das exposições, ocorre um verdadeiro “curto-circuito” quando se exibe no mesmo local “obras de arte” e instrumentos produzidos por outras culturas. Pode-se observar a bifurcação existente no Ocidente entre “técnica” e “arte”.[32] Instrumentos produzidos pelo homem possuíam uma dimensão estética, bem como imagem uma dimensão epistemológica e políticas, antes de “uma leitura estetizante da natureza, tipicamente burguesa [...] reduzir as imagens a meras ‘obras de arte’”[33]. Flusser identifica com clareza o anacronismo da “exposição” de “obras de arte”, em uma sociedade moderna que criou imagens técnicas e aponta como principal motivo da realização de uma Bienal revelar “a bifurcação da atividade manipuladora moderna, e a conseqüente inautenticidade tanto dos nossos instrumentos, como das nossas obras de arte [...]”. Portanto, as Bienais expõe “obras de arte no significado moderno do termo para demonstrar que essas obras são o lado avesso da técnica, e que serão significativas apenas quando estiver novamente unificada a atividade manipuladora do homem.”[34] Assim, a “conciencialização” do papel da Bienal de São Paulo permitira segundo Flussera sua superação.Nessa perspectiva, acreditamos que uma arqueologia da Bienal de São Paulo seria mais necessário do que nunca, na medida em que poderia penetrar em camadas subterrâneas, muito além daquilo que é apresentado pela instituição sob uma superfície cultural ou registrado como vazio na sua história, fornecendo subsídiospara umareformulação prospectiva.
*Essa pesquisa recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (FAPESP) na forma de bolsa de pósdoutorado concedida em Abril de 2011
SPRICIGO, Vinicius. Oui a la Biennale de São Paulo: Vilém Flusser’s Anti-Boycott, Arara, no 11, 2013.
[1] O evento foi realizado entre 17 e 21 de Setembro de 2009, na cidade de Bergen, na Noruega.
[2] To Bienal or not to Bienal: San Pablo: protesta y abstención. Análisis (Buenos Aires), July 29, 1969.
[3] Fundação Bienal de São Paulo. Primeiro Encontro de Organizadores de Bienais Internacionais, 1981. Arquivo Histórico Wanda Svevo
[4] Sobre o tema cf. MENDES, Ricardo. Bienal de São Paulo 1973 – Flusser como curador: uma experiência inconclusa. Ghrebh – Revista de comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, n.11, 2008; RAMIRO, Mário. Um salto para um mundo cheio de deuses, Ars, n. 10, 2007.
[5] FLUSSER, Vilém. Diacronia e historicidade, 1972. Arquivo Vilém Flusser
[6] Flusser assume a fotografia como sendo o primeiro “aparelho” em significado amplo e define aparelho como “espécie de máquina, e ‘máquina’ como espécie de instrumento. Que ‘instrumento’ seja objeto invertido contra o mundo objetivo afim de modificar tal mundo. [...] Que ‘maquina’ seja instrumento passado pelo crivo de uma teoria. [...]. Tais definições sugerem que máquinas são instrumentos tão especiais que exigem nova tomada de consciência quando surgem. E que aparelhos são máquinas tão especiais que exigem repensarmos radicalmente a relação ‘homem/instrumento”. FLUSSER, Vilém. Imagem-imagem técnica. Conferências na XVI Bienal de São Paulo. (6) Crítica do Aparelho, 1981. Arquivo Vilém Flusser
[7]FLUSSER, Vilém. Imagem-imagem técnica. Conferências na XVI Bienal de São Paulo. (1) Leitura da Imagem Tradicional, 1981. Arquivo Vilém Flusser
[8] FLUSSER, Vilém. Imagem-imagem técnica. Conferências na XVI Bienal de São Paulo. (1) Leitura da Imagem Tradicional, 1981. Arquivo Vilém Flusser
[9] FLUSSER, Vilém. Imagem-imagem técnica. Conferências na XVI Bienal de São Paulo. (6) Crítica do Aparelho, 1981. Arquivo Vilém Flusser
[10] FLUSSER, Vilém. A 18ª Bienal de São Paulo, exemplo de espaço tempo novo, 1985. Arquivo Vilém Flusser
[11] FLUSSER, Vilém. A 18ª Bienal de São Paulo, exemplo de espaço tempo novo, 1985. Arquivo Vilém Flusser
[12] Ofício do Secretariado Técnico à Francisco Matarazzo Sobrinho (03.05.72). Arquivo Vilém Flusser
[13] Flusser, Vilém. 3° Relato enviado à Francisco Matarazzo Sobrinho (11.08.1972). Arquivo Vilém Flusser
[14] FLUSSER, Vilém. Proposta inicial para uma organização das futuras Bienais em base científicas, 1972. Arquivo Vilém Flusser
[15] FLUSSER, Vilém. “Proposta inicial para uma organização das futuras Bienais em base científicas”, 1972. Arquivo Vilém Flusser
[16] Idem.
[17] FLUSSER, Vilém. “XXIVe Assembléé Generale de l’Association International des Critiques d’Art. (12.09.71) Archives de la Critique d'Art (traduzido do francês)
[18] Flusser, Vilém. "4° Relato" (22.09.72). Arquivo Vilém Flusser
[19] "Non a la Biennale de São Paulo" (16.06.1969). Archives de la Critique d'Art
[20] Entrevista inédita de Martin Grossmann, Pamela Prado e Vinicius Spricigo realizada em 16.12.2009 no apartamento de Walter Zanini em São Paulo.
[21] Cf. WHITELEGG, Isobel. The Bienal de São Paulo: Unseen/Undone (1969-1981), Afterall, n.22, 2009.
[22] Nos referimos ao trabalho do artistas Fred Forest, membro do Collectif d´Art Sociologique, quem participou dessa bienal como o projeto “Comunicação de Massa – Animação de Imprensa, parte de uma série intitulada “Space-Media”.
[23] MENDES, Ricardo. Bienal de São Paulo 1973 – Flusser como curador: uma experiência inconclusa. Ghrebh – Revista de comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, n.11, 2008
[24]Entrevista inédita de Martin Grossmann, Pamela Prado e Vinicius Spricigo realizada em 16.12.2009 no apartamento de Walter Zanini em São Paulo.
[25] FLUSSER, Vilém. Carta para Mario Wilches (26.04.73). Arquivo Vilém Flusser
[26] Vilém Flusser: Um filósofo, culturólogo e comunicólogo. Entrevista com Norval Baitello Junior por Thamiris Magalhães. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 399, 2012.
[27] Tal visão do processo cultural estava pautada em uma concepção “antropofágica”, muito própria do contexto brasileiro no qual Vilém Flusser desenvolveu as idéias acima apresentadas. Não a toa, conforme assinala Norval Baitello Junior. Flusser emprega o termo “devoração”, em seu ensaio “a consumidora”, mas também ao escrever sobre o tema “Da Gula” (1963).Cf. BAITELLO JUNIOR, Norval. A gula de Flusser: a devoração da natureza e a dissolucão da vontade. In: A serpente, a maçã e o holograma: esboços para uma Teoria da Mídia. São Paulo: Paulus, 2010, p.23.
[28] FLUSSER, Vilém Flusser. A consumidora consumida, Comentário, n. 51, 1972.
[29] Cf. FLUSSER, Vilém. As bienais de São Paulo e a vida contemplativa, 1969. Arquivo Vilém Flusser
[30] FLUSSER, Vilém. Da Bienal, 1965. Arquivo Vilém Flusser
[31] BUDDENSIEG, Andrea; WEIBEL, Peter. Deterritorialized Complexity – Visualizing Artworlds after 1989. Available at: http://www.global-contemporary.de
[32] FLUSSER, Vilém. Da Bienal, 1965. Arquivo Vilém Flusser
[33] FLUSSER, Vilém. Imagem-imagem técnica. Conferências na XVI Bienal de São Paulo. Arquivo Vilém Flusser
[34] FLUSSER, Vilém. Da Bienal, 1965. Arquivo Vilém Flusser