Instituições e Formação de Público em um Sistema de Artes Tardio, Moacir dos Anjos
1. Gostaria de iniciar refletindo, em termos bastante gerais, sobre o significado do tema dessa mesa redonda (Instituições como Interface) e de como imagino que ela se insere no tema geral do simpósio (Padrões aos Pedaços).
2. Pensar em instituições como interface implica, a meu ver, a necessidade de formular e responder, de imediato, a duas questões mais amplas: (i) interface entre quem ou entre o quê? e (ii) o que resulta dessa interface? Para responder a essas questões, acho útil me reportar ao conhecido esquema explicativo de Thierry de Duve sobre as quatro condições para que algo seja convencionalmente definido como arte: (i) a existência de um objeto, (ii) a existência de um autor desse objeto (o artista), (iii) a existência de um receptor desse objeto (o público), e, finalmente, (iv) a existência de um sancionador social desse objeto (a instituição). É justamente da interação entre essas quatro instâncias que um objeto determinado é inscrito e legitimado, publicamente, como um objeto artístico. Nesse contexto, a instituição (e por enquanto não vou fazer distinções entre museus e centro culturais) desempenha o papel fundamental de confirmar, ou não – a partir da autoridade que a sociedade lhe concede –, enunciados diversos que se propõem como arte, seja qual for a forma que esse enunciado assuma (uma pintura, uma instalação, uma performance, ou um projeto na Internet). Não existe, portanto, neutralidade nessas relações; as interfaces criadas entre objeto, artista, público e instituições são permeadas de jogos de poder, da defesa e do ataque de pontos de vista e de interesses que, a cada momento, resultam em acordos e em convenções que sancionam, sempre de uma forma provisória (posto que estão sempre sujeitas a reavaliações futuras), aquilo que é e aquilo que não é arte.
3. É importante enfatizar que, a princípio, não há nada de errado nisso; são de embates institucionalizados entre posições diferentes que se criam e se firmam não só os valores estéticos, mas também os valores morais, políticos e econômicos nas sociedades complexas e democráticas. E é desse ponto de vista que eu gostaria de propor uma interpretação possível do tema geral do simpósio. Na verdade, os padrões (ou convenções) que regem e regulam o campo das artes estão, ao menos desde o início do século xx, em constante transformação, num processo permanente de auto-crítica que destrói e recria padrões a partir de novos enunciados propostos pelos artistas. O que talvez haja de específico no momento atual, e sobre o qual gostaria de comentar em seguida (dando mais concretude à minha intervenção), é um desacerto, ou um descompasso, entre as demandas das proposições artísticas contemporâneas e a capacidade das instituições em responderem articuladamente a elas, seja para rejeitá-las ou para inscrevê-las, publicamente, como arte.
4. Como são muitas as possibilidades de abordar as fissuras das interfaces entre as instituições e as outras instâncias que movem o campo das artes (e limitado o tempo expositivo), vou me concentrar em poucos aspectos, talvez aqueles que ache os mais urgentes de serem objeto de reflexão. Primeiramente, gostaria de comentar, ainda que brevemente, sobre a que nos referimos, afinal de contas, quando falamos em instituições que lidam com a arte contemporânea. E aqui eu acho importante refletir sobre a tradicional divisão entre museus e centros culturais. Museus são comumente diferenciados de centros culturais por possuírem um acervo e, portanto, por terem as responsabilidades associadas a ele, tais como preservação, documentação e pesquisa. Os centros culturais, por sua vez, são definidos como instituições cujo foco são as exposições temporárias (principalmente de novos trabalhos), e que não possuem, portanto, a responsabilidade de conservar a produção artística. O que ocorre, entretanto, é que essas distinções estão ficando cada vez mais tênues. Por motivos diversos (desde a necessidade por atrair mais público até, no caso brasileiro, pela pouca densidade e pouca especialização institucional do campo das artes), os museus que lidam com arte contemporânea têm feito, principalmente nas últimas duas décadas, mais e mais exposições temporárias, ao ponto de, muitas vezes, os acervos ficarem mais guardados do que expostos. Sem entrar no mérito se isto é positivo ou não (embora ache essa discussão relevante), o fato é que os museus têm, por esses motivos, criado mecanismos de interface não somente com trabalhos já realizados (no caso de aquisições e guarda de um acervo), mas com trabalhos ainda em processo ou recém-realizados, que poderão ou não vir a se tornar parte de uma coleção. E isso requer capacidade de adaptação e flexibilidade, tanto física como gerencial, tanto arquitetônica como curatorial. Requer, além disso, muito mais recursos financeiros, posto que comissionamento de obras e disponibilização de recursos expositivos complexos são componentes de custo elevado, porém fundamentais ao bom desempenho dessas funções ampliadas dos museus. Na verdade, é como se dentro de cada grande museu funcionasse também um centro cultural, com objetivos que se complementam mas possuidores de demandas diferentes. Por outro lado, a complexidade da produção contemporânea – freqüentemente baseada em processos e não em produtos; por vezes perecível ou intangível; ou mesmo baseada em ações que quase se dissolvem nos mecanismos de sociabilidade comum – exige, mesmo dos centros culturais que abrigam essa produção, a necessidade da documentação, do registro e da pesquisa, desse modo formando, ao longo do tempo, uma espécie de acervo virtual, mesmo que sem implicações de ordem patrimonial.
5. Uma das questões que eu gostaria de colocar em discussão a partir dessas mudanças, e que me aflige como diretor e curador de um museu público brasileiro, é justamente saber como seremos capazes de dar conta (ou mesmo saber se seremos capazes de dar conta), de forma minimamente responsável, dessas crescentes demandas. O problema é que chegamos a essa situação de termos que flexibilizar e ampliar as funções do museus (por questões comuns a vários outros países e outras específicas do nosso meio) sem termos resolvido (salvo, talvez, pouquíssimas exceções) problemas museológicos básicos de formação de acervos, preservação e catalogação. E não serão essas novas funções que vão resolver os antigos problemas, pois, por mais importantes que essas novas funções sejam para o papel formador que o museu deve ter, elas colocam outros grandes desafios para os museus. De um certo modo, acho que é possível dizer que, no Brasil, chegamos a contemporaneidade tardiamente. Ou seja, em um momento em que as demandas que a produção artística e o campo das artes colocam para as instituições são basicamente as mesmas tanto para o Brasil quanto, por exemplo, para a Inglaterra, a França ou o México, há uma diferenciação enorme entre a capacidade sustentada de resposta das nossas instituições a essas demandas e a capacidade de resposta de países que há muitas décadas já estabeleceram, em bases firmes, um sistema museológico. E não há, simplesmente, como atualizar um sistema de artes tardio de forma gradual. Em uma época de internacionalização do capital econômico e simbólico, não há mais progressão a ser feita, pois a simultaneidade é a regra. Não é mais possível esperar a lenta consolidação de uma rede institucional fundada na formação e na preservação de acervos para só então avançar em outras direções. Considerando que o investimento maciço de recursos públicos ou privados no setor esteja, em termos realistas, fora de questão, que soluções nos restam? Que padrões de interface com a arte contemporânea podem ser criados a partir dos pedaços que constituem nossa rede de instituições museológicas, atendendo, ao mesmo tempo, as sempre adiadas soluções para as funções tradicionais dos nossos museus? Para simplesmente não abdicar delas, precisamos, no mínimo, de criatividade.
6. Gostaria, agora, de comentar um outro tipo de interface que as instituições precisam estabelecer como atores ativos no processo de legitimação da produção artística, que são as relações com o público. Mais especificamente, gostaria de tratar das estratégias de formação adotadas em vários museus e centros culturais do país, nas quais enxergo alguns problemas que são indicadores, também, de uma mudança de padrões ainda não assentada em novas convenções. Para tratar dessa questão, vou tentar descrever, ainda que de modo pontual, algumas das características que a passagem do moderno ao contemporâneo assume nas artes visuais brasileiras (embora, pela própria natureza desse processo, seja obviamente problemático discuti-lo a partir das especificidades de campos artísticos ou de fronteiras territoriais).
7. Vou começar citando o crítico brasileiro Mário Pedrosa, que, num conhecido texto escrito em 1966, afirmava que havíamos chegado, àquela época, ao fim do que se chamava de “arte moderna” e que, consequentemente, os “critérios de juízo para a apreciação” da arte desenvolvidos com a arte moderna já não poderiam ser os mesmos para julgar e apreciar a arte de sua época. Para Pedrosa, estaríamos em um “outro ciclo”, que não seria mais “puramente artístico”, e sim “cultural”, ao qual ele chamava, já então, de “arte pós-moderna” (“Arte Ambiental, Arte Pós-Moderna, Hélio Oiticica”). Ao localizar a distinção entre arte moderna e pós-moderna (ou, entre arte moderna e arte contemporânea) na oposição entre o “puramente artístico” e o “cultural”, Mário Pedrosa estava, de fato, apontando para o esgotamento do projeto modernista canônico, que, nas variadas versões de seus melhores críticos (seja Greenberg, nas artes visuais, seja Adorno, na teoria crítica), apregoava a autonomia do campo da arte (supostamente erudito, culto e auto-referencial), e sua aversão a qualquer possibilidade de contaminação ou de troca com o âmbito da cultura de massa ou popular.
8. Analisando a situação da arte brasileira em 1967, Hélio Oiticica formulou a expressão Nova Objetividade, cujas principais características seriam: “1. vontade construtiva geral; 2. tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete; 3. participação do espectador (corporal, táctil, visual, semântica, etc); 4. abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5. tendência para proposições coletivas e conseqüentemente abolição dos “ismos” característicos da primeira metade do século na arte de hoje; 6. ressurgimento e novas formulações do conceito de anti-arte”. As características listadas por Oiticica anunciam a mudança de sensibilidade e de paradigma em curso no meio cultural brasileiro, na qual a arte deixa, gradualmente, de ser entendida como um campo autônomo, e passa a ser vista como um espaço de articulação simbólica entre campos diversos e de proposição de operações cognitivas.
9. E para Mário Pedrosa, é justamente nos trabalhos que Hélio Oiticica desenvolve ao longo da década de 1960 que os valores propriamente plásticos da arte deixam-se mais claramente absorver por diversas estruturas perceptivas e ambientais. A exaltação sensorial que Pedrosa identifica no trabalho de Oiticica ganha plena potência, contudo, apenas quando o artista passa a freqüentar, no início dos anos 60, a Escola de Samba da Mangueira, espaço de sociabilidade popular carioca que termina por transformar a sua obra numa espécie de agenciadora entre campos distintos da híbrida cultura brasileira (erudito/popular; inclusão/marginalidade; vanguarda/kitsch; presente/passado). A cor – elemento central de seu projeto artístico inicial – deixa de ser um elemento separado do corpo, passando a ser algo que se toca, que se cheira, que se veste, que se dança, que se torna lugar de vida.
10. Com motivações completamente distintas das de Hélio Oiticica, Nelson Leirner também questiona, na mesma época, a idéia de autonomia do campo da arte. Na instalação “Adoração (Altar para Roberto Carlos)” expõe um retrato do ídolo musical numa posição própria ao culto. Cercada por várias imagens de santos e santas – todas menores que a do cantor e postas em quase penumbra –, a imagem de Roberto Carlos é apresentada de forma ambígua, evocação de alguém próximo e contudo ausente. À entrada do “altar”, uma roleta sugere, de modo inequívoco, que é preciso pagar para ingressar no espaço de veneração ao ídolo.
11. Por aproximar, de maneira proposital e ostensiva, instâncias simbólicas distantes, esse trabalho de Nelson Leirner ecoa e reitera a vontade de diluir fronteiras entre formas diferentes de expressão. A instalação é também comentário evidente sobre a expansão acelerada da cultura de massas no Brasil e a conseqüente subversão de hierarquias há muito assentadas: em lugar do ícone religioso, é o mito profano que se torna objeto de adoração; em vez de ser espaço para acolhimento do espírito, o “altar” é transformado em palco para idolatrar um expoente das transformações estéticas correntes. Não há nenhum elogio ou sequer condescendência, entretanto, no reconhecimento do espaço proeminente que a indústria cultural passa a ocupar no cotidiano urbano do país. A suposta homenagem ao ídolo popular fica no limite exato que a separa da zombaria, da sugestão do ridículo que é cultuar um artista como um santo. O que o trabalho faz é “desclassificar” as coisas do mundo, embaralhando os valores (sejam eles morais ou estéticos) atribuídos a elas e, mesmo sem torná-las idênticas, promover a sua desordem taxonômica.
12. Também propulsor, no Brasil, da quebra do paradigma moderno da autonomia da arte e da demonstração do potencial político do gesto artístico, Cildo Meireles fez trabalhos, no início dos anos 70, em que inseria, em sistemas de circulação já existentes, informações contrárias aos próprios interesses que fundamentam esses sistemas. No conhecido trabalho Inserções em Circuitos Ideológicos. Projeto Coca-Cola, imprimia, em garrafas vazias do refrigerante (nessa época feitos de vidro e retornáveis ao fabricante para serem novamente usados), mensagens contrárias ao efeito “anestesiante” daquela (e de qualquer outra) mercadoria, devolvendo-os, em seguida, à circulação mercantil. Como demonstração de que esse trabalho de contra-informação podia ser reproduzido por qualquer pessoa, Cildo Meireles apresentou, em várias exposições, garrafas sobre as quais havia impresso mensagens e instruções sobre como o público deveria proceder para inserir as próprias “opiniões críticas” no espaço reificado onde vivia e do qual a Coca-Cola seria símbolo.
13. Para o artista, esse trabalho seria o avesso da operação por meio da qual Marcel Duchamp criara o ready-made quase seis décadas antes: ao invés de subtrair um objeto do campo mercantil e colocá-lo no campo consagrado da arte, Cildo Meireles propunha a inserção de informações ruidosas no campo homogêneo em que as mercadorias circulam e se trocam. Questionava, ademais, a noção de autoria do próprio trabalho, já que estimulava outros a fazer tais inserções em seu lugar mediante as instruções de procedimento que fornecia. De fato, seria somente a partir da expressão individual, anônima e difusa frente aos vastos mecanismos de controle social em curso que o trabalho ganharia pleno sentido e eficácia.
14. As obras de Hélio Oiticica, Nelson Leirner e Cildo Meireles são, portanto, indicadoras da porosidade da produção artística a partir deste período, a qual deixa-se contaminar (ou, em alguns casos, busca ativamente a contaminação) pelos campos, respectivamente, da cultura popular, da cultura de massas e da política. Elas são exemplares da relativização do interesse antes nutrido pelas características puramente formais do objeto de arte ou, alternativamente (como na arte pré-moderna ou até mesmo em alguns artistas da primeira fase do modernismo brasileiro), da vontade de subsumir tudo ao tema. Elas escapam, portanto, do reducionismo binário que opunha a forma ao assunto. Sem render-se à idéia de pertencimento a um só âmbito expressivo, eles situam-se no território frágil e efêmero em que a arte e os espaços da vida cotidiana (o corpo, o consumo, a política) se tocam e se misturam.
15. É importante notar que o campo da política também passou por transformações significativas desde a década de 1960, causando uma dissolução progressiva dos limites em que se situava e se entendia o seu funcionamento. O surgimento e a consolidação dos movimentos de direitos civis (das mulheres, dos negros, dos homossexuais), o fortalecimento da consciência ecológica, e as questões antigas que o processo de globalização econômica e cultural atualiza (quebra de fronteiras, nacionalismo, reconstrução identitária) forçaram o alargamento conceitual do que se entende como as esferas da política e da cultura, e das formas de atuação a partir de seu centro. Relações de antagonismo como poder civil x poder de Estado, indivíduo x coletividade ou privado x público passam a ser problematizadas ou desfeitas, aproximando, de modo similar ao que acontece no campo da arte, política e vida comum.
16. É contra esse breve pano de fundo histórico que gostaria de tecer alguns breves comentários sobre a formação de público para a arte contemporânea. Em primeiro lugar, há uma questão geral que qualquer estratégia de formação de público adotada por museus ou centros culturais no Brasil deve necessariamente levar em conta, sob o risco de não compreender os limites de suas ações. Trata-se da relativamente pequena importância que as artes visuais possuem na teia de interesses culturais do povo brasileiro, constrangimento estrutural que apenas uma ampla mudança na política educacional do país poderia, no médio e longo prazo, reverter.
17. Há, contudo, é evidente, uma série de ações que, articuladas, podem minimizar essa situação a partir dos museus e centros culturais, incluindo a realização de programas expositivos bem elaborados, a publicação de bons catálogos (não necessariamente luxuosos) para acompanhá-los, a realização de debates e outras práticas discursivas, além de projetos de mediação contextualizados. Parece-me também claro, entretanto, que, qualquer estratégia ou ações voltadas para a interação com o público estarão fadadas ao fracasso se não levarem em conta as articulações que a arte contemporânea estabelece com outros campos de conhecimento.
18. Considerando que isto seja um pressuposto sobre o qual haja concordância (o que não é, necessariamente, verdade), há duas questões específicas de cujo enfrentamento também depende, creio, o sucesso de qualquer política de formação de público para arte contemporânea. A primeira diz respeito a como expor, didaticamente, objetos cuja presença física é não exatamente o trabalho, mas apenas um índice do trabalho do artista. É conhecido o caso dos Parangolés de Hélio Oiticica, exibidos na Documenta X (1997) pendurados em cabides, longe do contato do público e incapazes de promover, daquele modo, a articulação entre campos culturais distintos que lhe deu origem. Aliás, mesmo a utilização de réplicas para o público manusear as capas parece-me ser, por si, uma estratégia ainda insatisfatória para “expor” o trabalho de Hélio Oiticica, pois não considera o contexto da proposição original do artista. Não sei exatamente como fazê-lo, mas intuo que outros elementos seriam também necessários para “formar” o público a respeito desse trabalho. E esse é um problema recorrente e importante para pensar a formação de público para a arte contemporânea.
19. A segunda questão específica que gostaria de apontar se refere ao fato de que freqüentemente se confundem estratégias visando a formação de público com estratégias visando apenas a ampliação do público que visita a instituição, deixando de lado a complexidade do que é exposto. Reduz-se, com freqüência, uma relação complexa de causalidade entre a obra e seu entorno a uma relação superficial de interdependência ou a uma compreensão rasa de interatividade.
20. A explicação para essa situação está relacionada, em grande medida, ao papel que o sistema de financiamento de exposições adotado no país nos últimos anos teve nas expectativas do público. Creio que é claro para qualquer pessoa envolvida no meio que, ao mesmo tempo em que o aumento dos recursos usados para financiar exposições via leis de dedução fiscal permitiu o aprimoramento técnico das mostras, também privilegiou, excessivamente, a espetacularização das exposições (e, portanto, o potencial de atrair, com relativa facilidade, um público formado pela televisão ou pela Internet), em detrimento dos requerimentos e das especificidades dos objetos expostos. Se, evidentemente, nada tenho contra a grande afluência de público nas exposições, discordo profundamente da transformação do museu em algo parecido a um parque de diversões, em que a reflexão sobre o que se exibe é quase nenhuma e onde, muitas vezes, se é levado a prestar mais atenção ao entorno (cenografia, merchandising) do que ao potencial cognitivo e de encantamento das obras expostas. No longo prazo, essas práticas populistas possuem um efeito contrário ao supostamente pretendido, sendo prejudiciais ao processo de absorção da arte contemporânea no campo de interesses culturais do brasileiro. Elas promovem a absorção não da produção artística, mas de um pastiche do que seria arte.
21. Espero também que seja evidente que não estou defendendo, com esse comentário, a autonomia da obra ou a suposta neutralidade do espaço expositivo. Acho que qualquer intervenção museográfica ou mesmo cenográfica deve ser feita, desde que propicie melhores condições de contato com a obra. Antes de tudo, contudo, defendo a possibilidade de que o público possa estabelecer formas de negociação simbólica com a obra sem a mediação imediatista e espetacular comum às estratégias de atrair público a qualquer custo. Se a obra é complexa, não é possível banalizá-la ao ponto de descaracterizar o intento do artista sob o pretexto de criar um ambiente didático para a fruição de um maior número de pessoas. Fazer isso é ser desonesto com o artista e também com o próprio público. Para pensar em formação de público, é preciso, ao contrário, pensar em como cativar o freqüentador do museu para que ele se torne cúmplice das especulações dos artistas.
22. Encontrar um modo envolvente de expor a produção contemporânea sem cair na tentação populista e redutora da arte é um desafio para os responsáveis pelos museus e centros culturais na contemporaneidade. Para fazer isso de modo conseqüente, é preciso parar de pensar a inserção da arte de um modo utilitarista somente, como um produto que precisa ser feito, posto no mercado, vendido, e logo tornado obsoleto para dar lugar a um novo produto. É preciso enraizar o segmento, dar-lhe capilaridade institucional para torná-lo parte atuante do caldo cultural de que é feita a identidade do país, coisa que não acontece ainda. É preciso, talvez, olhar com cuidado para o próprio trabalho dos nossos artistas em busca de soluções inventivas de formação de público, posto que são eles que melhor conseguem colocar, em contato simultâneo, estímulos sensoriais diversos e a racionalidade política ou científica, criando os fundamentos para uma percepção crítica e transdisciplinar do mundo em que vivem.