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Reticências, reflexões e interrogações: o estado da conservação e restauração no Brasil

“O que estamos fazendo com a nossa memória cultural e histórica?”. Isis Baldini analisa o estado da área de conservação e restauro no Brasil, segmento que interfere diretamente na preservação do patrimônio público.

Nos últimos anos a área de conservação e restauro vem assumindo um importante papel na política cultural do país. Investir na conservação e no restauro do patrimônio confere, sob ponto de vista de um administrador, visibilidade, credibilidade e uma aura de responsabilidade que são ingredientes  politicamente interessantes para quem detém o poder ou espera alcançá-lo, seja no âmbito público ou privado. Este “papel importante” assumido pela área está mais ligado à visibilidade proporcionada pela restauração do que à qualidade dos trabalhos realizados. A conservação e o  restauro passaram a ser as profissões da moda e essa moda se estende por todos os setores: público, eclesiástico e privado [], patrocinados por entidades governamentais, ou fundações culturais que normalmente se utilizam das leis de incentivo fiscais.

Toda esta “euforia” seria louvável se a situação da área fosse outra: a profissão não é reconhecida, não existem cursos de graduação no Brasil, não existe uma linha de pesquisa nacional consistente para a conservação e o restauro, e as exigências para se realizar um trabalho são mínimas, mesmo quando se trata de bens tombados pelo Poder Público Federal. O critério para contratação de um profissional para atuar diretamente na estrutura química, física e estética  de uma obra de arte sob a guarda das instituições públicas é, por lei, o critério do menor preço (processo de licitação). Esta exigência não seria questionável se o governo, seja municipal, estadual ou federal, através de seus órgãos competentes tivessem um “Cadastro Central”, uma seção onde estariam cadastrados os conservadores-restauradores aptos a intervirem no bem público. Para que obtivessem esta permissão os especialistas deveriam passar por uma rigorosa “banca” a fim de conseguir a comprovação de sua competência acadêmica e prática. Essa “banca” determinaria, também, em que área o profissional teria permissão para atuar: conservação, acondicionamento, restauro de tela, papel, esculturas....

Este tipo de controle para terceirização de trabalho é feito, com sucesso, pelos museus da França e poderia ser adotado pelo IPHAN -Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – cujas atribuições estão descritas na Lei nº 378 [], de 1937, no capítulo III, Artigo 46º -- “Fica criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, com a finalidade de promover, em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional” -- e reiteradas no atual governo através do Decreto nº 5.040, de 07 de abril de 2004, no Capítulo I, Art. 2º, item III, segundo o qual  as finalidades do IPHAN são “promover a identificação, o inventário, a documentação, o registro, a difusão, a vigilância, o tombamento, a conservação, a preservação, a devolução, o uso e a revitalização do patrimônio cultural, exercendo o poder de polícia administrativa para a proteção deste patrimônio".

O processo de Licitação, como é feito atualmente, tem gerado uma política própria, onde o único lesado, às vezes, é o bem a ser preservado. Somente para que se tenha noção do alcance do problema, imaginem que o Presidente da República seja um “bem”,  de caráter cultural ou não, em comodato com a Federação por um período de quatro anos,  e que este “bem”, de repente, tenha sofrido uma degradação intrínseca fulminante (enfarto) motivada pelo ambiente externo a que está submetido, e necessite de uma operação urgente. Imaginem, agora, que a profissão de médico não seja reconhecida, não exista um cadastro federal de profissionais, e que pela lei deva-se abrir um processo de licitação para que ele seja operado pelo profissional mais barato. Onde será que nosso “bem” seria operado?  Como seria o pós-operatório?  Será que o Senhor Presidente se submeteria a esta lei ou optaria por modificá-la?

O que estamos fazendo com a nossa memória cultural e histórica?

Talvez o presidente não precisasse passar por isso se ele fosse catalogado como um bem imóvel ou arqueológico..... Os bens imóveis e, mais recentemente, os arqueológicos, têm uma supervisão “maior” dos órgãos públicos competentes, inclusive determinada por decretos e portarias.  Não consigo acreditar que esses órgãos autorizassem um restaurador sem curso ou então com curso de poucos dias e sem experiência comprovada [] sendo  responsável pela intervenção em uma construção histórica ou em uma peça arqueológica.

Aqui entra outro tema a ser pensado: os cursos. Como a profissão não é reconhecida qualquer um, com curso ou não, que se diga restaurador..... o é.  Atualmente existe uma proliferação de cursos de pouca duração que não fornecem nenhum subsídio para que o aluno possa atuar na área com responsabilidade e, infelizmente, muitas vezes esses cursos são oferecidos pelo poder público e obviamente custeados com o dinheiro do contribuinte. Abrindo a Internet, hoje [], me deparei com uma lista de cursos, na realidade “oficinas”, que me deixou pasmada. Ofereciam-se oficinas em conservação e restauro (papel, esculturas e mobiliário), com aproximadamente três meses de duração, uma vez por semana [] e para público-alvo bem seletivo: todos os interessados (uma das oficinas exigia que os interessados também fossem estudantes e outras duas que também fossem maiores de 18 anos). Ironias à parte.... os alunos que passam por tais oficinas são restauradores? Já podem intervir no bem público? Se não qual a utilidade delas? Por que investir o dinheiro do contribuinte em algo que pode ser letal para o patrimônio? Alguns dirão que são apenas oficinas e não cursos de restauro. Como será que estas são vistas pelos alunos e como serão colocadas nos currículos?

Defendo sempre que os Currículos deveriam ser documentados ou então checados. Lembro-me que há alguns anos atrás me deparei com um currículo onde o curso de extensão universitária “Preservação e Conservação de Obras de Arte em Suporte de Papel”, de 40 horas, que havia ministrado no MAC/USP no ano de 1999, havia se transformado em curso de “especialização”. É comum vermos cursos com duração muito inferior a 360 horas, tempo mínimo exigido pela CAPES [] - Coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação - para cursos de especialização figurarem neste campo dos currículos. Mesmo que o curso não tenha a aprovação da CAPES dever-se-ia pelo menos respeitar a carga horária.

A carência de cursos longos e sérios somada à quase que completa inexistência de uma linha de pesquisa na área voltada para a nossa realidade e que deveria fornecer subsídios às atividades práticas dos especialistas responsáveis pela salvaguarda deste patrimônio estimula o empirismo e as intervenções irresponsáveis. Se fosse realizado um levantamento quantitativo dos bens culturais móveis restaurados no país, patrocinados por fundações sérias e responsáveis, teríamos uma quantidade alta que levaria a uma questão mais profunda: com a área científica nacional praticamente inexistente, qual a eficácia dos tratamentos realizados? Os patrocinadores estão ajudando a preservar o bem cultural ou a degradá-lo? Este questionamento é mais sério em se tratando de conservação e restauro de papéis, pois os tratamentos atuam diretamente na estrutura molecular do objeto alterando-a e modificando-a. É comum escutarmos que os tratamentos são reversíveis; isto não é verdade: como vou fazer voltar ao papel elementos removidos com os banhos ou remover toda a cera [] utilizada no reentelamento de uma tela? Reversibilidade é uma utopia, principalmente para obras em papel. O máximo que podemos garantir é remover com certa facilidade, ou parcialmente, os materiais que agregamos à superfície do objeto.

Talvez objetivando incentivar e criar uma linha de pesquisa, o Ministério da Ciência e Tecnologia – MCT - através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – no ano de 2001 lançou um edital convocando os interessados a apresentarem propostas para obtenção de financiamento de atividades de pesquisas, voltadas para o avanço científico e tecnológico dirigido para a conservação e restauração de bens do patrimônio histórico-cultural brasileiro []. A meta era a formação de redes cooperativas de pesquisas na área de ciência e tecnologia para a restauração e conservação.  Foram criadas, a partir dos projetos selecionados, três redes: Materiais e  Estruturas [],  Biodegradação [] e Processos e Técnicas de Avaliação e Intervenção em Bens Culturais [].

Embora a idéia inicial do CNPq tenha sido a integração e a criação de redes, na prática isto não ocorreu, pelo menos não na rede Processos e Técnicas de Avaliação e Intervenção em Bens Culturais em que eu participava []. As pesquisas praticamente não foram discutidas entre os pesquisadores e a quantidade de restauradores envolvidos nos projetos torna questionável, tanto os resultados obtidos quanto sua aplicabilidade [].  E mesmo que não fossem questionáveis onde está a visibilidade dos resultados? O CNPQ patrocina os projetos mas não fornece meios para a veiculação destes, a forma de divulgação seria, por exemplo, através de congressos da área....Como? Se o único congresso que temos é o da ABRACOR [], que acontece a cada dois anos, e no ano passado não aconteceu, entre outros motivos, por falta de verba!

Podemos extrair outra leitura se analisarmos um pouco mais a fundo os projetos enviados ao CNPQ, a dificuldade dos profissionais de áreas distintas mas complementares de trabalharem em equipe. Uma vez um amigo me disse que o mal de determinada universidade era o fato de ter muita estrela para pouco céu; o problema de unirmos as três áreas mais importantes na salvaguardas do bem cultural - interventiva, científica e artística - talvez seja o mesmo, pois a união ocasiona medo de dividir o brilho ou de sentir-se ofuscado Lamentável, porque o trabalho coletivo proporciona um resultado final muito maior do que o individual.

Esta interdisciplinaridade é fundamental, com toda a efervescência cultural e tecnológica, o restaurador não deve ficar confinado dentro dos limites de seu ateliê, envolto em processos de degradação e elaborações químicas, pois estes, concordo com Chris Caple [], não fornecerão elementos suficientes para julgar e definir um tratamento. O trabalho interdisciplinar visa, sobretudo, sanar deficiências, mas este só é produtivo quando o diálogo entre os profissionais se dá de forma horizontal. Esse diálogo tem se mostrado difícil e improdutivo tanto pela arrogância dos detentores do conhecimento científico e artístico, quanto pela desconfiança dos detentores do conhecimento interventivo. O diálogo ocorre, normalmente, de cima para baixo devido, principalmente, a visão puramente técnica que muitos profissionais têm do conservador-restaurador, postura esta reforçada pelo tecnicismo cada vez mais crescente da área.

Voltando ao IPHAN, ele deveria ser um órgão mais controlador, afinal é responsável por cerca de 20 mil edifícios tombados, 83 centros e conjuntos urbanos, 12.517 mil sítios arqueológicos cadastrados, mais de um milhão de objetos, incluindo acervo museológico, cerca de 250 mil volumes bibliográficos, documentação arquivística e registros fotográficos, cinematográficos e videográficos []. Se um bar ou restaurante não apresenta as condições necessárias de funcionamento é interditado pela saúde pública; se uma casa em construção foge um pouco do que está na planta, os trabalhos são interrompidos pela prefeitura. Por que um museu que não possui  as mínimas condições para garantir a proteção do acervo continua funcionando? Será que o nosso patrimônio é menos importante que a posição de uma janela em uma construção particular? Será que parte final do item III, Art 2º, Capítulo I,  do decreto nº 5.040 “(...) exercendo o poder de polícia administrativa para a proteção deste patrimônio” não deveria ser exercida na íntegra? O que significa realmente  polícia administrativa?

Quem trabalha em instituições sabe da dificuldade de manter um diálogo construtivo com a direção das mesmas, principalmente quando os interesses da conservação vão em sentido contrário ao da exibição ou do desejo dos patrocinadores. Documentos normalmente enviados relatando problemas ou situações que estão colocando a coleção em risco muitas vezes são engavetados pelo “responsável” pela instituição.  Os conservadores conscientes não têm a quem recorrer...Por que não criar um 0900-Patrimônio onde as denúncias fossem mantidas em sigilo, mas fossem devidamente apuradas? Por que um museu considerado inadequado para a preservação do bem cultural não pode ser interditado, e sua coleção transferida para outro local até a sua adequação? Por que o IPHAN  não faz visitas esporádicas aos locais que possuem acervos tombados para checar as condições ambientais e de guarda a que estão submetidos? Ou então, por que não pedem relatórios técnicos aos responsáveis pela coleção com risco de serem processados e até mesmo desligados do serviço público se tais informações depois se mostrarem incorretas e tenham colocado a coleção em risco?

Este “ensaio” provavelmente incomodará aqueles dirigentes que por motivos óbvios se preocupam até mesmo com a utópica possibilidade do 0900 e aqueles restauradores que se enquadram no modelo criticado, mas com certeza não àqueles que fizeram um curso sério, que para receberem o certificado de conclusão tiveram que fazer prova, monografia, estágio e que depois, ao entrarem no mercado de trabalho, são vergonhosamente igualados aos que fizeram um “curso” de poucas horas.

Embora nos últimos 50 anos a área tenha se desenvolvido de forma crescente e positiva [] este desenvolvimento foi feito sobre bases frágeis. O resultado é o número cada vez maior de obras restauradas apresentando problemas graves, nem sempre solucionáveis, conseqüência dos tratamentos a que foram submetidas. Considero esta última década como a da proliferação do caos e, se uma atitude enérgica não for tomada, este período será lembrado, no futuro, como aquele que quase todos vão querer esquecer.

São Paulo, maio de 2005

Isis Baldini

 


[[1]] Maria José Martinez Justicia – História y Teoria de la Conservacion y Restauración Artística. Tecnos, 2000

[[2]] A Lei nº 378 foi feita em 13 de janeiro de 1937,  para a criação do IPHAN.

[[3]] Vale salientar que muitos restauradores embora não possuam formação acadêmica possuem uma larga experiência prática decorrente do trabalho de anos junto a profissionais reconhecidos.

[[4]]  30/03/2005

[[5]]  A carga horária varia entre 17 a 54 horas considerando inclusive os feriados.

[[6]]  A carga horária mínima para curso de especialização (pós-graduação latu sensu) pode ser vista nas Resolução CNE/CES nº 1, Art.10 de 03/04/01 da CAPES (www.capes.gov.br)

[[7]] Processo ainda utilizado, embora em pequena escala.

[[8]] Informações gerais do “EDITAL DE CONVOCAÇÃO PARA PROPOSTAS DE PROJETOS INTER E MULTIDISCIPLINARES VISANDO A FORMAÇÃO DE REDES COOPERATIVAS DE PESQUISAS NA ÁREA DE CIENCIA E TECNOLOGIA PARA A RESTAURAÇÃO E CONSERVAÇÃO DE BENS HISTÓRICO-CULTURAIS” – Chamada CNPq 02/2001

[[9]]  Foram selecionados seis projetos relacionados a materiais (metais) e estruturas (argamassas e estruturas de edificações).

[[10]]  Foram selecionados três projetos relacionados a agentes biológicos de deterioração (fungos, algas, liquens e térmitas).

[[11]]  Foram selecionados nove projetos com linhas de ação semelhantes.

[[12]]  Projeto: A Eficácia dos Tratamentos Aquosos na Desacidificação e no Clareamento da Celulose.

[[13]] Considero que o resultado de uma pesquisa, que não tenha partido de uma necessidade observada pelo profissional que atua diretamente na área estudada e que não conte com a participação deste, pode não ter a aplicabilidade a que se propôs.

[[14]] ABRACOR – Associação Brasileira de Conservadores e Restauradores.

[[15]]  Chris Caple - Conservation Skills, Judgement, Method and Decision Making. Routledge, 2000

[[16]] Informações retiradas do site:  www.iphan.gov.br dia  24/03/2005

[[17]]  Impulsionado principalmente pelo apoio da associação VITAE – Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social, pela abertura comercial dos anos de 1990 e pela  globalização que a Internet propicia

O descaso com a conservação do patrimônio cultural encontra paralelo com a falta de suporte a iniciativas culturais de maneira geral, como as tratadas em: A Ocupação do Paço das Artes, por Daniela Bousso. Historicamente, onde ou como localizamos o descaso ou perversão do campo da cultura no Brasil? Ver análise em Que políticas culturais?, por Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira.