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Partenheimer e o desenho do desenho*

Crítica de Laymert Garcia dos Santos sobre a exposição de Jürgen Partenheimer ocorrida na Pinacoteca do Estado, em que analisa o diálogo entre a cidade e as percepções de São Paulo de que nascem seus desenhos: “Não se trata, evidentemente, de uma cidade qualquer [...]. A rigor, já nem se trata mais de uma cidade”.
(...) nos permite entrever no desenho o modo como se dá o encontro e o desencontro entre Partenheimer e a metrópole, através do modo como o urbanismo e a arquitetura se imiscuem, enquanto desenho, no próprio desenho!

Os críticos de arte e comentadores da obra de Partenheimer, sejam eles europeus, chineses ou brasileiros, freqüentemente apontam para o caráter meditativo, aéreo, alegre, imaginativo, e até mesmo lírico de seus desenhos e pinturas, sem esquecer, obviamente, do  enigmático equilíbrio que torna sua obra inconfundível, e do silêncio que parece habitá-la (que se pense nas séries do Diário Romano, de Carmen, de De Coloribus, de Zur Grammatik ou, ainda, em Die fragilen Apparate des Geometers, para ficarmos em apenas alguns exemplos[1]). Tais características também podem ser encontradas na série de desenhos de 2004, intitulada Suave loucura, que dá nome ao livro sobre o artista publicado em São Paulo, após sua exposição na Pinacoteca desta cidade. Mas como o espectador do Diário Paulistano poderá facilmente perceber, nos desenhos desta série, algo como uma perturbação ocorreu, afetando intensamente o trabalho do artista; pois diante deles, a primeira reação que se impõe é: O que aconteceu, que varreu a “suave loucura”, instaurando uma inédita situação de turbulência? De onde vem esse abalo que sacode o realismo metafísico de Partenheimer e o leva a experimentar o ato de criar como um registro novo, diferente? Ver e re-ver os trabalhos do Diário Paulistano é participar dessa aventura, que nos permite entrever no desenho o modo como se dá o encontro e o desencontro entre Partenheimer e a metrópole, através do modo como o urbanismo e a arquitetura se imiscuem, enquanto desenho, no próprio desenho! Operação que requer um despojamento do olhar tão radical quanto aquele a que o artista se submeteu, para poder se transformar numa espécie de agente desse contato, do qual o Diário será, ao mesmo tempo, a “cena” e o “efeito”.

A cidade abstrai da arte da mesma maneira que a arte abstrai da realidade.

Por ocasião de sua exposição na Pinacoteca, Partenheimer “montara” diversos óleos seus, da série Carmen, na paisagem urbana de São Paulo, fotografando-os em seguida. Como observou argutamente Jan Thorn-Prikker, “usada assim diretamente como local de exposição, a cidade não se furtou ao comentário. Simplesmente engoliu os quadros. (...) De repente as abstrações mostram de onde abstraíram. O mundo que faz com que os quadros desapareçam é o mesmo que desaparece nesses quadros. A cidade abstrai da arte da mesma maneira que a arte abstrai da realidade. A cidade engole os quadros por ser ela mesma o maior quadro. (...) os quadros se prestam a tentativas de tradução, transformações e respostas a questões que ninguém, além do artista, formula. Ao estranhamento do mundo respondem com seu próprio estranhamento. A contribuição mais importante dos desenhos é a perseverança paciente e transparente em sua própria linguagem. Desenhos são tentativas de tradução do mundo que, no ato da tradução, superam os próprios objetos”[3].

Ora, essa “exposição” antecede o Diário Paulistano que precisa, então, ser considerado como a produção de uma série de desenhos na seqüência de um movimento de aproximação de Partenheimer com a metrópole. Assim, num primeiro momento o artista vai até a cidade e inscreve obras suas nos fluxos desta, aceitando que sejam por ela “engolidas”; num segundo momento, o movimento é inverso: São Paulo vai ao encontro do artista, fechado em seu local de trabalho, mas disposto a acolhê-la e, quem sabe, a degluti-la.

(...) o desenho não como representação do que está sendo radiografado tanto do lado do sujeito quanto do lado do objeto, mas como efetuação do próprio exercício da visão.

Para que o encontro/desencontro aconteça é preciso, porém, que Partenheimer se dispa como artista e como indivíduo, e se coloque numa espécie de situação-limite, que lhe abra o acesso a um plano no qual o que conta, não é nem a subjetividade de quem desenha, nem a propalada objetividade do mundo, mas uma relação na qual o que se desenha é a recepção ou a “resolução” de forças constitutivas tanto do meio quanto do sujeito, que só podem existir no contato entre ambos e só podem se manifestar enquanto expressão desse contato. Num certo sentido, Partenheimer tem de se preparar para esse contato, tem de se descondicionar e recuar até uma espécie de realidade liminar, para aceder a uma percepção instintiva, a única capaz de revelar o que Beckett denomina, com Proust, “a natureza radiográfica do olhar”, isto é a capacidade de captar o que se vê, e não o que se sabe que se deve ver, de captar as impressões segundo “seu enunciado não lógico dos fenômenos na ordem exata em que eles foram percebidos, antes de serem deformados a ponto de se tornarem inteligíveis, para forçá-los a entrar numa série de causas e de efeitos”[2] Só nessas condições vale a pena desenhar, entendendo o desenho não como representação do que está sendo radiografado tanto do lado do sujeito quanto do lado do objeto, mas como efetuação do próprio exercício da visão.

(...) com efeito, tudo se passa como se a mão acompanhasse uma linha que se quer traçar sem entraves, seguindo o imperativo de uma outra ordem.

Para assumir essa condição de ver com os desenhos e através deles, Partenheimer se submete a uma espécie de “concentração”, encerrando-se num apartamento do 28º. andar do Edifício Copan, no centro de São Paulo, e dedicando-se à escritura de um diário. Tal procedimento, na verdade tal disciplina, funciona dentro de um método armado para colocá-lo “em situação” e desencadear o processo. Mas não há necessidade de se ler esse outro diário para se ver as composições do Diário Paulistano - os desenhos se sustentam maravilhosamente por si e para si mesmos (embora se admita que o cruzamento de visão e leitura pode aguçar a experiência estética). Um exemplo talvez possa explicitar melhor essa questão. Antes mesmo de ter acesso ao escrito de Partenheimer e de ali poder ler, no fragmento 3, uma referência a La vie dans les plis, de Henri Michaux, foi possível perceber, no terceiro desenho da série (DPI.3), uma ressonância entre os trabalhos dos dois artistas. É que o espaço se vê cortado por linhas fraturadas, tremores, quebras, movimentos desordenados que tornam impossível não evocar as “fêlures” sismografadas pelo desenho de Michaux sob o efeito da mescalina, tal como se pode ver em Misérable miracle.[4] Nesse livro do poeta e artista francês, desenho e escrita se justapõem, mas não só: de repente, a linha da escrita se põe a derivar pelo espaço da página, tornando-se puro movimento abstrato que, na verdade, incorpora o próprio processo de des-figuração que acomete a mente de Michaux. É claro que, a rigor, até certo ponto, as duas démarches são incomparáveis – não só porque o alemão mantém como distintas a atividade da escrita e a atividade do desenho, mas, sobretudo, porque enquanto a natureza radiográfica do olhar de Partenheimer acusa a virulência de um conflito elementar e imanente do lado do objeto, o sismógrafo de Michaux está voltado para uma operação que se declara do lado do sujeito. De todo modo, tanto num caso quanto no outro, a instabilidade se instaura, marcando resolutamente o desenho e desestabilizando o espaço deste, assim como a liberdade espantosa da linha a faz vagar sobre a superfície, experimentando todo tipo de inflexão - com efeito, tudo se passa como se a mão acompanhasse uma linha que se quer traçar sem entraves, seguindo o imperativo de uma outra ordem.

A aproximação de Partenheimer com Michaux não se dá, portanto, através de inspiração e muito menos de um recurso à citação. Se ela ocorre, é porque ambos se encontram para aquém, ou para além da percepção habitual, num plano de realidade em que as impressões deixadas no papel, ou ainda não configuram forma e sentido, ou já não se interessam mais por fazê-lo, concentradas que estão em seu puro acontecimento. No entanto, a perturbação que investe as linhas de Partenheimer parece não proceder do que o artista vê acontecendo à sua mente, mas do que se anuncia no desenho como um estímulo que vem de fora, do mundo exterior, e é sintetizado pela intuição. Creio ser possível afirmar que a fonte ou o motor da instabilidade reside na metrópole e na arquitetura, melhor dizendo no modo como estas passam a existir no campo da percepção instintiva. E é aqui que merece menção o local de trabalho no qual Partenheimer desenha.

São Paulo chega até o artista, isolado no alto do Copan, entrando pela janela.

São Paulo chega até o artista, isolado no alto do Copan, entrando pela janela. Não se trata, evidentemente, de uma cidade qualquer, mas de uma aglomeração monstruosa de 18 milhões de habitantes, desordenada, caótica, só aparentemente governável, e cujo urbanismo vem sendo, há décadas, submetido exclusivamente à lógica predatória do lucro imediato buscado pela especulação imobiliária. A rigor, já nem se trata mais de uma cidade, se tomarmos este termo em sua acepção européia, pois seus moradores - que nela vivem, mas dela têm de se defender - a vêem, antes de tudo, como um obstáculo inevitável que precisa ser cotidianamente vencido. Barulhenta, poluída, dura, sem cor e sem encanto, a metrópole se encontra tão afastada da natureza que os paulistanos se esquecem que ela é atravessada por dois grandes rios, abstraídos do campo da percepção e da memória pelo incômodo que causa a visão de sua degradação. Além disso, em São Paulo, raramente se vê o céu, oculto pela monotonia monocromática de seus edifícios de concreto, cuja concepção moderna prima pela baixa qualidade de sua arquitetura; e as montanhas azuladas cobertas de mata que a cercam não fazem parte da experiência dos citadinos.

(...) a violência que a metrópole exerce sobre os sentidos do artista chega como que filtrada e depurada por um tratamento estético que lhe é conferido pela arquitetura do Copan, projetada por Oscar Niemeyer.

Essa é a cidade que entra, janela adentro, no apartamento em que Partenheimer desenha. Entretanto, é de crucial importância entender que ela não entra como tal no campo de visão do artista, mas se apresenta enquadrada por uma esplêndida janela panorâmica que domina todo o espaço do apartamento, e cuja precisão arquitetônica não pode, de modo algum, ser desconsiderada, dado o papel decisivo que desempenha na apreensão da vista que proporciona. Quero dizer que a violência que a metrópole exerce sobre os sentidos do artista chega como que filtrada e depurada por um tratamento estético que lhe é conferido pela arquitetura do Copan, projetada por Oscar Niemeyer. E essa relação entre o urbano e a arquitetura produz uma diferença fundamental – pois como não se trata de uma janela qualquer, o mundo que se vê lá fora, através dela, passa por uma transfiguração.

Qualquer pessoa que chega à janela de um apartamento no alto de um edifício de São Paulo vê, na melhor das hipóteses, o skyline da cidade à guisa de horizonte; por outro lado, ao olhar para baixo, é quase impossível que consiga evitar a sensação de vertigem e, com ela, o sentimento de uma inserção catastrófica, porque fatal, na paisagem urbana que se estende lá no chão. O observador não pode, portanto, escapar da cidade, que é seu horizonte e seu limite, e se encontra preso dentro de sua imensidão, seja quando olha ao longe, seja quando tenta aproximar o foco da visão. E mesmo dentro do Copan, Partenheimer não poderia deixar de experimentar essa visão comum, caso trabalhasse num apartamento dos fundos do edifício. Mas não é isso que ocorre. Com efeito, o artista ocupa um dos apartamentos de frente, com janelas que não permitem uma visão direta do solo próximo ao prédio e enquadram a cidade à distância, permitindo que o olhar a percorra até o ponto em que ela se desfaz nos flancos das montanhas. A linha de seu skyline então se apaga, deixando que o horizonte seja desenhado pela natureza, e que a cidade passe a existir em relação a esta. O que, evidentemente, muda tudo e faz da perspectiva da janela do Copan um ponto de vista extraordinário, ao mesmo tempo sobre e dentro de São Paulo. Ora, isso só é possível porque Niemeyer, em virtude de sua consciência aguda do valor da natureza, do urbanismo, da arquitetura e do desenho, praticamente “encaixa” a visão do observador para que ele, através do dispositivo ótico que tem à sua frente, veja o panorama se traçar no espaço como a superfície de uma imagem inesperada. Vedando a visão convencional da janela com seus brise- soleil, o arquiteto toma, assim, a metrópole e seu entorno montanhoso como a matéria-prima cuja potência vai se atualizar na imagem em constante transformação que se desenha na janela.

É sabido que o fundamento da arquitetura de Niemeyer é, antes de tudo, o desenho – mais precisamente a linha sinuosa, que ele tomou emprestado das montanhas exuberantes de seu país, das curvas femininas e das lembranças do barroco mineiro. Sophia da Silva Telles explora essa característica singular de sua concepção arquitetônica, deixando claro que para ele o que importa é a criação de desenho, feito pela própria natureza ou pela mão do artista. Vejamos, então, como define o papel que o desenho e a linha exercem na elaboração de suas obras: “Em Niemeyer, a definição e a concisão das formas aparecem de uma só vez na continuidade de uma linha homogênea e sem esforço: uma marquise ou uma parábola são traçadas já atentas à natureza de sua matéria – o concreto armado – compreendida no impulso controlado da mão. A ação do desenho em Niemeyer está identificada com a ação mesma sobre o material (...). Suas formas se fazem no desenho e na matéria, sob um mesmo e único movimento. Os croquis de Niemeyer detêm o caráter paradoxal de não ser esquemas prévios e tampouco parecem resultar de acertos ou ajustes progressivos. A força desses croquis provém de sua imediatez, de um desenho que já é a forma final do projeto.” [5]

A leitura de Telles deixa ver que a linha curva de Niemeyer não expressa, mas atualiza tanto a potência da forma, assumida pelo desenho, quanto a da matéria, assumida pelo concreto: “Se a linha sinuosa de Niemeyer adere ao material, seu movimento não é determinado, exatamente, pela técnica. A massa informe do concreto é, antes, matéria da imaginação inventiva do arquiteto, que se funde com o meio sem resistência do desenho. Toda a liberdade do arquiteto parece se apoiar na compreensão intuitiva da natureza de cada medium: a potência de um desenho é seu valor de imagem, a potência do concreto é a sua continuidade plástica.” [6] Desse modo, no entender da crítica, não se trata apenas de perceber o caráter primordial do desenho na arquitetura de Niemeyer; trata-se, ainda, de considerar que “a função da forma é o seu próprio valor de imagem”. [7]

Que imagem é essa que a criação do arquiteto, apoiada na compreensão intuitiva da natureza do medium desenho, vai liberar?

Se isso é verdade, cabe, então, perguntar: Que imagem é essa que a criação do arquiteto, apoiada na compreensão intuitiva da natureza do medium desenho, vai liberar? Seguindo os passos de Argan, Telles sugere que para Niemeyer, assim como para Bernini, o desenho é entendido como suprema atividade criativa que une todas as artes sob a ideação. Mais ainda: assinala que a força desse desenho reside na autonomia da imaginação. [8] Ora, ocorre que, quando essa autonomia se efetiva, a vontade de expressão do arquiteto parece submeter-se ao que Joaquim Cardozo denominou a “intuição geométrica” de Niemeyer. Segundo o poeta, que também foi o genial engenheiro calculista do arquiteto, a arquitetura é um espaço de configuração na qual o que conta é a complexa composição de elementos, que valem por e para si mesmos. Pensando na relevância das qualidades imanentes destes, Cardozo preconiza a volta à intuição de uma geometria natural, que ele vê concretizada no trabalho de Niemeyer, através da moldura ou do perfil delineando-se sobre a superfície da construção, isto é através do “sentido de molduração”, do “valor de contorno” e de uma “espécie de irradiação geométrica”. [9] Telles resume o que são essas superfícies obtidas, segundo o calculista, pela gratuidade da imaginação: “Resta assim apenas uma linha vazia cuja figura sustenta-se sobre si mesma e por isso detém a força de irradiação notada por Cardozo. São formas que não criam espaço mas condensam em si mesmo todo espaço e, como as figuras geométricas, não têm exterior nem interior.” [10]

Imagem, autonomia da imaginação, intuição geométrica, linha vazia, superfície e espaço imanentes – tudo é traço e desenho, nessa arquitetura. Mas falta ainda assinalar uma questão essencial: o modo como a relação entre a linha traçada e a linha do horizonte ata a articulação entre arte e natureza, bem como entre percepção e memória, fazendo o desenho se tornar “um apontamento da natureza”. Como escreve Telles: “Se reconhecemos em Niemeyer a preeminência do desenho que elide a matéria, devemos então atentar não mais aos projetos, mas à maneira como esse desenho se faz. Para lembrarmos dos desenhos de Corbusier, onde a utilização do espaço da folha é integral, é evidente que se constitui no papel a situação espacial do projeto, na marca das relações de escala, na definição dos pontos de vista. Seu desenho é assim já uma ação construtiva no espaço. Niemeyer, ao contrário, mantém-se no raciocínio propriamente da linha, cuja disposição no papel é particular. Começa seus projetos em escala de 1:5000, deixando a superfície quase vazia. Talvez seja o espaço deserto que quer fazer respirar em torno de seu desenho. Assim, um traço solto acaba por se constituir na única referência de escala, a linha do horizonte. Mas essa é a linha da natureza, e a natureza não tem escala. Daí a ambigüidade desse desenho que, ao invés de projetar o objeto, faz transpor para a construção a gestualidade que lhe é própria. Niemeyer parece acreditar que a técnica por si mesma possa dar volume a uma imagem que é só um desenho. Daí a situação ambígua que seus projetos sugerem sempre, como se fora uma forma que pertence mais à paisagem do que um objeto do mundo urbano.” [11]

(...) em frente à janela, Partenheimer recebe o impacto desse desenho, que se faz sentir em seu próprio ato de desenhar.

Uma vez caracterizado o papel do desenho para o arquiteto do Copan, podemos voltar ao local onde Partenheimer trabalha. São Paulo chega até o artista, isolado no alto do edifício, entrando pela janela; trazendo a desordem, o barulho constante, o ar poluído, a não-cor de suas construções e, com tudo isso, o desenho de uma metrópole, em constante transformação. Mas chega pela janela de Niemeyer - que faz da cidade uma imagem cujo ponto de origem e de fuga é a linha de seu horizonte montanhoso, que enquadra a arquitetura e o urbanismo como um grandioso desenho estampando-se em inefável tela panorâmica. Sentado em sua mesa de trabalho, em frente à janela, Partenheimer recebe o impacto desse desenho, que se faz sentir em seu próprio ato de desenhar. A perturbação é um estímulo que vem de fora, e agora vai se sintetizar através da percepção instintiva e da natureza radiográfica do olhar de um artista que registra o encontro/desencontro do contato – em suma, que executa o desenho do desenho.

O leitor benevolente já deve ter compreendido que tudo o que se escreveu até aqui é a tentativa de estabelecer alguns parâmetros que talvez permitam entender porque vi o que vi nos desenhos de Partenheimer. Consciente da dificuldade de “fazer ver” o que digo que aparece nas composições do Diário Paulistano, imaginei retrospectivamente um pequeno roteiro que o implicasse em minha experiência de visão, antes mesmo que ela lhe fosse oferecida. Passemos agora aos trabalhos.

Logo no primeiro desenho sente-se que as linhas buscam, sem que se saiba ao certo o que pretendem - como se extrapolassem o espaço do desenho, que por sua vez procura contê-las.

As quarenta e quatro composições da série estão reunidas em três grupos: DPI (12 desenhos), DPII (15 desenhos) e DPIII (17 desenhos). No primeiro grupo, tudo se passa como se houvesse um embate entre os dois elementos fundamentais do desenho – a cor e a linha. Logo no primeiro desenho (DPI.1) sente-se que as linhas buscam, sem que se saiba ao certo o que pretendem - como se extrapolassem o espaço do desenho, que por sua vez procura contê-las. Que forças seriam essas que caracterizam um conflito? Talvez possamos encontrar alguma pista no modo como as linhas percorrem o espaço. Há as linhas de cor, linhas cheias, corpóreas; e há as que são puras linhas, abstratas, cuja ocorrência pode se dar como traçado único ou duplo. O desenho é fruto da relação entre esses dois tipos de linhas em movimento, bem como do contraste entre duas maneiras diferentes de se querer estabilizar o espaço – através da densidade (a mancha vermelha que coagula), e através das linhas-blocos-de-cor-esmaecida que, equilibrando-se, tentam fundá-lo. A tensão, evidentemente, não se resolve, e o trabalho acaba justapondo duas direções contrárias e duas ordens de questões, como se houvesse dois desenhos num só, sem que, no entanto, pudéssemos afirmar qual deles ascende ao primeiro plano, relegando o outro à condição de pano de fundo. Linha e cor, os elementos do desenho, nos conduzem assim a um movimento de alternância que nos impede de sair da irresolução, desequilibrando a visão do espectador. A força horizontal da cor e a força vertical das linhas acabam se cruzando, mas sem se encontrar, sobrepondo-se, o que de certo modo provoca uma sensação de dilaceramento.

O embate continua em DPI.2. A cor ganha massa, e as linhas se tornam mais abstratas, e complexas. As estratégias da força da cor e da força da linha também parecem mudar – já não se trata mais de se impor através do conflito entre a horizontalidade e a verticalidade ou entre duas maneiras de estabilizar o espaço, e sim de contrapor o caráter expansivo da massa à pretensa superioridade da linha. Entretanto, em pleno desenvolvimento de estratégias conflitantes, como que na interface ou no ponto de encontro entre elas, emerge uma zona de cor esmaecida, de quase não-cor que, visualmente, acaba tendo a sua área delimitada por uma linha - como se fosse uma zona do contato. Por outro lado, a linha começa a tornar-se errática. E se passamos para o desenho seguinte, percebemos que a desordem das linhas já ganhou o primeiro plano, empurrando a cor para um plano destinado a quase desaparecer ao fundo. O espaço é então sacudido pela intensidade das fraturas, tendendo para o caos. A instabilidade se impõe, marcando resolutamente o desenho e liberando a linha de qualquer entrave.

Em DPI.4 se anuncia a revanche, na medida em que as linhas duplas começam a ser preenchidas pela cor, que se declara dentro delas; por outro lado, e como se não bastasse, a própria cor se faz linha. Alguma coisa não nos deixa mais saber se temos uma visão frontal ou se o desenho é visto numa perspectiva de cima para baixo. Tal deslocamento da percepção suscita uma sensação de embaralhamento e de nivelamento das forças em confronto. Em DPI.5, o desenho se torna efetivamente um campo de batalha, cuja eclosão toma conta de toda a superfície. Aqui, linha e cor se enfrentam decididamente e, por mais paradoxal que pareça, cada uma tentando incorporar a especificidade da adversária – a linha fazendo-se cor, e a cor, linha, operação que vai emaranhar as forças, e nos obrigar a atentar ora para a investida da cor que tenta apagar a linha, ora para o empenho desta em colorir o espaço com seu próprio traçado. Deflagração total que evidencia a natureza processual do desenho de Partenheimer e sugere que um ritmo se imprime não só em cada desenho, mas também entre eles, na passagem de um para outro.

Em DPI.6, cor e linha, cada vez mais homólogas, formam tramas, a primeira sobrepondo-se à segunda, como se o espaço se constituísse de camadas quase imperceptíveis que o dobram em diferentes direções, em virtude das malhas que pretendem apreendê-lo e estruturá-lo em proveito próprio. Na luta pela ocupação do espaço a linha parece levar a melhor; mas é praticamente impossível ignorar a tensão que a cor, em seu mimetismo da linha, consegue infundir no conjunto, assombrando a rede em toda a sua extensão. Emerge então um pensamento: parece que nesta série, pelo menos até agora, Partenheimer desenha uma espécie de proto-desenho, ou melhor desenha as suas condições de (im)possibilidade. E, ao mesmo tempo, começa a se formular a hipótese de que a dificuldade proveniente do embate entre cor e linha talvez se deva ao modo como ambas existem ou passaram a existir no desenho moderno.

Como se o papel fosse o suporte onde se registrasse o que exige ser desenhado.

É que a linha forma, dá forma – tal como se pode ver em DPI.7. E ao fazê-lo, toma conta do espaço e o organiza. Uma sugestão de desenho arquitetônico se insinua, querendo transformar o campo em espaço de representação. A cor não se dá por vencida e estria horizontalmente o desenho, como que a indicar a irredutibilidade da natureza fluida do espaço, de todo e qualquer espaço, desafiando assim a estabilidade de contorno. Mais ainda: um enigmático fragmento de desenho, dentro do desenho, funciona como um revelador que, numa espécie de radiografia da cor, atesta a sua potência de desenhar compreendendo a linha em seu interior. A composição seguinte faz avançar a questão da relação entre linha, cor e forma, quando linha-cor e cor-linha se enfrentam efetuando um mesmo movimento vertical e sinuoso - sinuoso o suficiente para deixar perceber a insistência com que a força da cor se imprime no desenho, conferindo a este o seu movimento; mas, ao mesmo tempo, quebrado o suficiente para demonstrar a arbitrariedade da força da linha, que parece afirmar a sua natureza abstrata, supranatural, face à materialidade da cor. O desenho deixa então transparecer o parentesco que liga sua problemática à da pintura e da arquitetura, como se possuísse, acima de tudo, uma dimensão virtual que lhe é inerente, mas que ele também compartilha com outras formas de expressão. Mas um fator novo se interpõe. Condensando-se no nono desenho, um momento de irresolução, ou uma espécie de intervalo, se declara na série: nem cor nem linha parecem poder se orientar e se definir. E, no entanto, em meio ao informe da cor, a regularidade de algumas linhas vai se imiscuir, fazendo a atenção convergir para a caracterização do desenho como superfície de inscrição; de inscrição de ritmos notoriamente diferentes, uns aleatórios, outros não. Como se o papel fosse o suporte onde se registrasse o que exige ser desenhado.

A primazia do desenho em sua totalidade se faz então sentir de modo determinante. Nesse sentido, em DPI.10, cada traço e cada contorno parecem querer se relacionar com todos os demais, enquanto as formas buscam se apoiar umas nas outras, para se sustentar. E é interessante observar que linha e cor convergem, resultando nos termos constitutivos do vocabulário de Partenheimer, como se um desejo de construção, de simetria e de equilíbrio percorresse o espaço e precisasse fazê-lo retomando um léxico e uma sintaxe já conhecidos. Ora, tudo se passa como se, na seqüência, tal convergência tendesse a suscitar uma reconciliação entre linha e cor, expressa através de uma reivindicação comum: a de colocarem suas forças a serviço da composição. O curioso é que tal assujeitamento se traduz numa liberdade nova. Em DPI.11, já não importa saber ao certo se as linhas e a cor pertencem ao espaço do desenho ou se, pelo contrário, o atravessam vindo de fora; como também já não importa tanto a especificidade dos elementos; o que conta, antes de tudo, é o desenho enquanto tal, que se afirma e se justifica em seu próprio movimento e como movimento.

Partenheimer desenha o desenho do mundo e, ao mesmo tempo, o mundo do desenho.

Do último desenho do primeiro grupo emergem formas do que poderia se tornar uma cidade lá fora, uma janela e, em primeiro plano, a sugestão de silhuetas que nos soam familiares como os objetos que costumam freqüentar as mesas das naturezas-mortas; e, no entanto, é impossível dizer o que são. Mas talvez isso seja uma ilusão de ótica, talvez a janela só separe a cidade, como cor, e o interior, como linha, muito embora a cor lá do exterior continue a se fazer presente aqui, nesse mesmo espaço interno. Uma descoberta se impõe: Partenheimer desenha o desenho do mundo e, ao mesmo tempo, o mundo do desenho.

(...) Partenheimer está atento para a dimensão propriamente ontológica do desenho.

Se o primeiro grupo da série do Diário Paulistano desenrola o embate entre os dois elementos fundamentais do desenho, a cor e a linha, o segundo parece se desdobrar como uma intensa exploração do espaço. Já em DPII.1, o modo sutil, mas incisivo, como a cor se explicita como plano, com suas barras verticais estriando o espaço, faz o espectador perceber que na verdade se trata de dois desenhos sobrepostos, nos quais duas camadas distintas se criam sem se confundir e se apresentam como duas ocorrências diversas de invenção do espaço. E se isso ocorre, então há dois ritmos de geração de espaço-tempo. Por outro lado, é espantoso constatar que embora pareçam destacar-se no primeiro plano, os traços largos de cor pertencem efetivamente ao desenho do fundo, sobre o qual vem se manifestar um segundo desenho composto do vai-e-vem livre de traços breves e descontínuos, que afloram o espaço e, paradoxalmente, convivem com o traçado demorado e decidido de uma linha contínua e circular cuja intenção é demarcá-lo. Se o que importa, aqui, não são as formas do(s) desenho(s), mas os modos do desenho existir no espaço, não seria descabido imaginar que Partenheimer está atento para a dimensão propriamente ontológica do desenho.

Em DPII.2, o espaço passa por uma extraordinária operação de construção, segundo três perspectivas diferentes. A perspectiva da linha-cor que dá volume, que insinua o motivo de Axis Mundi e sugere uma terceira dimensão – perspectiva frontal; a perspectiva das linhas duplas, embutindo na visão frontal uma sensação de quem olha os recortes operados no espaço por uma sucessão de patamares vistos de cima para baixo; e a perspectiva da cor que se aplica sobre as duas primeiras e, ao fazê-lo, introduz uma flutuação no espaço capaz de perturbá-lo a ponto de tornar impossível decidir qual deve ser o ponto de vista predominante. Por outro lado, as camadas de desenho começam a se comportar de acordo com a sinergia que se estabelece a partir do entendimento dos diversos ritmos de ocorrência. Parece que Partenheimer se torna extremamente sensível ao concretizar-se do desenho.

(...) a cidade assombra o espaço do desenho.

A intuição se confirma quando passamos à composição seguinte: magnífica reticulação do espaço, que introduz a impressão de uma infinidade de encaixes se fazendo e se desfazendo horizontal e verticalmente - como se todas as camadas de desenho, sejam elas compostas por linhas ou cor, concorressem para a geração de um movimento exaltado, que faz o olhar incessantemente derivar pelas linhas e entre elas. Não seria absurdo pressentir nesse desenho um recorte, não dos edifícios, mas da profusão de linhas desencadeada pela visão da cidade de São Paulo; e até mesmo essa cor-não cor que se repete o tempo todo de um desenho ao outro parece confirmar do que se trata. O resultado é de uma precisão incrível – a cidade assombra o espaço do desenho.

Em DPII.4, pela primeira vez, a arquitetura da torre do Edifício Itália se incorpora no desenho como desenho, impondo sua força neste espaço. No entanto, sua virulência precisa conviver com a cor e a linha que já o habitavam, e que não deixam de sinalizar, por contraste, a dramaticidade dessa intromissão, quando comparada à delicadeza com que elas próprias ali se manifestavam. É notável o equilíbrio precário que se instaura na tensão entre os diferentes elementos e em todo o campo do desenho. Tudo parece se sustentar por um triz, e se mantém graças à poderosa intuição que rege a composição.

(...) Partenheimer instaura um diálogo de artista para artista com Niemeyer, (...)

Deslocando-se para o trabalho seguinte, o espectador percebe que a arquitetura se incorpora outra vez, como desenho. Agora ela convoca a linha e a cor para pô-las a serviço de sua expressão. Impossível deixar de acreditar que Partenheimer instaura um diálogo de artista para artista com Niemeyer, através do modo como seu conhecido losango virtual entra em ressonância com as inesquecíveis colunas do Palácio da Alvorada. Com efeito, é forte a impressão de que o diálogo se trava precisamente em torno da questão da natureza do desenho e de sua produção. O contraste entre as duas metades do espaço é gritante; e a linha negra que as separa pode ser vista como uma fronteira decisiva entre dois modos de presentificação da arquitetura no desenho. Por sua vez, em DPII.6, uma torre parece irromper no espaço, para além de uma suposta janela; mas um acúmulo de linhas se empilhando no canto direito impede que a composição se faça representação da cidade: São Paulo só pode estar lá através do que desenha de modo imanente.

Em DPII.7, a linha divisória que separa os dois campos permite perceber que o que agora está em questão são os termos em que o desenho pode existir no espaço – enquanto pura forma e enquanto relação entre camadas de linha e cor. Não se trata, apenas, de constatar que a forma pesa no espaço, em contraste com a linha e a cor que correm pela superfície; é preciso, ainda, testar se a coexistência é possível. No desenho seguinte não há mais divisória: o losango se faz linha e cor sem problemas, emergindo no espaço como que atualizada de seu próprio fundo virtual e desafiando a gravidade. Um azul surpreendente ilumina o desenho como a entrada de ar puro. Já em DPII.9, é incrível como as formas geométricas da parte superior do desenho se prolongam nas formas orgânicas da parte inferior; melhor dizendo: incrível como umas se transformam nas outras. Parece que as de baixo constituem um solo a partir do qual as de cima se erguem, o que, em princípio deveria conferir à composição um certo peso; e, no entanto, tudo flutua silenciosamente no espaço. Além do azul, agora também o verde estabelece uma relação intensa com as pequenas manchas pretas que fazem o desenho germinar. Seria tal solo comum ao desenho e à arquitetura? Parece que a perguntada suscitada leva Partenheimer a voltar ao início do processo, em DPII.10. Mas engana-se quem pensar que isso significa apenas retomar as questões levantadas nos primeiros desenhos da primeira série do Diário Paulistano. É claro que os elementos destes ressurgem; mas, com eles, sobrevêm os cubos que constroem a escultura do artista. Uma ligação explícita se dá entre os trabalhos paulistanos e os elementos-chave do seu vocabulário. Como que num momento auto-reflexivo, Partenheimer toma fôlego e se prepara para o que vem... em DPII.11, como maravilhosa dispersão de cor e linhas num espaço larvar. Tudo se torna mancha e traço no ar!

Tudo isso é transmitido ao espectador quase que secretamente pelo desenho.

A exploração da gravidade ou não do espaço continua nos desenhos seguintes. Em DPII.12, o empilhar de formas escuras à direita, tal uma torre de pedras, domina o espaço com seu peso. Desenha-se uma massa agressiva e compactada contrastando violentamente com o caráter aéreo da outra metade do desenho, onde flutuam, individualizadas e esvaziadas, as mesmas formas que foram amontoadas. A ordem e des-ordem dos elementos são remetidas à questão da gravidade. Entretanto, persiste a impressão de que aqui também a ordem da arquitetura e a des-ordem da cidade se fazem sentir. Desenho, arquitetura e urbanismo são processados ao mesmo tempo, e sem hierarquizações, cada um deles comparecendo com a sua respectiva singularidade. Tal operação se repete com precisão em DPII.13: a partir de um suposto horizonte montanhoso, as linhas se sucedem como ondas, sugerindo a movimentação causada no ar pela presença da metrópole lá embaixo e lá longe. A noção da distância entre a cidade e o que se desenha, em primeiro plano, à direita, como um edifício, é dada pela vibração dos traços negros que agitam o fundo e se contrapõem à proximidade dos blocos, que compõem a superfície do prédio. Tudo isso é transmitido ao espectador quase que secretamente pelo desenho. Partenheimer consegue conciliar um dispositivo de captura automática de todos os ritmos de uma determinada situação com uma lucidez férrea sobre a des-necessidade de sua interpretação pelo artista. Ora, o segredo dessa estratégia parece residir no entendimento do papel da composição - como se esta obedecesse a regra de limitar-se ao mínimo, mas de extrair exclusivamente desse mínimo todo o seu poder de articulação.

(...) não há como ignorar a primazia do caráter sinuoso da linha nessa composição.

Em DPII.14, linha e cor se expandem para fora do desenho em todas as direções, dobrando o espaço ao se desdobrarem como malha infindável. Céu azul paulistano e concreto armado – são as palavras que me vêm à mente. Mas não há como deixar de perceber que o espectador não se encontra na cidade, mas no plano de sua abstração, através de um desenho que tem como matriz um tênue losango virtual se irradiando a partir do centro do espaço. De novo Partenheimer parece ter tocado uma espécie de limite que o obriga a voltar ao marco zero do Diário Paulistano e ao seu vocabulário fundamental, já que em DPII.15 os elementos básicos de sempre se expressam com a máxima convicção. Tal retorno, porém, acusa na repetição uma diferença: não há como ignorar a primazia do caráter sinuoso da linha nessa composição.

O último grupo de desenhos do Diário Paulistano introduz uma característica nova na série, que merece atenção. O primeiro grupo, ao desenrolar o embate entre a cor e a linha, parecia acusar o impacto da perturbação que o encontro de Partenheimer com a arquitetura e com a cidade provoca; por sua vez, o segundo parecia se desdobrar como uma intensa exploração do espaço suscitada pela necessidade de relacionar, no desenho, as questões de sua articulação com os espaços urbano e arquitetônico. No terceiro grupo, o que mais impressiona é o modo como o ritmo da execução da composição parece comandar a sua “resolução”.

Com efeito, logo em DPIII.1, dir-se-ia que Partenheimer se entrega a um relançar da experiência. Agora importa ver o modo como a cor ocupa o espaço, liberando a sua potência no ritmo de sua própria transformação. Aqui, tanto o seu caráter fluido quanto o peso de sua materialidade se fazem valer, enquanto constitutivos do espaço-tempo. Mas essa “conquista” é contrariada pela intromissão de uma nova camada de cor cuja função é mostrar que o poder de composição da cor reside tanto na sua afirmação e intensificação, quanto na sua negação e esmaecimento. Como se a modulação das intensidades no próprio ritmo de sua ocorrência se tornasse a questão central.

No desenho seguinte, a questão da modulação é recolocada, em confronto com a linha. Por ser de outra natureza, por pertencer ao mundo físico, da luz, a cor mantém a sua diferença, conserva a sua irredutibilidade frente à natureza mental da linha. Até mesmo a sobreposição de desenhos que caracteriza tão marcantemente DPIII.2 parece não ter precedência frente a ela. A intensidade do negro nos faz ver o imediatismo do presente se antecipando em nossa visão; por sua vez, as camadas de linhas e formas sobrepostas dão à composição uma espessura temporal que não deve ser desprezada. Como se Partenheimer nos dissesse que o desenho comporta dois tempos, o presente da cor, o passado das linhas.

A composição exige do espectador a constante atenção para com a atividade da visão.

Em DPIII.3 a modulação da cor vela e revela. A justaposição das camadas de desenho regula as tonalidades, faz ver as nuances - o olhar é levado a passar de uma para outra, desta para uma terceira, voltando em seguida para a primeira ou retomando o caminho no sentido inverso. A composição exige do espectador a constante atenção para com a atividade da visão.

Já no desenho seguinte as cores parecem orquestrar uma espécie de harmonia entre as linhas da arquitetura e da cidade e os blocos tão caros a Partenheimer; sente-se que a composição se faz seguindo uma lógica que conjuga percepção e memória numa espécie de geometria variável, e que o artista parece saber “ver” e “escutar”.

É curioso constatar que, em DPIII.5, os blocos de Partenheimer parecem se desprender do azul, como manchas, antes de se tornarem formas. Desde o início deste último grupo de composições tais quadrados vêm “se soltando”, se distribuindo e ocupando o espaço sem gravidade; até que, em DPIII.6, se transformam em retângulos cheios e vazios pairando sobre camadas e camadas de desenho, como aberturas que a percepção faz à memória. Ora, tal movimento é bruscamente interrompido e brutalmente revertido na composição seguinte: o espaço é invadido por sombras, por um emaranhado de traços e por contornos exacerbados, que criam vazios e buracos negros; um universo pesado e viscoso se anuncia como ameaça até então sequer pressentida nos trabalhos anteriores. A dissonância introduzida causa espanto, não só por seu caráter inesperado, mas também, e principalmente, porque desorienta o espectador, que se pergunta a causa de tamanha quebra na modulação. De todo modo, a positividade do processo é reencontrada em DPIII.8. De novo a modulação da cor vela e revela linhas e formas, levando o espectador a ver através do desenho. Talvez se encontre aqui uma razão da existência das camadas, na descoberta de que um desenho tem começo e fim, mas que o desenho não tem começo nem fim, havendo sempre um desenho por baixo de outro. Se assim for, como em Proust, toda a questão passa a ser a da “resolução” que capta o desenho do encontro da percepção com a memória.

Passemos ao desenho seguinte. O que se vê são camadas de desenho. E, com elas, a suspeita de que talvez a modulação do ritmo não seja dada apenas através dos elementos, elemento por elemento, mas sim pelo tempo de manifestação de cada camada que se desenha. Os trabalhos do Diário Paulistano deveriam, então, ser vistos como condensações de momentos diferentes através do desenho, cada um deles condensando, portanto, ritmos diferentes num espaço-tempo que se torna comum a todos estes.Talvez seja esta a lógica descoberta por Partenheimer. Lógica do desenho do desenho, que tem por princípio captar a manifestação física ou mental de algo que se desenha no campo da visão intuitiva, seja começando pelo olho, seja começando pelo espírito – como projeções que podem ter início no objeto ou no sujeito, mas que se efetuam entre eles. Por isso, não adianta tentar procurar um sentido preliminar nos desenhos do artista. Eles fazem sentido, mas não têm sentido, porque não podem, enquanto tais, ser reduzidos a uma idéia pré-concebida, eles resistem à constituição de uma idéia, opondo a ela o tempo da superveniência de uma nova camada, oposição que compromete o tempo necessário à elaboração do sentido. Partenheimer e o espectador parecem já não ter esse tempo, ocupados que estão em passar incessantemente de uma camada para outra. Assim, as condensações de momentos são processadas sem a preocupação com o sentido e existem por si e para si mesmas, enquanto o artista existe para elas, dedicando-lhes todo o seu tempo. Por isso, o que se vê nunca é a metrópole, nem sua arquitetura, nem um sujeito contemplando-as. No limite, não há cidade, nem edifício, nem forma acabada, nem sujeito-artista que os percebe: há um contínuo atravessar de camadas, numa ou noutra direção, contínua modulação da intuição geométrica.

(...) para existir, o tempo do desenho tem necessariamente de contracenar com o do espectador, que se faz enquanto ele vê.

Em DPIII.10, o desenho escoa, como se passasse, avançando da esquerda para a direita. Linhas negras que contornam brancos acabam se misturando a linhas brancas que contornam negros, até se fundirem em traços cinzas. Céu, edifício, nuvens, horizonte, janela, cidade parecem ter surgido num lampejo, mas logo desaparecem, como uma alucinação, trazida e levada pelo encontro da percepção com a memória. O espectador diz para si mesmo que tal visão pode não passar de um reflexo condicionado. Nada disso, porém, tem importância – para existir, o tempo do desenho tem necessariamente de contracenar com o do espectador, que se faz enquanto ele vê.

Depois de um breve retorno ao vocabulário básico da linguagem partenheiminiana (DPIII.11), para onde o ato de desenhar reflui como que buscando ao mesmo tempo seu material e suas forças, estamos novamente às voltas, na composição seguinte, com as camadas e a modulação de sua manifestação. Tanto a ausência de compromisso com o sentido quanto o investimento na resolução induzem o espectador a acreditar que Partenheimer não só assume a lógica do desenho, como nela se regozija. Pois se tornar, não porta-voz, mas porta-visão do que acontece, suscita uma grande sensação de liberdade.

Em DPIII.13, a composição surpreende por seu caráter dual, ao contrapor num mesmo plano, como duas metades justapostas, os quadrados soltos no espaço da cor a outros que se prendem a linhas. O resultado é a impressão de que estamos diante de uma confrontação entre dois tipos de espaço - o espaço da metafísica e o espaço da abstração – como duas faces de uma mesma moeda. Em DPIII.14, a vivacidade do desenho anterior, tanto em termos de linhas quanto de cores, sofre uma rápida redução de intensidade. Como se a modulação se fizesse passando de um extremo a outro. Ocorre que aqui não há dualidade: o espaço da composição, que antes supunha a separação e tensão entre metafísica e abstração, agora aparece outra vez como camadas, desenho sobre desenho, no qual todas as instâncias convivem.

Não há mais para onde ir? O ar denso e sufocante da metrópole parece contaminar tudo.

As modulações e variações talvez pudessem continuar indefinidamente. Mas em DPIII.15 a resolução consuma maravilhosamente o encontro de Partenheimer com São Paulo, através da janela de Niemeyer. Está tudo lá: o losango irradiando, a linha do horizonte, a curva sinuosa, a trama da cidade; e em meio a cores, traços, linhas, formas, emergindo do negro como que trazido para dentro da “paisagem”, mas como parte legítima dela, a figura humana, atualização inequívoca de Cocoon Man, promessa de metamorfose. Consumado o encontro, o Diário Paulistano parece caminhar para o seu fim. Em DPIII.16, a composição acusa um processo de petrificação, no qual tudo se fecha no furta-cor e no apagamento da linha. Camadas geológicas de desenho indicam que o movimento da série talvez tenha se estancado. Não há mais para onde ir? O ar denso e sufocante da metrópole parece contaminar tudo. Talvez seja a hora de encerrar. E, no entanto, de modo totalmente inesperado, um último desenho reinaugura o ato de desenhar, com cor e linha. Em vez de uma sensação negativa, um grande otimismo toma conta do espaço. O que vale é que o Diário Paulistano se encerra com alegria.


 


*Agradeço a Ligia Nobre, Projeto São Paulo S/A, da eixo experimental org, Rubens Mano e o Prof. José Lira, da FAU-USP, pela valiosa colaboração.

Notas:

1. Para tanto, ver Jürgen Partenheimer. Die Verschickung der Oste, Kunstverein, Göttingen; Kunstverein, Dortmund, 1997; Häusler, Christa [ed.] Jürgen Partenheimer. Follow the Rabbit. Heike Kurtze, Wien, 1990; CrossMapping. Partenheimer in China. Richter Verlag. Beijing-Nanjing, Düsseldorf, 2001; Jürgen Partenheimer. Suave loucura. Pinacoteca do Estado-Estação Liberdade, São Paulo, 2005


2. Beckett, Samuel. Proust. Les Editions de Minuit, Paris, 1990, pp. 95 e ss.

3. Thorn-Prikker, Jan. “Perdidos na Tradução/Lost in Translation”, in Suave loucura, op. cit. pp.72, 74 e 75.

4. Michaux, Henri. Misérable miracle. Coll. Le Point du Jour, NRF, Gallimard, Paris, 1972.

5. Silva Telles, Sophia. “O desenho – Forma & imagem”, in Documento Oscar Niemeyer. Arquitetura e Urbanismo, no. 55, São Paulo, Agosto-Setembro de 1994, p. 91.

6. Idem, p. 91.

7. Ibidem, p. 92.

8. Silva Telles, Sophia. Arquitetura moderna no Brasil: O desenho da superfície. Dissertação de Mestrado. Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1988, pp. 84 e85.

9. Idem, p. 72 e ss.

10. Ibidem, p. 79.

11. Ibid., p. 90.

 

Uma visão que aposta na possibilidade de um lastro de representação integrado para a diversidade cultural da cidade está na proposta narrada em Um Grande Museu para São Paulo, de Aracy Amaral. O progresso, ideia fundadora para nossas visões de São Paulo, é tema também em A Cidade e a Estética do Progresso, de Almandrade

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