Fetiches e Monumentos. Arte pública, iconoclastia e agência no caso dos “Orixás” do Dique de Tororó.
Esse artigo se baseia na história da vida de uma coisa, um objeto. Ja há alguns anos, Appadurai (1987) argumentou que os objetos podem ser vistos como atores sociais, pelo menos do ponto de vista metodológico: pontos focais a partir dos quais podemos analizar um certo contexto social, vendo os valores que eles põem em jogo, as discussões e os movimentos que eles provocam, enfim, como eles influenciam numa situação de formas as vezes imprevisíveis, provocando transformações inéditas.
Mas às vezes, não é só “metodologicamente” que as coisas são atores sociais, um texto a partir do qual desvendar um contexto. Às vezes, a própria entidade dos objetos como atores sociais é o sujeito da discussão. Podem os objetos ser atores não só metodologicamente, mas de forma efetiva? Alfred Gell(1998) argumentou que em muitas sociedades os objetos podem ter “agência”(agency), que as pessoas podem reconhecer neles intenções e vê-los como sujeitos da ação social. Mas na nossa sociedade, essa possibilidade é enfaticamente repudiada pelo discurso moderno sob a acusação de fetichismo. De fato, a negação da possibilidade que os objetos e qualquer entidade não-humana sejam atores sociais é mesmo constitutiva da modernidade, como argumentou Latour (1991, 1996).
A urgência dessa acusação de fetichismo, às vezes, revela o temor da possibilidade de que os objetos sejam de fato atores. Apesar da força dogmática da acusação, não são incomuns na nossa sociedade moderna os casos em que ela é questionada, sitações ambíguas nas quais não é muito evidente quem é o sujeto e quem o objeto da ação. Os atos de iconoclastia são frequentemente bons exemplos dessa ambiguidade, como argumentou Latour (2002). Que razão tem o iconoclasta para destruir o objeto, se é só um objeto? E pelo outro lado, porque os anti-iconoclastas sentem-se também atacados pelo iconoclasta- se ele só atacou um objeto?
O “objeto” do qual eu vou tratar é um desses casos onde a entidade dos objetos como atores sociais é ambiguamente questionada por atos iconoclastas. De fato não é so um, mas um conjunto de objetos, de dimensões bastante consideráveis: um monumento, o monumento aos Orixás do Dique de Tororó, em Salvador de Bahia, inagurado no mês de abril de 1998. O monumento está formado por um grupo de imagens dos Orixás. A Igreja Universal protestou contra a instalação do monumento até mesmo com ataques físicos, sob a acusação de que seria um conjunto de fetiches e ídolos diabólicos. O ataque finalizou com a intervenção pessoal dos poderes públicos da Bahia, depois do qual, a Universal reconhecera "o erro" de confundir uma obra de arte com um fetiche. Esse foi, de fato, só o mais espetacular dos ataques iconoclastas de pentecostais contra obras de arte pública que fazem referência aos Orixás na Bahia.
Neste artigo, vou tentar ver o que esse monumento e a sua história pode nos dizer sobre as relações entre cultura, religião e espaço público na Bahia. Mas além disso, vou tentar questionar as ambiguidades que resultam do confronto de diversos sistemas de valores dentro da sociedade brasileira, que podem ver as relações entre sujetos e objetos de uma perspetiva diferente. Especialmente quando esses objetos são imagems religiosas. Para desenvolver o argumento apresentando cada uma das diferentes perspectivas, olhares, e formas de relação com o monumento, desde as perspectivas oficiais, vendo o monumento como obra de arte e símbolo da cultura bahiana, até as perspectivas mais críticas, que vêem o monumento como mercadoria turística, ídolo fetichista ou fetiche do poder político estabelecido.
Nas conclusões, porém, vou tentar discutir como essas visões gerais, sejam oficiais ou críticas, não abrangem necessariamente todas as formas cotidianas de apropriação e relação com esse monumento em particular, e dos objetos públicos em geral, que podem tomar formas muito diversas e particulares como poderá ser percebido através do comentário de alguns casos. O objetivo final do artigo é iniciar uma discussão precisamente sobre essas formas de relação com os objetos públicos, esses processos de apropriação e personalização, e a “agência” social dos objetos, insistindo, particularmente, na importância de entender essa agência em termos de “territorialização” no tempo e no espaço.
Os “Orixás” como obra de arte
O monumento aos Orixás do Dique de Tororó foi concebido como o elemento marcante, símbolo da remodelação do Dique. Situado no centro da cidade de Salvador, o Dique de Tororo é uma zona de tráfico intenso, entre a Estação Central da Lapa e o Estádio de futebol da Fonte Nova, comunicando o centro histórico com os bairros pobres do norte. O bairro mesmo reúne vizinhanças de classe média-baixa e baixa. O Dique tinha se transformado num esgoto ao ar aberto, e a remodelação visava primeiro higienizar as águas, e formar um parque com equipamentos nas suas imediações, com pistas de cooper, aparelhos de ginástica, restaurantes, etc. A remodelação é interessante em dois sentidos. Primeiro porque é uma tentativa de limpar, revitalizar e embelezar uma área num bairro popular, com o objetivo político de formar uma consciência da propriedade pública – que seria uma consciência de “cidadania”. Segundo porque essa consciência de cidadania é concebida como ligada ao valor natural(1), histórico e cultural do Dique especialmente ao seu simbolismo religioso no Candomblé: o Dique de Tororo é um santuario de Oxum, o Orixà da água doce. Regularmente, o Dique recebe oferendas a essa divindade, por parte de pessoas dos mais diversos grupos sociais. Não é só uma questão de promoção da cidadania, então, mas também de promoção da identidade cultural.
A construção de um monumento aos Orixás da Bahia deve ser entendida nesse contexto de promoção da cidadania e da identidade local. O monumento foi encomendado ao escultor e decorador Tati Moreno, que construiu sete Orixás gigantescos (7 m.). Moreno é conhecido na Bahia pelos seus Orixás de metal de pequenas dimensões e pelo seu trabalho nas decorações do Carnaval. Discípulo do também escultor Mário Cravo Jr., Moreno começou a trabalhar com o tema dos Orixás nos anos ´70, quando a exploração turística do Candomblé se consolidou na Bahia (ver Santos 2000).
O uso de obras de arte para promover a cidadania e a identidade coletiva baseia-se numa lógica dupla. A identificação coletiva, no caso das esculturas dos Orixás, é promovida através de uso de referentes que se acham no patrimônio geral do povo da Bahia e são, supostamente, reconhecidos como tais por esse povo: os Orixás.Vamos falar dessa questão mas adiante, mas antes disso, vou discutir a questão da promoção da cidadania, que é mais difícil de explicar, mas é fundamental.
A idéia de promover a cidadania através da arte encontra-se muito relacionada à imagem da “esfera pública”, que nos termos de Mitchell, proporciona o espaço no qual a cidadania livre de interesses particulares pode contemplar um emblema transparente da sua inclusão e solidariedade, e deliberar sobre o bem em geral, livre de constrangimentos, violências, ou interesses privados (2). Mais específicamente, a “arte pública” teria que estimular a sensibilidade estética da cidadania, que depois de Kant, define uma forma particular de relacionar objetos e sujetos. Na Critica do Juízo, Kant define o juízo estético como livre de necesidade e finalidade: objeto e sujeto são independentes e o sujeto não tem interesse no objeto em si, mas só na sua aparência. O objeto é visto como objeto, não como mercadoria ou instrumento. Ele não é visto em função de interesses ou finalidades humanas. No juízio estético não reconhecemos no objeto nenhuma capacidade de condicionar o nosso juízo porque sabemos que ele é só isso - uma coisa. Não reconhecemos nenhuma votade, intenção, ou capacidade de atuação autônoma nele. Mas por outro lado, os juízos de gosto são universalizantes: achamos que o nosso juízo diz alguma coisa a respeito das qualidades do objeto que achamos deveriam ser reconhecidas por todos. O paradoxo é que reconhecemos que o nosso gosto é subjetivo, mas achamos que é resultado das qualidades objetivas do objeto.
O juízo estético é portanto uma forma de relação entre sujetos e objetos baseada no afastamento e livre de necesidade e interesse. Por outro lado, também prefigura uma forma de relação entre sujeitos baseada na tolerância e a comprensão mútua – o reconhecimento do gosto de cada um, mas também tendo como aspiração um acordo final, um gosto universalmente compartido. A obra de arte deve estimular este aspecto da experiência estética, a possibilidade de reconhecer a beleza de forma desinteressada e de gostar de compartilhá-la com outros. Já o escritor e filósofo Schiller, leitor de Kant, entendia a educação estética como desenvolvimento da capacidade crítica e de compartilhar o gosto em liberdade. Essa educação estética seria fundamental na formação da cidadania, baseada, precisamente, em sujeitos críticos e capazes de agir para além dos seus interesses pessoais. Essa visão da beleza com símbolo da liberdade, como dizia Kant, será fundamental na tradição da teoria crítica alemã, no chamado “marxismo doce”, e se torna também central, precisamente, na produção do que Habermas (1989) chama uma “esfera pública”, uma arena pública de debate democrático e desinteressado. Em geral, poderíamos dizer que a teoria seria que o estado democrático moderno, através da arte pública, não deve tentar promover só uma identidade coletiva indiferenciada (seguindo o modelo durkheimiano) mas uma identidade compartilhada livremente, por sujeitos independentes, em diálogo crítico.
Os Orixás como símbolo religioso e cultural
Essa é, poderíamos dizer, uma das idéias difusas, gerais, por trás do projeto das esculturas dos Orixás – como obra de arte pública num estado democrático moderno. Além disso, fazer uma obra de arte especificamente dedicada aos Orixás, como já falamos, visa a promover a identificação da população com o que seria um dos símbolos marcantes da cultura bahiana. Mas até que ponto é legítima essa identificação? Ou, mais especificamente, até que ponto essas representações dos Orixas são consideradas legítimas pelo povo do Candomblé?
A representação que Tati Moreno faz dos Orixás não corresponde aos objetos de uso litúrgico do Candomblé, no qual as imagens antropomorfas não têm um lugar central, mas são só um dentre os objetos que se encontram nos altares. Poderíamos dizer, de fato, que os Orixás, no Candomblé, não são representados, mas se fazem presentes, de forma pontual, através de meios diversos: essencialmente no corpo dos acólitos, quando eles são possuídos, nas festas. Geralmente, horas antes dessas festas, os orixás são chamados, seu axé (sua força) tem que ser acordado nos repositórios permanentes, chamados assentos, onde é mantido, com oferendas e sacrifícios. Esses repositórios ou altares raramente contêm imagens e ainda nesse caso, as imagens não se encontram no fundamento do axé, da força. O fundamento é geralmente uma pedra, otan, que é assentada em recipientes de diversa índole dependendo do Orixá. Essas pedras acham-se nos rios no caso das orixas das águas, ou são pedras do trovão no caso de Xangô. Em todo caso, as pedras devem ser achadas: o encontro entre pedra e acólito tem que ser resultado do acaso. Essa intervenção do acaso foi motivo de escândalo para muitos viajantes europeus na África Occidental do século dezoito, que viram no culto dos fetiches a prova da irracionalidade dos africanos (Pietz 1985). Hegel, em particular, especulou sobre esse fato. Certamente, o acaso é um elemento importante, mas é um acaso objetivo, no qual é a pedra do Orixá quem está chamando a ser achada.
Essas pedras, otan, junto com outros objetos, são usados de formas diversas: absorvem o sangue dos sacrifícios, são limpadas ritualmente. Elas são alimentadas e enfeitadas. Elas não são o Orixá mesmo, mas a sua casa ou repositório. Através dos sacrifícios e das oferendas, o axé contido na pedra é transferido para a cabeça do iniciado, o ori. O progresso no conhecimento e na prática ritual do iniciado é correspondido pela acumulação do poder e da vida do assento. Como diz o pai de santo, “as pedras crescem”. De fato, a relação entre iniciado e assento é altamente determinada e determinante, até o ponto em que o assento praticamente vira um órgão externo do corpo do iniciado, uma parte da sua “pessoa distribuída” (Gell 1998).
Claro que essa relação dos filhos de santos com os assentos é muito diferente da “experiência estética” kantiana. No caso do Candomblé o afastamento entre objeto e sujeto não é possível - por que um e ou outro fazem parte da mesma “pessoa distribuída”.
Essa é uma das principais razões pelas quais as imagens no Candomblé não têm a centralidade que têm por exemplo na prática católica. De fato, os objetos do axé seguem uma lógica radicalmente oposta das imagens católicas. Poderíamos dizer que os objetos do axé seguem uma lógica da ocultação, oposta à lógica da visibilidade da imagem católica depois do Barroco. Os objetos do axé são ocultados, embaixo dos seus enfeites, nas suas camarinhas, até dos iniciados recentes. As portas estão abertas só para os sacrifícios, e os iniciados não podem olhar direito para os altares. Assim, o poder imanente desses objetos é acrescentado pela experiência ritual da invisibilidade. Ao contrário, as imagens católicas manifestam o seu poder precisamente através da sua absoluta visibilidade.
Isso não quer dizer que as duas formas de representação do poder sejam incompatíveis, pelo contrário: situados em duas lógicas da visibilidade e do espaço radicalmente opostas, elas podem sobrepor-se nas práticas e na organização do espaço - gerando o que foi chamado de “sincretismo”. Assim numa casa de Candomblé, podemos achar altares católicos nos âmbitos mas públicos que se correspondem aos altares de axé nos âmbitos mais privados.
Essa visibilidade e orientação ao espaço público das imagens Católicas faz que elas sejam facilmente adaptáveis aos discursos da experiência estética - e possam ser percebidas como obras de arte. De fato, é lógico que seja assim, porque a nossa noção moderna de arte de fato se origina nas imagens religiosas católicas. Mas no caso do Candomblé esse trânsito do religioso ao artístico é bem mas complexo.
Qual é a referência que toma então Tati Moreno para as suas imagens dos Orixás? Não tanto os altares do Candomble como os filhos de santo em transe. As imagens dos Orixás no Dique de Tororó seguiriam, nesse sentido, o modelo dos filhos de santo possuídos pelos Orixás. De fato, esse aspecto do Candomblé, as festas, onde os filhos de santo incorporam os Orixás, é o aspecto mais público e conhecido dessa religião, é aquele que foi mais tratado pelos artistas desde meados do século XX, quando o Candomblé começou a ser valorizado como cultura. Pintores como Carybé ou fotógrafos como Pierre Verger popularizaram as suas imagens de filhos de santo em transe, dando um prestígio ao culto através dessas imagens artísticas. Por outro lado, a maioria dos artistas que trataram esses temas ficaram envolvidos com o Candomblé. Moreno não é uma exceção: ele é Ogá no Gantois, um dos terreiros mas tradicionais de Salvador.
Inicialmente, Moreno não pediu conselho ao Gantois sobre como representar os Orixás; na verdade não precisava, já que não se tratava de uma representação religiosa, mas simplesmente de uma recriação artística. Mas então, ele teve uma série de problemas na realização do projeto. Ele queria colocar as esculturas sobre umas bases flutuantes, e elas não conseguiam se manter em pé. Isso provocou rumores de má sorte, o que levou Moreno a fazer uma consulta aos búzios no Gantois. Os búzios revelaram que mais cinco Orixás tinham que ser realizados, além dos sete projetados. Depois disso tudo deveria dar certo(3).
Mas na verdade, nem tudo deu certo. O projeto dos Orixás foi sujeto a polêmicas, dentro do mundo artístico, e até de ataques, por parte da Igreja Universal, como veremos mas adiante. Por agora, vamos a falar da polêmica dentro da esfera artística e cultural.
Os “Orixás” como mercadorias
É claro que o Parque do Dique, e especialmente os Orixás, não foram pensados só para os baianos, mas também para os turistas. Eles são freqüentemente mencionados nos jornais como um novo cartão postal para a cidade. É nessa lógica da mercantilização da cultura afro-brasileira para o turismo, que devemos entender também essas esculturas. É essa mercantilização a razão principal da suspeita e o receio que o projeto poderia ter provocado em alguns setores da cidade, especialmente, claro, entre os artistas, a competência de Moreno, e entre os intelectuais críticos com as politicas culturais do governo (particularmente antropólogos e sociólogos). Esses intelectuais e artistas vêem o monumento aos Orixás como a típica imagem folclórica do Candomblé que é vendida para os turistas. As imagens do Candomblé popularizadas por Verger ou Carybé a partir dos anos cinquenta, viraram, a partir dos anos setenta, com a expansão do turismo na Bahia, as imagems típicas dos mercados de souvenirs e arte turística no Pelourinho e no Mercado Modelo. O mundo da arte contemporânea tentou se distanciar dessas imagens estereotipadas, assim como das políticas culturais que as promocionavam, para realizar uma arte mais internacional. Não vou discutir aqui se essa estratégia foi bem sucedida ou não. O fato é que Moreno, que sempre trabalhou nessa linha dos Orixás e que sempre teve muito bons contatos com o governo, foi e é considerado por alguns como um artista oficial que serve aos intereses de promoção do turismo do governo baiano.
Essa crítica colocaria em questão a suposta identificação coletiva que o monumento teria que suscitar: as esculturas dos Orixás não seriam para os baianos, mas para os turistas. Os Orixás seriam alienados da Bahia para produzir uma projeção exterior, um cartão postal de questionável legitimidade. Produz-se neste caso uma situação de superposição de valores – uma “hibridação” nos termos de Garcia Canclini (1990), no qual um mesmo objeto tem valores contrapostos mas coexistentes, para nativos e estrangeiros.
Ainda assim, essas polêmicas entre inteletuais nunca chegaram à confrontação aberta. Pelo contrário, a reação da Igreja Universal do Reino de Deus ao projeto dos Orixás do Dique foi extremamente forte, chegando até à violência fisica. A Igreja Universal não via nos Orixás nem obras de arte, nem cartões postais, mas ídolos diabólicos, “desgraças”.
Os “Orixás” como ídolos
Para Birman(2004), uma das caraterísticas mais interessantes dos novos cultos evangélicos é a eficácia com que disputam o espaço público tradicionalmente dominado pela Igreja Católica. Os ataques iconoclastas praticados pela Igreja Universal contra imagens e símbolos religiosos, sejam católicos ou de Candomblé, são uma das formas mais combativas de ocupar esse espaço público. O caso mais badalado foi o chamado “chute da Santa”, quando um pastor da Universal chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, para demostrar que isso era só um “pedaço de madeira” (Johnson 1997, Kramer 2001, Giumbelli 2004). O caso do “chute da Santa” não punha só em questão as relações entre religiões no Brasil, mas as relações entre religiões, Estado, e cultura na esfera pública: o Estado sentiu-se atacado também porque o ataque à padroeira do Brasil era percebido como um ataque ao Estado, sua história, e cultura. Assim na Petição Legal contra o pastor que chutou a santa podemos lêr “ O Pastor em questão ofendeu a Madre Pátria, a luta contra a escravidão, a saga da nação Afro-Brasileira, a reverência à humildade, o respeito à pobreza, a origem das cores da bandeira, o patrimônio cultural brasileiro, e as forças armadas (citado em Kramer, 2001:28). A Universal, nesses termos, questiona a imagem pública do Brasil como país “culturalmente” Católico.
Se os ataques contra imagens católicas podem ser violentos, a relação entre a Universal e os cultos afro-brasileiros chegou a degenerar em violência física em algum momento, especialmente no Rio de Janeiro (Soares 1992). Ainda mais do que contra o Catolicismo, a luta contra o Candomblé é uma luta contra o Diabo. Os convertidos do Candomblé à Universal são obrigados a queimar, quebrar ou jogar fora tudos os objetos do culto. As casas de culto, os terreiros, tem que ser também ritualmente limpadas com azeite bento para expulsar o diabo, o qual é comandado a sair. Os fundamentos e axés dos terreiros são extirpados, até se eles se encontravam enterrados.
É difícil dizer se os atos iconoclastas da universal são só rituais simbólicos ou efetivos, isto é: se o ato de destruir tem só uma finalidade didática e psicológica para o convertido, ou pelo contrário, realmente se acredita no poder mágico das imagens e dos objetos, na sua condição de ídolos, e fetiches. Os advogados do pastor que chutou a imagem de Aparecida argumentou que o pastor estava usando a imagem só como um exemplo visual, e que nesse caso, ele estava exercendo o seu direito à liberdade de expressão (Kramer 2001). Mas na verdade, esse intenção didática ou psicológica é difícil de ver em atos iconoclastas dos fiéis da Igreja, como a limpeza dos terreiros, realizados com uma violência ritualmente eficaz que visa destruir Diabos reais que se encontram lá, que não parecem ser só projeções psicológicas. A Igreja se apropria do valor desses objetos, para negá-los, mas essa apropiação implica mais um “reencantamento” do que um weberiano “desencantamento do mundo” (Birman 1998).
É também muito interessante a negação e a cegueira estética da Igreja Universal. Quando o pastor que chuta a santa fala que isso e só um pedaço de madeira, está negando não só o valor religioso dela, mas também o valor estético, sensível, a condição de imagem, em geral, que ela tem. Essa rejeição do sensível, e do sensual, parece reduzir a atividade humana a duas finalidades interligadas: a elevação espiritual e o ganho material, econômico. Nessa perspetiva, as coisas materiais e as imagens podem ser vistas só ou como inimigas do individuo, já que tentam o corpo, ou como instrumentos de ganho material, mercadorias. É nesse sentido que a Igreja Universal apresenta um maior contraste com o Candomblé. Se bem é certo que o Candomblé é também uma religião pragmática, que procura solucionar problemas da vida das pessoas, o culto dos Orixás pede intimidade com as coisas, com a terra, com os sentidos; os Orixás são seduzidos pela beleza, eles têm gostos requintados: eles querem só belos ebós, belas casas, belas jóias, dança, música e comida. A prática ritual do Candomble é sem dúvida uma educação dos sentidos.
Mais isso não quer dizer que o Candomblé seja uma religião do prazer. Pelo contrário, é uma religião de serviço aos Orixás, uma religião de obrigações e quizilas que podem representar grandes sacrifícios para os iniciados. Nesse sentido, a conversão ao pentecostalismo pode representar uma liberação da servidão material do Candomblé.
Voltando ao caso do Dique de Tororo: a cúpula dirigente da Igreja Universal do Reino de Deus na Bahia chegou a pedir pessoalmente ao governador que não permitisse a colocação das imagens. Os evangélicos achavam o monumento ofensivo aos crentes e dizem que eles simbolizam "desgraças". Os pedidos da Igreja Universal não foram atendidos. A igreja organizou uma concentração no Dique, incluindo um trio elétrico, onde os crentes ficaram rezando por até oito horas. A campanha foi também dirigida contra Tati Moreno. Ele recebeu ligações com ameaças. Em outra ocasião, seu carro foi perseguido por outro, ocupado por mulheres que gritavam: “Tati, Deus te Ama”. A situação chegou ao clímax quando um homem se lançou no dique e, nadando até a escultura de Oxalá, começou a administrar-lhe golpes de cotovelo, gritando “Esse aí não é Deus”. Os bombeiros tiveram que ir buscá-lo com uma lancha. Uma das esculturas nas margens do Dique foi atacada, desta feita à noite, a marretadas, mas o vândalo nunca foi identificado.
Todas essas ações colocaram Moreno em um estado de grande inquietação, segundo ele mesmo me contou(5), até que ele decidiu telefonar ao próprio Antonio Carlos Magalhães. O então presidente do Senado garantiu que iria tomar providências. Efetivamente, a hierarquia da Igreja Universal finalmente cedeu e reconheceu o seu “erro” por ter identificado obras de arte com imagens diabólicas.
O reconhecimento dessa distinção – objeto artístico/cultural, objeto religioso/ mágico – é extremamente interessante, especialmente porque se realiza só depois da pressão política. De fato, esse não foi o primeiro atentado de neoPentecostais contra obras de arte pública em Salvador. Eu achei outros caso, ocorridos nos últimos anos. A comparação com o caso do Tororó pode nos ajudar a entender a mudança de perspectiva que esse caso introduziu.
O primeiro caso foi um mosaico do artista Bel Borba, representando a Iemanjá, o Orixá do Mar. Borba é conhecido na Bahia pelos seus mosaicos na rua, genuínas obras de arte pública que não foram comissionadas por ninguém. Problema conceitual – arte pública Essa obra em concreto, um mosaico de Iemanjá como sereia, se encontrava no bairro do Rio Vermelho (onde como todo o mundo sabe em Salvador, tem lugar a festa de Iemanjá no dia 2 de fevereiro – como todo mundo sabe? Num artigo?), na parede de um antigo cinema abandonado. A Universal comprou o local do cinema para fazer uma Igreja, e destruiu o mosaico. Borba viu que a Iemanjá tinha sumido um dia passando por lá. Mas ele não podia fazer nada, como ele mesmo me falou (6): o prédio era da Universal e eles podiam fazer o que eles quisessem com ele...
Outro caso foi o das pinturas e esculturas de Juarez Paraíso noutro antigo cinema de Salvador, no Politeama, no centro, comissionadas pelo dono do cinema em 1982. O cinema também foi comprado por uma igreja evangélica, nesse caso, a Igreja Renascer. Dia 5 de maio de 2000, um vizinho viu como eles destruiam as pinturas murais, depois de escrever encima deles: “nada Satanas”, “Deus é fiel” e “resista ao Diabo até ele fugir”. Ele ligou para o autor, que informou os jornais. Quando os jornalistas chegaram o mural já se encontrava coberto de cal. O responsável da Igreja, diante a insitência dos jornalistas, falou que ele não sabia que isso fosse uma obra de arte (achava de muito mal gosto), e que não tinha mais nada a dizer, que o cinema era propiedade da Igreja agora. O artista, Juarez Paraíso, lamentou publicamente do ato de “barbárie” da Igreja, e falou que “O governo poderia tombar essas coisas, que tem um caráter público, o que aconteceu comigo pode acontecer com qualquer artista” (A Tarde 5/6/2000).
Tanto no caso de Borba como de Juarez Paraíso, os artistas realmente não podem fazer nada, porque o local onde ficam as suas obras é propiedade das Igrejas, ainda se o ato que elas fazem é considerado por Juarez como um ato de vandalismo, não justificável baixo nenhuma ideologia. Nesse sentido, é importante ver a distinção entre vandalismo e iconoclastia. A iconoclastia visaria um objetivo além da imagem, um objetivo por exemplo religioso, enquanto o vandalismo é o puro acto de destruição de patrimônio sem motivo aparente. O ataque a uma obra de arte, segundo as palabras de Juarez, só pode ser um ato de vandalismo, já que a obra de arte não tem uma função religiosa, só estética e cultural. Essa função estética teria um valor universal independente da ideologia ou da religião. Pode ser que o vândalo confunda a presença física do símbolo com o conceito ou idéia simbolizada, a representação com o objeto representado. De fato, a época em que se començou a falar de vandalismo - como distinto da iconoclastia - foi no fim do Iluminismo¨, especialmente durante a Revolução Francesa, quando emergira também a ideologia da autonomia do valor cultural da obra de arte, a teoria kantiana da independência do juízo estético respeito a valores ou finalidades, incluindo valores religiosos. E nessa época que comença a se defender a necessidade de preservar o patrimônio artístico e histórico do Ancien Régime, indepedentemente do seu conteúdo político ou religioso contra-revolucionário (ver Gamboni 1997). De alguma forma então, a idéia de vandalismo se encontra também na origem da autonomia do campo cultural e do campo artístico.
Um terceiro e último caso interessante é o de uma escultura do orixá Exu do escultor bahiano Mario Cravo Jr. que devia ser instalada num lugar público no Rio de Janeiro, comissionado pela prefeitura do Rio. Cravo Jr. é um escultor de ampla trajetória, e Exu é um motivo recorrente na sua produção. A diferença dos casos anteriores, a escultura estava projetada para um espaço de propiedade pública. Mas contrariamente ao caso do dique de Tororó, esse projeto finalmente não foi realizado. Na opinião do artista (7), a escultura não foi aceita por pressões das igrejas neopentecostais. É possível argumentar que na época, os neopentecostais e protestantes em geral já tinham mais influência no Rio do que em Bahia, a começar pelo governador Garotinho.
A diferença, claramente, é que na Bahia os evangélicos não tinham o poder que eles têm por exemplo, no Rio de Janeiro. Assim, no caso do Dique eles foram obrigados a se submeter à vontade do poder estabelecido, nesse caso, Antonio Carlos Magalhães e o PFL. Reconhecer que o monumento aos Orixás no Tororá tem um valor “cultural” e não “religioso”, um valor autônomo e universal, é só uma posição de conciliação. Na verdade, a Universal só estava reconhecendo a autoridade temporal de ACM. Quando a Igreja Universal tiver mas força, ou o poder de ACM for menor, eles poderiam voltar a pedir a destruição do monumento.
Assim, a Igreja Universal colocou em questão precisamente toda a proposta de arte pública do governo. Primeiro porque questionava a representatividade do monumento aos orixás e, portanto, a sua propriedade como símbolo de identidade coletiva. Segundo porque, identificando-os como ídolos, com os seus ataques iconoclastas, os crentes tomavam uma atitude com relação às esculturas absolutamente oposta à experiência estética, que esse monumento esperava suscitar. Poderíamos explicar essa contradição nos termos seguintes: na experiência estética temos uma consideração fundamentalmente sensitiva da aparência das coisas observadas, independentemente da “coisa–em–si” e do interesse do observador. Idealmente, no juízo de gosto, sequer tocamos o objeto – é uma experiência muito visual, subjetiva e intelectualizada. Diferenciamos o símbolo – o que a escultura representa- da coisa em si; podemos apreciar a beleza do objeto independentemente da nossa fé religiosa- não importa se acreditamos nos Orixás ou não. A atitude do iconoclasta é totalmente diversa: a aparência das coisas, para o iconoclasta, é engano e deve ser evitada; o que importa realmente é o que está por dentro e, neste caso, não seria outra coisa além do Diabo. Então o iconoclasta como soldado de Deus deve destruir o objeto para evitar que sua bela aparência seduza as almas cândidas. Da perspectiva ilustrada da alta cultura, essa confusão de objeto e sujeito, de símbolo e entidade, esse fetichismo, não é mais do que uma prova da barbárie – do vandalismo - do iconoclasta. O ataque do iconoclasta, nesses termos, não é só um ataque contra os símbolos da religião afro-brasileira, mas contra os valores centrais da arte e da cultura, baseados na distinção absoluta entre objetos e sujeitos, símbolos e entidades, representações e coisas representadas. Atacando esses valores, a iconoclastia impediria a formação de uma cidadania ilustrada educada esteticamente, nos termos propostos por Schiller e os seus seguidores.
Mas no fim das contas, era essa a intenção das autoridades? E o objetivo deles realmente fomentar a cidadania?
Os “Orixás” como fetiches do poder estabelecido
O que aconteceu finalmente foi que ACM e o poder que ele personaliza impuseram a sua visão, fechando qualquer possibilidade de discussão pública. Os crentes forçaram a intervenção direta do (então) senador, excluindo assim qualquer ilusão de democracia, ideais de cidadania, identidade coletiva e esfera pública. Atacar o monumento seria como atacar a ACM pessoalmente. Numa situação de clientelismo e coronelismo populista (o assim chamado “carlismo”) a construção de uma esfera pública é uma ficção. Nesse sentido, as esculturas do Tororó podem ser olhadas não como arte pública democrática, mas como um monumento de um regime paternalista e populista. Para Hans Robert Jauss, os monumentos não nascem do diálogo e da historicidade, como as obras de arte, mas são monólogos que revelam uma essência imutável (Jauss 1982: 22). O poder dos monumentos como “fetiches do Estado” tem sido uma das questões favoritas para uma literatura antropológica recente que se interessa pela “magia do Estado” (por exemplo, Mbembe 1992; Taussig 1997). Para essa literatura, os “fetiches do Estado” não só representam, simbolicamente, o poder, mas são apercebidos pela população como extensões dele, da presença desse poder. Assim, embaixo de um discurso moderno da esfera pública e a democracia, encontraríamos o poder estabelecido que se mantem através de práticas não-modernas, práticas mágicas, fetichistas. No nosso caso, o monumento aos Orixás seria uma extensão do poder pessoal de ACM, um índice da sua pessoa distribuída.
Aparece assim em toda a sua dimensão a ambigüidade do discurso modernista de rejeição aos “fetiches” que mencionávamos no início deste artigo. Rejeitado no nível oficial, na prática os mecanismos do fetichismo são usados de forma corriqueira pelo poder estabelecido.
Eu podería ter terminado a pesquisa aqui, com a afirmação que de fato, os nossos monumentos são fetiches. Mas pensei que poderíamos dizer mais alguma coisa sobre isso. O que achei paradoxal e interessante neste caso é que o “fetiche” do poder apresenta-se como símbolo da cultura popular. Não é uma imagem do Estado – ou dos seus representantes –mas dos que seriam os “deuses do povo”, os Orixás. Mas o que pensa esse “povo” realmente dessas esculturas dos Orixás? Com essa pergunta na cabeça, decidi fazer eu mesmo uma pesquisa “populista”: ir no Dique e pedir a opinião de algumas pessoas.
Algumas apropriações particulares dos “Orixás”
Em geral, encontrei diferenças entre as opiniões dos turistas e dos locais. Os primeiros gostavam dos Orixás como parte da “cultura” e do “folclore” da Bahia – especialmente os brasileiros que tinham algumas noções gerais sobre Candomblé. O painel explicativo na beira do Dique era de grande ajuda para eles, orientando a observação. Por outro lado, os locais não expressavam uma atenção particular, alguns gostavam e outros não. As respostas mais elaboradas foram as das pessoas que trabalham no próprio Dique. Duas foram particularmente interessantes, a de um Policial Militar e a de um guarda do Parque. O policial era um homem pequeno, mas forte, com uma expressão de dignidade ameaçada. Primeiro ele me contou que as crianças do bairro tinham pesadelos com os Orixás do Dique, como no caso de um menino que sonhou que eles saiam da água e iam atrás dele com espadas e machados. Não é difícil de entender o pesadelo, vistas as dimensões e o armamento pesado das esculturas. O policial confessou-me depois que ele mesmo não gostava das imagens. Ele não pertencia a nenhuma Igreja, disse, mas lia a Bíblia. E não entendia a necessidade de tantos deuses quando a Bíblia é só uma e para todo o mundo é igual. Todo esse negócio dos Orixás estava provavelmente errado. Ele não ligava muito para isso, mas começou a não gostar no dia em que leu o painel na beira do Dique. Ele me mostrou o texto. Indicou-me um fragmento dedicado a Logum Ede e leu em voz alta: “Logum Ede é homem uma metade do ano, e mulher na outra metade”... ele olhou para mim significativamente, como dizendo que isso foi a gota que transbordou o copo. Ele não parecia gostar de deuses transexuais(8).
Outro testemunho interessante veio de Paulo, um jovem negro, guarda do parque. A primeira coisa que ele me falou foi : “ Eu não tenho nada em contra deles ( Os Orixás)... e ainda se eu tivesse, isso não ia mudar nada.”(9), o que demostra a sua consciência de não–cidadania. O interessante é que ele era membro da Universal e o discurso do crente transluziu quando ele comentou que as esculturas eram bonecos gigantes pintados. Curiosamente, uma parte do trabalho dele é controlar que ninguém faça sacrifícios de sangue no Dique. A política da administração determina que quem quiser fazer ebó tem que pedir permissão e que as oferendas só podem ser de flores e frutas, mas não de bichos mortos, porque poluem e cheiram mal.. Depois de falar mais um pouco com ele, um discurso muito curioso apareceu. Paulo começou a contar que, de fato, o Candomblé não é mais que o resultado de uma má leitura da Bíblia, como o Catolicismo. Todos os Orixás, de fato, podem ser encontrados na Bíblia. Oxalá, por exemplo, significa “língua dos Anjos” e, provavelmente, o objeto de adoração dos candomblezeiros é um anjo. Tenho que reconhecer que eu não conheço em profundidade o discurso sobre o Candomblé da Universal, mas essa história era mais sofisticada que a equação Orixá = Diabo. Era, de fato, uma forma de sincretismo particular, de traduzir em termos legítimos (da Bíblia) uma realidade alheia para explicá-la.
Nestes dois casos vemos formas de se relacionar com os Orixás do Tororó que não são redutíveis a nenhuma das perspetivas que definimos anteriormente. A relação do policial, do guarda e das crianças do Tororó com os Orixás não é definível nem em termos de experiência estética, nem de mercantilização, nem de imagem diabólica, nem de fetiche político. São tipos de relação pessoal, formados a partir de experiências e opiniões particulares. São formas do que Michel de Certeau(1990) chama apropriação ou reapropiação. Com estes termos, De Certeau define os processos de fazer próprias as coisas alheias, aproximá-las à própria experiência. A visão de pesadelo das crianças é, provavelmente, mais devida a uma associação dos Orixás com monstros televisivos (japoneses?) do que com o Diabo bíblico. O Policial careta decide que não gosta de Candomblé quando confirma a sua suspeita de que é “coisa de veado” (perdõem-me pela expressão). O guarda crente elabora uma teologia sincrética capaz de fazer entender a diversidade da experiência religiosa.
Todas essas apropriações são formas particulares de construir a experiência cotidiana. Não são simplesmente formas de resistência a uma visão hegemônica já que eles que não são conscientes de se opor a nenhuma visão oficial. Não são tambem, “apropiações” instantâneas, como as surgidas do intercambio mercantil. A apropiação mercantil (a “mercadoria” como forma de troca) cai facilmente, como falamos anteriormente, na hibridação, isto é na superposição de valores. Essa hibridação é resultado da impersonalidade do intercambio mercantil, no qual o valor do objeto de intercanvio e reduzido a uma equivalencia, que permite ao produtor e consumidor manter-se independentes e formar valores diferentes não necesariamente relacionados, sobre a mercadoria.
O tipo de apropiações que estou descrevendo pelo outro lado, não nascem da hibridação, como a mercadoria, mas de uma relação cotidiana, estendida sobre o tempo, personalizada, com o objeto: um valor nascido da intimidade, de uma história comum. O que poderiamos chamar “processos cotidianos de apropiação sensível” são de alguma forma menos conscientes ou explícitos que os outros tipos de relação sujeto-objeto que descrevi até agora. Parecem operar numa dimensão da ação mas implicita e complexa. Se voces pensam nas suas trajetórias diárias, podem achar a recorrência de alguns elementos que se transformam em símbolos pessoais: a cafeteira, um prédio na frente da janela, o banco que vocês passam cada dia chegando a casa, a rádio do vizinho... Pode ser que eles até apareçam arbitrariamente nos seus sonhos, fiquem implicados na sua história pessoal, empacotados na sua memória, aquirindo significados pessoais que ninguem mais poderia desdobrar, virando atores da sua vida.
Essas apropiações cotidianas são um tipo de relação entre objetos e sujeitos que vai muito além dos conflitos entre experiência estética, mercantilização, iconoclastia e fetichismo político, porque são relações personalizadas que se desenvolvem no espaço e no tempo, na vida cotidiana. Experiência estética, mercantilização, iconoclastia e fetichismo político são visões que definem o objeto como signo geral e são concorrentes, até contraditórias. Na experiência cotidiana do habitante do espaço público, do transeunte, essas visões aparentemente tão diversas podem ser assimiladas em perspetivas particulares que mudam com o tempo. Se por um lado os objetos públicos, e os monumentos em particular, parecem as formas mais explícitas e objetivadas de imposição de um discurso, de uma hegemonia, de um poder, por outro lado, o fato mesmo de serem públicos torna esses objetos extremamente vulneráveis às viagens particulares do habitante da cidade, muito mais abertos aos prazeres da imaginação, às vezes, nas formas mais irônicas e absurdas. Que político, que artista teria imaginado que os Orixás do Tororó seriam vistos como monstros guerreiros, transexuais ou anjos caídos? E ainda assim, como poderiam evitá-lo?
Conclusão: tempo, fetiches e monumentos
Com o tempo, é bem possível que os Orixás do Tororó se transformem em parte das memórias pessoais de muitos baianos, adquirindo uma gama de significações e possibilidades que não podem ser previstas aqui. E também pode acontecer, como acontece com muitos monumentos, que passem despercebidas para a maior parte dos transeuntes. Voltei no Dique de Tororó dois anos depois da minha pesquisa inicial, em 2003. Falei com seu Raimundo, também conhecido como Jacaré, um antigo boxeador que aluga barcas para os turistas. Seu Raimundo foi o líder de uma associação de moradores que tinha como objetivo a proteção ecológica do Dique, depois da reurbanização do Dique. Um exemplo, portanto, do estímulo á cosnciencia da cidadanía que esse projeto poderia representar. Mas a associação, nessa data, praticamente tinha desaparecido, por falta de interesse, seja dos vizinhos ou das instituições. Ele também se queixa da diminuição da segurança e do policiamento, e como resultado o parque está sofrendo a ação dos vândalos.
Por exemplo, o painel na beira do Dique, explicando cada Orixá, foi pixado. A Prefeitura pegou o painel para limpá-lo, e nunca voltou. Quem foram os vândalos que fizeram a pixação? Ninguem sabe. Raimundo me apresentou um dos faixineiros do Parque que podería saber alguma coisa. O faixineiro é filho de santo, e Raimundo faz brincadeira com ele, dizendo que ele é filho de Logun Edê “ seis meses mulher, seis meses homem”...e ri; parece que essa informação do painel virou uma brincadeira corrente no parque. O faixineiro, timidamente corrige a Raimundo, dizendo que de fato ele é filho de Nana, mas que por cima de qualquer coisa acredita em Deus. Ele também diz que os vândalos provavelmente foram torcedores de futebol saindo de um jogo: o Estádio da Fonte Nova fica do lado do Dique, e muitas vezes os torcedores fazem bagunça e até queimam lixeiras saindo dos jogos. Agora, sem o painel, os turistas as vezes pedem a Raimundo o que é Orixá cada, mais ele não sempre lembra de todos (10).
Que acontecerá com os Orixás? Pode ser que um dia Salvador tenha um prefeito crente e sejam demolidos. O painel já sumiu, vítima do vandalismo de um torcedor, um ato que não pode nem ser considerado iconoclasta (Gamboni 1997). Por enquanto, os Orixás se incorporam na paisagem da cidade, eles se diluem nos reflexos do lago sagrado, viram um pano de fundo, como os antigos monumentos da Independencia e da Abolição. Como falou Bruno Latour(1999:272), o tempo é o maior de todos os iconoclastas.
Muitas vezes, os monumentos desaparecem do imaginário urbano: quando construídos, a idéia é que eles têm que permanhecer como símbolos da cidade ou da nação, orgulho do governo e presente para o povo; as vezes viram objeto de polêmica e contestação; mas depois, gradualmente, ficam sujos, empoeirados, contaminados, pixados, viram parte da paisagem, mais um ponto nas trajetórias cotidianas dos transeuntes. Eles viram fantasmas inofensivos de um passado esquecido.
O Modernismo do século passado tem sido muito crítico com os monumentos e as ideologias que eles incorporam. Vários autores indicaram como a espetacularidade dos monumentos vira invisibilidade na vida cotidiana no longo prazo(Gamboni 1997:51). Lewis Mumford definia os monumentos como uma “mumificação do passado”. Para ele, as pedras dão um falso sentido da continuidade, uma falsa segurança da vida (Mumford 1935:435).
A relação dos monumentos como o tempo é uma questão interessante. Parece como se a aspiração a intemporalidade só proporcionasse uma evocação da morte, aliás uma morte pública: os monumentos estão mortos porque niguem olha para eles...
Poderíamos considerar essa questão em relação ao valor da invisibilidade nos assentos do Candomblé. Monumentos e assentos tem uma relação completamente diferente com o tempo, a memória, e a gente. Os assentos são elementos constitutivos da vida da casa de Candomblé, tanto como os filhos de santo : eles participam dos ciclos de atividade ritual, sendo constantemente alimentados, limpados, enfeitados...Eles incorporam a memoria coletiva da casa de uma forma bem específica, como parte da “pessoa distribuída” (Gell1998) dos iniciados. Mumford estaria totalmente errado nesse caso: as pedras dos assentos, os ota, dão um auténtico sentido da continuidade, uma real segurança da vida.
As pedras dos assentos não se comportam como as pedras dos monumentos. Se as ideologías originalmente inscritas nos monumentos aspiram a eternidade na sua severa solenidade, que paradoxalmente as condena ao esquecimento, a força viva do Candomblé, em contínua transformação vital, consegue preservar a memória fixando-a precisamente num tempo ritual, reativando-a regularmente.
Portanto, quais seriam as diferenças entre as formas de apropriação de monumentos públicos e assentos? A relação entre assentos e iniciados no Candomblé é, como falamos, altamente determinada e determinante. De fato, o assento é propriedade do iniciado tanto como o iniciado é propriedade do assento. É uma relação altamente codificada, e a invisibilidade do assento é constituida precisamente para fomentar essa rigidez, evitando uma exibição excessiva, para permitir uma certa intimidade ao Orixá e perpetuar o segredo que e indispensável para a continuidade do seu misterioso poder. Pelo contrário, o monumento é totalmente visível no espaço público: de fato, a visibilidade é imprescindível para a sua condição de monumento. Poderíamos dizer que se os assentos são índices de uma relação particular entre devotos e Orixás, os monumentos são construídos como símbolos permanentes de idéias coletivas e abstratas, como “A cultura Afro-Brasileira”, por exemplo. Porém essa forma pública é sem dúvida uma das suas maiores fraquezas. Toda a grandeza e a solidez da construção dos monumentos é só pedra e metal morto. O monumento não pode responder as agressões e brincadeiras, e o tempo sempre trabalha contra ele. Os assentos, por outro lado, na intimidade com os iniciados, estão muito mais protegidos na sua integridade e identidade.
Ninguém, de fato, pode controlar as formas nas quais a gente se apropia dos monumentos nas suas trajetorias quotidianas, as vezes em clara contradição como os seus objetivos iniciais. E com o tempo, essa abertura é cada vez maior.
Pode ser, portanto, que o monumento se autonomize das intenções iniciais que o fundaram, que ele manifeste uma resistência a essas intenções. Nessa sentido, podemos achar a “agência” do objeto, o que ele faz pensar, faz dizer, faz fazer, como ele é re-apropriado, não só como uma extensão da agência da pessoa distribuida dos seus criadores, mas na sua particular relação como o tempo e o espaço, e a resistência que essa relação faz evidente.
Essa definição da agência dos objetos é radicalmente diferente da hipótese de Gell, para quem os objetos tem agência só como delegados dos humanos, que atribuem neles uma intencionalidade, uma mente. Para Gell, dizer pessoa distribuída é a mesma coisa que dizer mente distribuída. Eu defenderia, pelo contrário, o que Gell define como uma teoria “externalista”(11), na qual reconhecemos a agência na prática social – independentemente de se vem de uma “mente interior” ou “alma”. Mas indo más longe de Gell, eu não acho que uma aproximação “externalista” precise da noção de “mente exterior”. De fato não acho que seja preciso falar de “mentes”, nem de “psicologia intencional” para falar de agência ou simplemente de ação. Em certos casos, a agência das coisas não resulta do fato que elas tenham uma mente e uma intencionalidade, mas da evidência da presença física delas, na sua relação com os humanos. Não é por que as coisas tem mente, mas por que elas tem corpo, e esse corpo é radicalmente diverso do corpo humano, que elas podem participar na ação social em formas radicalmente diferentes dos humanos.
Nesse sentido é importante destacar a “irredutível materialidade” ou “territorialização” do monumento, para usar os termos de Pietz (1985:12). Objetos como os monumentos tem uma relação absolutamente diferente com tempo e espaço que os humanos. Eles são fixos e, tendencialmente, imperecíveis. Eles podem sobreviver aos governantes que os construíram e ao seu contexto original, perdendo completamente o sentido ou incorporando sentidos novos. É nessa materialidade, nessa obstinada presença, onde as vezes encontramos a agência das coisas, a sua resistência a serem reduzidas a símbolos dos nossos valores, ou delegados da nossa pessoa.
Com o tempo, pode acontecer que os Orixás do Tororó sejam reapropiados, destruidos, ou simplesmente esquecidos. Quem sabe? Si as pedras falassem...
NOTAS
(1) “As esculturas representando os Orixás(...) enriquecem a paisagem natural na medida em que são entidades místicas ligadas a natureza” “Dique de Tororó”, A Tarde, 29/3/1998.
(2) “provides the space in which disinterested citizens may contemplate a transparent emblem of their own inclusiveness and solidarity, and deliberate on the general good, free of coercion, violence, or private interests” (Mitchell 1990:35).
(3) Comunicação pessoal, março 2000.
(4) Assim na Petição Legal contra o pastor que chutou a santa podemos lêr “ O Pastor em questão ofendeu a Madre Pátria, na luta contra a escravidão, a saga da nação Afro-Brasileira, a reverência a humildade, o respeito, a pobreza, a orígem das cores da bandeira, o patrimônio cultural brasileiro, e as forças armadas ( citado em Kramer, 2001:28)
(5) Comunicação pessoal, março 2000
(6) Comunicação pessoal, maio 2000
(7) Comuinicação pessoal, novembro 1999.
(8) Comunicação pessoal, janeiro 2001.
(9) Comunicação pessoal, janeiro 2001.
(10) Comunicações pessoais, julho 2003.
(11) Gell discorda desta perspetiva “externalista”, partindo de uma perspetiva cognitiva, segundo a qual todas as culturas tem uma idéia de “mente” – todos os humanos reconhecem o comportamento social como o resultado de representações mentais na cabeça dos outros(Gell 1998:127). Aqui só posso dizer que não concordo como esse axioma cognitivo, e acho perfeitamente possível explicar a ação social a partir de uma teoria da prática, sem fazer referencia a “intenções” e “mentes”.
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Outras fontes (Jornais)
Jornal A Tarde
Correio da Bahia
Tribuna da Bahia