Entre lampejos, entrevemos uma luz no fim do túnel: impressões sobre a 54a Bienal de Arte de Veneza.
Com curadoria de Bice Curiger, a 54a edição da Bienal de Arte de Veneza abriu ao público no último mês de junho. Organizada sob o tema ILLUMInations, esta edição procura explorar o cruzamento de elementos tanto do passado quanto do presente: de um lado articula um assunto clássico ligado à cidade de Veneza (ILLUMI – em referência à luz na pintura veneziana), de outro busca reafirmar a pertinência global deste evento ao trazer a tona – em referência à presença das representações nacionais – o próprio conceito de nação (Nations). Deste modo, o projeto articula-se a partir da tentativa de iluminar (alegoricamente) as diversas conotações que compõem o entendimento de territórios e comunidades contemporâneas, intencionando explorar tais conceitos quando considerados em relação às esferas culturais que compõem o campo artístico contemporâneo.
Entrada Pavilhão internacional nos Giradini Publici, onde a mostra internacional da 24a Bienal de Arte de Veneza se inicia. Foto: Beto Shwafaty
Em seu texto introdutório, a curadora esboça certos questionamentos a respeito do modelo de funcionamento das bienais, apontando de forma um tanto vaga para a necessidade de explorar certas ‘potencialidades adormecidas’ deste modelo, como também para a necessidade de ‘desafiar algumas de suas convenções já estabelecidas’. De outro lado, encontramos no texto introdutório escrito pelo presidente da Bienal, uma descrição sobre o evento que o caracteriza como um momento para ‘articular novos ares’. Para tanto o presidente utiliza a seguinte metáfora:
“a Bienal é como uma máquina de vento. A cada dois anos ela sacode florestas, descobre verdades escondidas, e dá força e luz a novas ramificações, enquanto fornece uma perspectiva diferente para ramos já conhecidos e troncos antigos (...) A Bienal é uma grande peregrinação onde as vozes do mundo, que falam a nós de seu e de nosso futuro, reúnem-se nas criações dos artistas e no trabalho do curador.”
Encontramos assim, nos textos introdutórios, uma certa expectativa de renovação – expectativa que devemos dizer, esta cada vez mais ligada a esta tipologia de evento artístico (Bienal) – que atue sobre um território sociocultural e econômico ao mesmo tempo específico e local, espelhando também um sistema global e circunscrevendo assim um território dentro de um sistema. Aqui, nos deparamos ainda com a idéia de que a Bienal deve ser o ponto de convergência, a arena primeira de negociação e discussão sobre o (futuro) papel a ser assumido pela cultura e pela arte num mundo globalizado. Mas se a considerarmos como um evento efêmero, realizado a cada dois anos, qualquer constatação sobre o futuro parece nascer já datada, ou ao menos com data de expiração já determinada pela próxima edição.
A curadoria afirma ainda, em seus enunciados iniciais e segundo estas perspectivas ‘renovadoras’ que é necessário verificar quais valores devem ser salvaguardados e quais descartados neste amplo campo cultural. Tal responsabilidade existe de fato em eventos do porte de uma Bienal: como um conglomerado maquínico que atua hoje mais do que nunca sob a lógica de um grande corpo institucional contraditoriamente fugaz e que ao mesmo tempo busca regular (e por que não disciplinar ou normatizar) uma certa temporalidade e espacialidade, instaurando para os discursos que sustentam o funcionamento do próprio sistema que lhe suporta, diretrizes tanto subjetivo-culturais quanto políticas e econômicas. E neste contraditório jogo auto-referencial, aquilo que se afirma almeja tornar-se norma, para que em muito breve seja substituído pelo próximo cânone, pela próxima ‘tendência renovadora’.
É deste modo que o tom quase messiânico com que por vezes o ‘poder da arte’ nos é apresentado pelos textos inicias (tanto curatoriais quanto institucionais – arte é comparada a uma ‘peregrinação’ em trecho do texto) parecem afirmar a capacidade da arte em responder aos diversos problemas que se apresentam no mundo atual. Porém, tal peregrinação, como afirmado no texto institucional, não encontra de fato a luz esperada na materialização e espacialização da mostra. Ao percorrermos os espaços e obras curadas por Curiger, torna-se evidente o descompasso entre os conceitos presentes nas premissas curatoriais e a articulação das obras enquanto mostra.
As premissas curatoriais parecem servir aqui apenas como embasamento para um discurso vago e desconectado sobre a potencialidade da arte em ‘iluminar caminhos para o mundo e formar comunidades’ que na maioria dos casos referem-se apenas a própria comunidade artística participante de uma esfera específica do sistema cultural contemporâneo e global. Uma vez que a noção de Estados Nacionais, de territórios, bordas e fronteiras persistem como assuntos problemáticos – por vezes materialmente articulados e presentes nas políticas cotidianas, e por outras vezes desaparecendo no sabor da voracidade dos movimentos econômicos e políticos que buscam novos horizontes de expansão – torna-se um tanto confuso o modo com que a curadoria articula e especializa suas preocupações e diretrizes, que embasada pela idéia de nações busca tecer aproximações entre a diversidade do sistema da arte contemporânea com noções como comunidade, coletividade, bordas, fronteiras e o papel do ‘artista como um outsider’.
O projeto curatorial desta Bienal recorre então à artifícios já conhecidos e amplamente institucionalizados (ou seria melhor dizer canonizados?) por esta tipologia expositiva: um projeto que fundamenta-se a partir de um eixo temático central, de onde tudo se irradia de modo muitas vezes literal; um discurso curatorial que apóia-se de um lado em um cânone e/ou referência do passado para buscar ‘iluminar o presente’ (porém sem atualizá-lo); e por fim uma tentativa de articular noções estéticas e auto-referênciais do campo artístico contemporâneo funcionando mais em níveis de representação do que de ação ou participação em relação às esferas socioculturais e geopolíticas endereçadas anteriormente pelas próprias premissas curatoriais.
Fica evidente assim que muitas das escolhas curatoriais tenham sido principalmente influenciadas pela ‘ampla’ experiência editorial da curadora, que parece buscar na edição de sua proposta expositiva um ponto de equilíbrio entre esferas do sistema artístico (hoje marcadamente um mercado global) e seus setores críticos – e talvez ai esteja um fator que defina a sensação de descompasso: ambas as esferas estão desconectadas. A mostra torna-se alusiva (e senão acrítica) sobre o atual movimento de extrema mercantilização de temas e preocupações político-sociais por setores diversos da indústria cultural, não conseguindo problematizar a noção de nação em face às rápidas mudanças globais nos campos político-sociais. Como em nenhum momento a ‘comunidade artística’ é explorada enquanto uma comunidade nômade, atravessada por vetores sócio-politicos e econômicos diversos (e em escalas trans-nacionais), todos os problemas e contradições que tal proposta traz parecem evaporar na materialização da mostra, e os conceitos de nação e comunidade parecem funcionar ao final apenas como um dispositivo retórico para o projeto curatorial.
E como um possível confronto crítico não se estabelece de forma concreta na produção desta exibição, os questionamentos sobre a função das bienais propostos pela curadora não ganham definição clara. Apenas a memória de que as bienais de arte possuem uma genealogia compartilhada às feiras mundiais internacionais emerge da fusão entre o enunciado curatorial e sua respectiva materialização, que neste caso apresentam-se improdutivamente conflitantes.
Preocupações Sócio-Culturais
Como já apontado, a presença de preocupações socioculturais no enunciado curatorial é de difícil percepção no decorrer da mostra. E tal fato evidencia uma crescente e relativa tendência do campo artístico em apresentar uma espécie de ‘responsabilidade social anexada à suas produções’, que na maioria dos casos se faz presente mais em nível textual e representacional (discursivo) do que de fato em níveis funcionais e produtivos. Assim, instaura-se o descolamento entre as intenções enunciadas e suas possíveis traduções em ações concretas, que apenas aludem às dimensões sociais e políticas presentes no enunciado.
Entretanto, as preocupações relativas à idéia de nações apresentam-se tanto pertinentes quanto desafiadoras se observadas frente a uma situação mundial (e Européia) que hoje enfrenta uma crescente onda de movimentos políticos conservadores (e senão tradicionalistas e populistas, por vezes de extrema direita), como também são atuais em face às recentes revoluções populares em países Árabes, do Oriente Médio e no Norte do continente Africano. As relações entre convívio social, aceitação cultural, redes de produção de subjetividade, migração, religião e regulação territorial que estão implícitas na idéia contemporânea de Nação são então possíveis linhas mestras para questionar e refletir sobre esta 54a edição da Bienal de Veneza, uma vez que a mesma elege este campo contemporâneo como um dos principais elementos conceituais para articular sua produção.
Também chama a atenção a afirmação sobre a idéia de nação, que parece ser considerada nesta Bienal a partir de um ponto de vista mais próximo do âmbito artístico e distante de considerações mais amplas (e tradicionais) sobre o tema. Sob esta leitura, a idéia de nação é colocada como uma forma de explorar o potencial da arte em compor novas formas de comunidade e em negociar diferenças e afinidades que poderão servir como modelos para o futuro das sociedades. A exploração destas perspectivas nacionais de forma mais ampla, como colocado pelos enunciados desta Bienal, implicaria uma articulação tanto das possibilidades atuais em exercer liberdades individuais e coletivas em campos sócio-culturais, como demandaria também refletir sobre a arte e suas conexões à esferas culturais constituintes de grupos e comunidades diversas. Neste caminho, uma observação sobre a natureza dos poderes coercivos presentes em qualquer sistema sóciopolítico (e cultural) nacional, poderia instaurar uma reflexão sobre como certas dinâmicas de fragmentação sociocultural influenciam subjetividades contemporâneas, e ainda, permitiria explorar dinâmicas relativas às formas de autonomia construídas por certas comunidades (artísticas ou não) e como estas se manifestam em construções tanto materiais quanto visuais. Nesta direção, a mostra apresenta trabalhos interessantes que chegam até a esboçar ligações produtivas com esta proposição – transcendendo a mera representação ou alusão à preocupações sociais – mas em geral, é difícil realizar a conexão entre grande parte dos trabalhos com o esquema proposto pelas questões curatoriais.
Talvez a curadoria tenha optado por correr menores riscos ao procurar articular suas questões através de certos trabalhos que operam majoritariamente em níveis representacionais, apostando assim em uma construção expositiva que em muitos momentos baseia-se em linearidades espaciais, literalidades e ilustrações conceituais. Sem apresentar grandes desafios ao espectador, a falta de conexões com que as obras são apresentadas minam as expectativas criadas pelo enunciado curatorial. A curadoria parece naufragar quando não explora as contradições de seu próprio enunciado, e neste caso com conexões pouco claras, os espaços desta bienal tornam-se monotonamente consensuais.
Talvez uma abordagem que trouxesse luz sobre as narrativas que foram deixadas de lado, descartadas pela história oficial da formação (recente) das nações e suas culturas poderia ser um starting point mais produtivo, um caminho talvez pertinente para explorar os temas propostos – ao invés de apenas contabilizar a noção de comunidade como uma ilustração da liberdade com que certos artistas (uma pequena parcela) esboçam uma relativa liberdade pessoal, que se traduz na criação de universos privados e pessoais. Uma vez que o projeto não se expande e nem ao menos explora os movimentos entre centros e bordas do sistema artístico, e ao não refletir sobre as tipologias de comunidades que tal sistema forma, a linearidade e consensualidade da mostra enfraquecem as aspirações éticas e culturais presentes em seu enunciado. Este movimento, ao final, parece querer apenas recuperar a idéia romântica do artista como um nômade ou ‘cidadão do mundo’. Uma outra contradição com o qual nos deparamos reside na extrema literalidade com que certas obras utilizam a luz, e se relacionam deste modo ao termo Ilumi.
Tais literalidade e problemas enfraquecem o projeto curatorial, configurando-o obviamente como uma mostra bem produzida mas que não responde às suas perguntas iniciais: não constitui ou articula de forma clara a noção de comunidade e nem executa ou estimula as funcionalidades de uma coletividade; não responde (ou traz novas reflexões a respeito) sobre possíveis funções de uma bienal; e nem tenciona o que poderiam ser alternativas ao papel do curador e dos artistas dentro das dinâmicas globalizadas do atual sistema artístico-mercadológico internacional.
Uma luz do passado
Tintoretto, A Última Ceia (1592-1594).
Colocado no início da mostra (após um trabalho de luzes que oscilam como um luminoso abstrato, de autoria do artista Philippe Parreno) a escolha de Tintoretto, como um marco histórico, é articulada também de forma literal. Do modo como foi abordado, Tintoretto não nos oferece nada mais do que um reforço ou validação histórica ao enunciado curatorial, pois não delineia um horizonte claro de onde se possa problematizar de forma mais transversal as preocupações apresentadas pela curadoria.
Os trabalhos do pintor parecem funcionar como um tributo à tradição local e pictórica veneziana, com seu simbolismo arcano cristão, sua luminosidade e perspectiva expressivas e seus espaços elaborados segundo uma extrema teatralidade. Apresentado como o ‘pintor da luz e de perspectivas acentuadas’, Tintoretto poderia nos oferecer muito mais a respeito das preocupações entre bordas, outsiders, comunidades e nações presentes nos tecidos cotidianos. A luz que trazem suas pinturas não reside na representação direta destas mas sim na acentuação de contrastes, um método de construção pictórica que ocorre através de negativos e contrastes, na formação de áreas cujos tons escuros (ausências de luz) reforçam outras onde tons claros marcam pontos chave de atenção na pintura.
Essas tensões e contrastes pictóricos poderiam ser talvez um outro ponto de partida para refletir sobre as relações de visibilidade e invisibilidade (social, política, cultural) ou mesmo sobre as dinâmicas (em muitos casos antagônicas) que definem hoje as relações nacionais. Assim, esta aparente falta de foco com que a curadoria articula seus interesses entre passado e presente parece trair a articulação metódica e inovadora do pintor Italiano. No clima controlado e à meia-luz de sua sala de exibição, Tintoretto parece estar fora de escala, deslocado e isolado.
Para-Pavilhões
Esta Bienal também procura empregar artistas na produção de espaços expositivos, denominados nesta edição de para-pavilhões. Em certos momentos os para-pavilhões apresentam-se como esboços interessantes ao que poderia ser uma maior confluência e diálogo de produção espacial da mostra com as obras dos artistas, com o espaço público que esta define e com a comunidade que a visita.
Porém, como uma possível forma de desafiar certas convenções – como pretendido pela curadoria – a articulação destes espaços não apresenta características desafiadoras ou inovadoras, tornam-se ilhas previsíveis tanto em níveis espaciais quanto funcionais. Os para-pavilhões, mesmo que sejam uma boa intenção, permanecem dentro de um registro bastante tradicional de espaços de arte (ainda que criados por artistas) mantendo em grande parte formas e funções tradicionais enquanto displays espaciais e expositivos.
Para-pavilhão ‘The Tree’ de Oscar Tuazon (Giardini), 2011. Foto: Beto Shwafaty
Alguns lampejos
Mas se a curadoria parece não conseguir articular de forma clara as conexões e preocupações que introduz com o tema ILLUMInations, deixando o espectador por vezes (e literalmente) no escuro, algumas obras e artistas conseguem apontar interessantes direções. Por exemplo, o para-pavilhão de Song Dong que reconstruiu a casa de cem anos de seus pais chineses (um espaço que abriga nesta bienal trabalhos de Yto Barrada, Frances Stark e Asier Mendizabal) articula um interessante espaço de relações históricas, econômicas e até inter-culturais. Merece também destaque o video Nacht und Nebel do artista israelense Dani Gal, no qual o artista pediu que os atores se identificassem com os policiais palestinos que, durante uma certa noite e em segredo, espalharam as cinzas de Adolf Eichmann no Mediterrâneo. Esta reconstrução, de um episódio paralelo a um fato histórico, baseada em uma entrevista com um sobrevivente do Holocausto, é sutilmente manipulada pelos próprios atores, que interpretam suas partes em um silencio quase opressor.
Song Dong Para-Pavilhão, Arsenale, 2011. Foto: Beto Shwafaty
É também interessante o trabalho apresentado pelo artista Irlandês Gerard Byrne, Case Study : Loch Ness (Some possibilities and problems)’ 2001-2011, um conjunto de trabalhos baseados em estratégias documentais que articulam-se em diversos níveis de leitura (como pro exemplo um filme em 16mm, um conjunto com desenhos, esculturas, som, fotografias e textos) que combinados dão visibilidade a uma pesquisa em forma de reportagem sobre a lenda do famoso monstro do Loch Ness – como forma indireta de explorar aspectos socioculturais ligados àquela região.
Outro destaque fica para a instalação da artista Italiana Elisabetta Benassi. A obra consiste em nove leitores de microfilme, que mostram o verso de fotografias jornalísticas, sem mostrar a imagem principal. O trabalho é sutil, apresentado sob pouca iluminação e com uma ‘trilha sonora’ mecânica (devido ao movimento mecânico dos mecanismos de funcionamento dos leitores de microfilme). Todos estes elementos conferem à instalação uma atmosfera que oscila entre uma câmara de evidências e uma máquina-arquivo histórico, reforçando a sensação de narrativas alternativas perdidas na memória e de mecanização da produção cultural e histórica.
Elisabetta Benassi : The Innocents Abroad, 2011. Foto; Beto Shwafaty
Já a obra apresentada pela artista Amalia Pica Venn Diagram (Under the spotlight), 2011 talvez seja um dos trabalhos que melhor incorpora (e de forma quase literal talvez) o binômio apresentado com a proposta de ILLUMInations. Na instalação desta artista argentina que vive em Londres, dois spots de luz colorida projetam em uma parede seus focos de luz que sobrepõem-se um ao outro, criando assim uma imagem que remete ao diagrama de Venn. Abaixo desta projeção luminosa o espectador pode ler um texto que refere-se à proibição do ensino deste modelo pedagógico nas escolas argentinas durante o período de ditadura militar, por ser considerado potencialmente subversivo. O trabalho de Amália traz à luz a natureza bizarra desta ação política do regime militar, revelando o medo inerente sobre o potencial subversivo da linguagem visual abstrata, geométrica e matemática (neste caso o Diagrama de Venn) e no poder da representação de idéias (quando dois ou mais grupos estabelecem contato) quando apresentados em esferas pedagógicas. No trabalho, o uso de cores que fundem-se para criar uma terceira (ao centro) faz alusão às potencialidades de contato, transformação e coexistência de grupos diversos.
Amalia Pica: Venn diagrams (under the spotlight), 2011. Foto: Beto Shwafaty
Pavilhões Nacionais e suas Representações
De forma até inesperada, diversas representações nacionais respondem de forma tanto complexa quanto instigante ao enunciado e às perguntas colocadas pela curadoria. O pavilhão Dinamarquês com a mostra coletiva Speech Matters, que reflete sobre diversos aspectos políticos ligados seja à representação nacional quanto sobre a liberdade de expressão; ou ainda o pavilhão Inglês cuja contribuição ‘cenográfica’ da instalação de Mike Nelson conecta as cidades de Veneza e Istambul. Ao conectar estas situações do passado, Nelson evoca as ligações históricas, econômicas e culturais entre estas duas localidades, nos lembrando do papel destas tanto como rotas de comércio quanto pólos culturais: Cidades-Estado (micro-nações) que abrigaram uma infinidade de comunidades, dinâmicas políticas e trocas culturais.
Mike Nelson: I, IMPOSTOR, Instalação Pavilhão Inglês , 2011. Foto: Cristiano Corte (press material).
Ainda, com certa dose de melancolia, o pavilhão Russo – cuja curadoria ficou a cargo do filosofo Boris Groys que intitula-se Empty Zones – enfoca o trabalho do Collective Actions Group, existente desde 1976 e atuando em diversas frentes de trabalho (ações urbanas, rurais envolvendo abordagens diversas sobre a situação sociocultural da Russia). Formando uma espécie de pequena mostra retrospectiva, essa representação vale-se de diversos dispositivos documentais que apresentam registros de ações do grupo, estabelecendo uma atmosfera reflexiva e documental entre tais ações e os excessos atuais do sistema artístico Russo (baseado principalmente em Moscou). Em seu interior encontramos uma faixa com a seguinte frase: "It's just like anywhere else here – only the feeling is stronger and incomprehension deeper."
Collective Actions. Slogan-1977. Região de Moscou (Leningradskaya railway line, Firsanovka station) 26 de Janeiro, 1977. Documentação Fotográfica. Cortesia dos autores e Stella Art Foundation, Moscou. (material de imprensa)
Thomas Hirschhorn 'Crystal Resistance' - vista da instalação. Pavilhão Suíço, 2011. Foto: Beto Shwafaty.
Já no pavilhão Suíço encontramos uma outra instalação imersiva: Cristal of Resistance, de Thomas Hirschhorn, que simula uma caverna de cristais com aparatos e imagens oriundas do universo da indústria cultural e de massa (incluindo aqui grande parte do jornalismo contemporâneo). A extensa instalação que ocupa as diversas salas do pavilhão mostra-se convincente, chocante e instigante. Sempre no limiar entre a espetacularização de tragédias contemporâneas e a radicalidade artística, o controverso trabalho de Hirschhorn consegue colocar um questionamento marcante sobre as indústrias do espetáculo que move-se em todas as direções e sobre todos os assuntos, evidenciando uma esfera de consumismo cultural sempre crescente. Também vale destacar o Pavilhão Francês, com uma irônica obra de Christian Boltanski, que de modo também imersivo coloca o espectador entre imagens quase fantasmagóricas (rosto de recém-nascidos) e estruturas metálicas/industriais, assinalando a produção em série de um futuro incerto.
Christian Boltanski ‘Chance’ - vista da instalação, Pavilhão Francês. Foto: Beto Shwafaty.
É numa esfera de contradições que podemos localizar o programa de palestras e performances de Dora Garcia, projeto da artista para o pavilhão Espanhol, intitulado O Inadequado. Neste, Garcia inclui dentro da Bienal uma infinidade de grupos, movimentos e produções ditas ‘marginais e inadequadas’ a certos parâmetros atuais. A artista explora a idéia de comunidades a partir de um abordagem que as considera como grupos formados majoritariamente por indivíduos, que partilham certas condições materiais, que ocupam territórios, articulam linguagens, histórias, e até mesmo ancestralidades que manifestam-se em aspectos imateriais, e estes são considerados então participantes (de forma antagônica muitas vezes) da construção tanto de corpos culturais quanto de movimentos político-sociais. A contradição produtiva que surge desta ação de inclusão, que ao circunscrever práticas lidas como inadequadas em um evento de grade visibilidade (dito mainstream), nos leva a refletir se esta situação conseguirá manter a potencialidade crítica e autônoma presente em alguns destes ‘incluídos’ ou se apenas os inserirá em um sistema sempre ávido por novidades. Entre o perigo da normatização e a potencialidade advinda dessa grande visibilidade, teremos que esperar o final deste programa para tecer maiores e mais profundas conclusões sobre seus efeitos e estratégias.
Outra interessante representação fica a cargo do pavilhão Polonês, que apresenta obras da artista Israelense Yael Bartana. A artista apresenta sua trilogia de filmes relacionados à diáspora judaico-polonesa. Na ocasião desta Bienal temos a premiére do terceiro e último episódio desta trilogia, onde o ativista e personagem central dos filmes de Bartana é assassinado – fato que torna-se catalisador de uma fictícia unificação que culmina na formação de um movimento político real (que pode ser melhor acessado no catalogo que acompanha mostra intitulado A cookbook for political imagination). De modo ambíguo, a obra fílmica de Bartana expande a questão sobre os limites entre o documentário e a ficção, entre modelos utópicos de recuperação histórica que confrontam-se com os limites e potencialidades de um ativismo real.
Ainda merecem destaque os pavilhões Norueguês cujo programa intitulado State of Things traz um painel de apresentações incluindo filósofos e pensadores como Jacques Ranciere, Vandana Shiva, Judith Butler, Eyal Weizman, entre tantos outros. Também vale lembrar a interessante iniciativa de um dos eventos colaterais, Call the Witness, que traz um amplo panorama (e arquivo de vídeo on-line) sobre as situações problemáticas das comunidades ciganas e nômades na Europa; assim como um outro interessante exemplo pode ser visto no trabalho da artista Mariana Christofides, representante de Chipre, que explora metodologias históricas, taxonômica e as liga em produções que criam interessantes observações de cunho histórico-sociais.
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Mesmo que a curadoria não consiga criar caminhos para responder às suas próprias perguntas iniciais, ainda assim parece possível refletir sobre a real possibilidade do campo artístico em tornar-se uma das possíveis ‘arenas que aponte caminhos e direções para o futuro’ – mesmo sendo um campo de antagonismos e contradições. Se o considerarmos como parte da esfera pública e sócio cultural de um determinado território e conectado a uma rede global, fica a questão de como explorar metodologias alternativas e novas dinâmicas que permitam à arte participar de formas mais ativas dos processos externos a sua própria esfera de funcionamento.
As preocupações esboçadas inicialmente em ILLUMInations são pertinentes ao cenário cultural global atual, seja como um questionamento e auto-reflexão sobre o cerne do sistema artístico contemporâneo, ou na exploração das bordas e dos ‘outsiders’ que tangenciam e até sustentam este. Porém, para atingir qualquer grau de sucesso que não seja apenas momentâneo e mídiatico, parece ser necessário que tais enunciados encontrem no campo real, na materialidade e funcionalidade de práticas tão diversas quanto antagônicas, exemplos que possam funcionar não só como representações ou ilustrações de dinâmicas reais, mas produções e práticas culturais que atuem em níveis também funcionais, que instaurem ou mediem novos parâmetros e regimes de invenção, que sejam capazes de instaurar espaços e temporalidades capazes de diferenciar-se de certos parâmetros socioculturais, que mesmo sendo aceitos e vigentes são mais do que nunca passíveis de crítica e revisão.
Retornando a questão inicial levantada pela curadoria: ‘a que serve uma bienal e qual o papel dos artistas e curadores’, e apesar de não encontrar respostas claras que pudessem iluminar tais pergutnas, podemos refletir sobre esta indagação partindo em um caminho que se coloca claramente diante de nós: para afrontar estas questões deveríamos iniciar refletindo de forma pertinente e mais duradoura sobre esta tipologia de evento cultural (o modelo Bienal); partindo de sua genealogia histórica e atualizando o fato desta estar ligada desde seu início às feiras mundiais – eventos circunscritos no ápice de um período de industrialização tecnológica, expansão global e modernização cultural.
Assim, me parece que esta pergunta se coloca em meio à uma contradição: deve a bienal continuar a existir segundo um modelo e dinâmica de funcionamento que se baseia nas feiras mundiais e que aponta para interesses globais distantes de seus contextos de existência – o que a coloca hoje talvez demasiadamente sob forças de mercado? Ou deve esta re-elaborar-se de modo a encontrar novas formas e dinâmicas para constituir-se como um espaço público, de debate, um fórum produtivo talvez? Se novas formas de diálogo e produção forem permitidas e apoiadas (como em certos pavilhões nacionais desta edição), o futuro deste campo sócio-cultural que denominamos Arte Contemporânea poderá talvez ter uma maior participação em outras esferas sociais, e não apenas no interior das bordas institucionais que constringem o potencial de muitos de seus projetos culturais.
Como superar então certas bordas, e iluminar estas novas idéias ou áreas escuras de nossa atualidade? Talvez olhar de fato para as bordas e para os outsiders não somente do campo artístico mas de uma zona cultural mais ampla e ao mesmo tempo local. Parece ser esta uma tarefa não só de responsabilidade das instituições, mas das próprias esferas sociais que as apóiam (e que nós, produtores, críticos, curadores, público e artistas sustentamos). Ao que tudo indica, talvez seja mais produtivo uma série ampla de pequenas luzes, acesas de modo sustentável, conectadas e distribuídas em rede, do que um enorme flash momentâneo que nos cegue.
Bice Curiger é curadora da Zurich Kunsthaus (desde 1993) e editora chefe da revista Parkett (fundada em 1984) editora da revista TATE Etc.
O que é uma bienal? Que tipo de audiência pode ser considerada? Qual é o papel do curador?” material de comunicação à imprensa, 54a Bienal de Veneza.
Fazem parte da mostra: A Última Ceia (1592-1594), O roubo do corpo de São Marcos (1562 - 1566) e A Criação dos Animais (aprox.1550).
Espaços criados pro artistas, assumidos como campos de ‘convivo e diálogo’ que possam ser utilizados e ocupados por outros artistas.
O único criminoso nazista executado em 31 de Maio 1962, após ser considerado culpado de crimes contra a humanidade.
Diagramas de Venn são ilustrações ou similares (diagramas) utilizados para criar visualizações relativas à teoria dos conjuntos ou em relações lógicas e matemáticas entre grupos.
Cidades nas quais o artista realizou obras em bienais passadas, respectivamente em 2001 e 2003.