A potencialidade pura da pintura de Rodrigo Andrade
Gedley Braga, artista plástico e coordenador do Laboratório de Conservação e Restauro do MAE/USP, comenta a exposição de Rodrigo Andrade apresentada na Galeria Marília Razuk: “A pintura atual de Rodrigo Andrade revela um ‘estado de pintura’, ou melhor, uma ‘potência pura de pintura’. Mas em que sentido pode-se dizer que isso ocorre?”
Gedley Braga
gebraga@usp.br
Fotos: Rodrigo Andrade
60 x 80 - 2005
1. Rodrigo estabelece a tela em branco como o lugar onde a pintura pode e deve ocorrer. Até aí, nada de diferente, pois praticamente todas as pinturas (pelo menos conceitualmente) ocorrem ou deveriam acontecer em uma tela. Mas no caso de Rodrigo, a tela é revelada também como uma “potência de pintura”, em seu estado bruto, ou quase bruto, pois ele utiliza aA tela em seu momento “pré-pintura”, ou seja, apenas com a base de preparação branca para receber a tinta. Uma situação que acrescenta um dado a esse raciocínio é quando Rodrigo utiliza a parede diretamente (seja a da extinta galeria 10,20x3,60 – “Passagem” / 2003 – ou de um site specific do tipo “Lanches Alvorada” – 2001). Nesses exemplos, talvez ele esteja mais próximo de uma visão Duchampiana: sua tela não é um “grande vidro”, mas ela foi abolida totalmente, como se a “potência da pintura” se resumisse à presença física das massas de tinta em um espaço “ultra-real”. Talvez ele queira dizer que, se fosse capaz, inventaria um mecanismo que anulasse a gravidade e sustentasse a materialidade de suas cores pairando no ar.A pintura atual de Rodrigo Andrade revela um “estado de pintura”, ou melhor, uma “potência pura de pintura”. Mas em que sentido pode-se dizer que isso ocorre?
2. As tintas ou os “campos de cor” são apresentados de um modo em que fica evidente a necessidade de exploração das três dimensões. Nós temos as clássicas dimensões que determinam as formas de representação bidimensional (altura x largura), acrescentadas de um caráter enfático de profundidade. Poderíamos até dizer que essa profundidade também nos traz a questão física do peso da matéria. Isso pode até ser verificado no atelier do artista, em alguns trabalhos e ensaios de Rodrigo, quando o peso dessa matéria acaba produzindo deformações em seu suporte: a tela típica nunca foi pensada para suportar tal quantidade concentrada de matéria. Isso também levanta a questão de que a potencialidade proposta pelo artista não se resume a um mero efeito visual. Se fosse este o caso, ele poderia falsificar as dimensões de suas massas de tintas utilizando cores semelhantes confeccionadas em materiais mais leves e até mais duradouros (pois não se deveA esquecer que essa pintura já traz, em seus próprios princípios fundamentais, um caráter problemático para o desenvolvimento e o questionamento da preservação da obra de arte contemporânea).
3. Apreende-se que dois ou quatro campos de cor são colocados na tela em espaços cuidadosamente (e intuitivamente) pensados. Nessas três dimensões citadas, essas massas de cores seriam suficientes fisicamente para cobrir toda a extensão do espaço branco, caso fossem estendidas com o instrumento tradicional da pintura: o pincel. Esse espaço em branco, teoricamente vazio, é sempre, em extensão de dimensões, muito maior do que aquelas áreas onde acontecem os “campos de cor”. No caso de Rodrigo, esses campos são preparados delimitando-se o espaço previamente com máscaras e, em seguida, preenchidos com a tinta na cor selecionada com a utilização de espátulas ou rodos de serigrafia.
A ênfase na delimitação desses espaços acaba produzindo o efeito de potencialização da cor em uma terceira dimensão. Esse ato é, em si, a questão mais importante para causar a sensação de “ponto de potência” dessa pintura. Quando se presta bastante atenção, observa-se que cada cor tem sua própria terceira dimensão. Algumas são mais espessas que outras e nos conduzem para uma gama infinita de possibilidades de relações especulativas (quer o artista queira ou não).
Não é ao acaso que isso ocorre. Rodrigo Andrade é um dos integrantes daquela geração que usou e abusou da matéria na década de 80 do século XX. Ele explicita em seu novo trabalho que essa paixão pela pintura ainda pulsa, mas de uma maneira mais madura e controlada. Em um movimento de entropia, ela se recolhe para seus campos, cuidadosamente conduzida pelo artista, esperando uma nova possibilidade (ou probabilidade?) de expansão. Mas essa possibilidade, tal qual nos é apresentada, é apenas um ato de suspensão, como se prendêssemos a respiração diante de um acontecimento espetacular iminente. Uma esfinge pairando e nos espreitando, no entanto sem exigir que qualquer enigma seja decifrado. O grande mistério, talvez para sempre “indecifrável”, é simplesmente a sua própria aparição misteriosa. Basta o nosso estado de admiração diante de um outro espaço proposto para a pintura (uma “quarta dimensão”?), talvez nossa própria mente, talvez um não-lugar qualquer. Mas, com certeza, uma experiência inesquecível e sem arrependimento. É como se estivéssemos em uma loja de materiais artísticos (e quase todo artista é fascinado por aquelas caixas, potes e tubos de tintas, pincéis e telas de toda qualidade e diversidade). Aquela sensação de que ali naquele local estão, potencialmente esperando, todas as obras de arte que ainda podem ser feitas.
São Paulo, maio de 2005.
Gedley Braga é artista plástico e conservador/restaurador. Coordena o Laboratório de Conservação e Restauro do MAE/USP. É Mestre e doutorando em Ciências da Informação e Documentação, ECA/USP.