Pablo Helguera
Parte do meu relato para a segunda mesa do Seminário Internacional sobre Educação, Arte e Política, da 29a Bienal de São Paulo, a convite do Fórum Permanente, levantou uma série de perguntas quanto ao projeto da Escuela Panamericana del Desasosiego (Escola Panamericana do Desassossego), apresentado por Pablo Helguera. Essas perguntas foram em seguida encaminhadas ao artista, que prontamente se dispôs a respondê-las. Penso que elas esclareçam pontos importantes do projeto, para além de sua apresentação no Seminário ou mesmo do que se pode consultar em seu site (www.panamericanismo.org). Mas é sobretudo o modo como a Escuela sustenta tais perguntas – ou o modo como limites e possibilidades das relações entre educação, arte e política podem ser concretamente pensados a partir de seu exemplo – o que de mais relevante se tenha aqui.
Cayo Honorato: Como se posiciona o projeto diferentemente da crítica institucional (que não se assume como parte da instituição), ao mesmo tempo em que se pretende uma prática ilimitada à instituição, situada em um “território expandido”? Ou seja, como ele ao mesmo tempo faz e não faz parte do mundo da arte?
Pablo Helguera: A meu ver, a crítica institucional (da forma como se manifesta nas obras de artistas como Andrea Fraser, Fred Wilson, Michael Asher, entre outros) se caracteriza por estabelecer polarizações entre o indivíduo (o artista) e a instituição (que pode ser o museu, as forças governamentais, etc.) que são tanto de confrontação como posições inalteráveis. Ou seja, o posicionamento tradicional da crítica institucional não admitia uma fluidez ou fusão entre ambos os conceitos (o artista é sempre o artista, questionando a vileza ou a opressão dos aparelhos sociais instituicionais). Posteriormente, foi se formando o consenso de que essa confrontação é um tanto artificial, na medida em que as instituições são realmente entidades constituídas por indivíduos e que o constructo do artista é tão institucional quanto a noção de museu. Em outras palavras, temos que assumir que, na medida em que estamos dentro do discurso da arte, todos somos institucionais. Minha leitura dessa equação propõe que se vá um pouco mais adiante, no sentido de que nossa identidade como artistas, produtores culturais, ou como se queira chamar, é fluida e não se limita a estar dentro ou fora de uma instituição, mas sim a uma negociação permanente com nossos distintos papéis sociais. Esse foi o caso da Escuela Panamericana del Desasosiego, que ocasionalmente era uma obra de arte (sobretudo quando se apresentava no interior dos limites de uma instituição cultural), mas que ao mesmo tempo podia funcionar como um espaço de debate político (quando estava em praças, muita gente pensava que éramos um partido político, uma missão religiosa, e até pensaram no Paraguai que era uma ótica).
Em suma, o problema é que temos uma obsessão por definir o que é um processo, um artista ou um projeto de maneira permanente, quando na realidade a inconstância do contexto social, histórico, etc. os altera constantemente e dessa maneira um projeto pode estar ao mesmo tempo dentro e fora da arte, dependendo de quem o perceba. Essa é, para mim, a verdadeira definição do que chamo de “campo expandido” da pedagogia-arte.
CH: Diferentemente do hedonismo da estética relacional, com que “substância” ele pretende transformar a arte?
PH: Para dar um exemplo – e admito que generalizo um pouco aqui – os eventos sociais de Rirkrit Tiravanija, os pratos que cozinha dentro de galerias e espaços afins (que costumam em geral estar associados à estética relacional) enfatizam a sociabilidade, mas não costumam ter um objetivo para além de que a experiência final seja essa mesma sociabilidade. Existe nessas obras uma estrutura criada pelo artista, mas costuma ser uma estrutura aberta na qual o espectador participa, mas sua experiência não os leva ativamente a refletir de forma crítica sobre sua própria realidade. Na realidade, é o contrário da crítica institucional, que por sua vez busca crime e castigo, mas essa busca de “experiência pura” (para chamá-la de alguma maneira), a meu ver, é problemática, no sentido de que é um sistema demasiadamente aberto, e não se sabe se proveitoso à reflexão.
A pedagogia se dedica a sintetizar ambos os impulsos – tanto o da sociabilidade quanto o do sentido crítico. Por isso, tanto para mim como para outros artistas de minha geração, a busca de estruturas pedagógicas ao se fazer obras é uma maneira de gerar um contexto que possa ser lúdico, ter elementos performáticos e abertos, mas que ao mesmo tempo exija um pouco mais do espectador, convertendo-o em verdadeiro interlocutor e, em alguns casos, em colaborador na investigação coletiva de um tema. Essa aproximação, sendo o caso de se estabelecer uma relação construtiva de comunicação com um público, é o mais lógico para mim, ainda que também admita que é um impulso mais idealista, que propõe a transformação do interlocutor, bem como a de si mesmo no processo.
CH: De que maneira ele se tornou independente da narrativa canônica do século XX, dispondo uma plataforma supostamente não hierárquica de diálogo?
PH: Muitos projetos pedagógicos de artistas costumam tomar o formato de uma escola – ou seja, de uma escola como obra. No entanto, a maioria desses projetos são de escolas de arte ou sobre arte – isto é, convertem-se em missões de doutrinação dos estudantes na religião da arte. Como tais, aqueles que são os iniciados (outros artistas ou quem for mais versado na teoria do século XX) acabam sendo os que dominam a dinâmica do diálogo. Como resultado, esses projetos acabam utilizando a noção de escola como instrumento doutrinador que apenas cumpre o objetivo de autojustificar a existência do cânon artístico hegemônico.
Desde o início do projeto da EPD, isso ficou claro para mim, e então decidi que, se ia realizar uma escola ambulante pelas Américas, o último que faria era oferecer aulas de arte. Isso não quer dizer que artistas não foram incluídos nos debates – ao contrário – mas quando se falava de arte, falava-se antes dos fatores sociais, históricos e políticos que condicionavam a produção artística no contexto local. Em outras palavras, falava-se sempre de um tema sobre o qual todos tivessem autoridade para comentar, que era seu entorno imediato. Em Mérida se falou de turismo cultural, em El Salvador se falou dos efeitos da Guerra Civil na sociedade (e por extensão, na comunidade artística), em Mexicali se falou da dificuldade em se viver no meio do deserto (e por extensão, de como se fazer arte no meio do deserto). Era fundamental que o tema da conversação tivesse esse tipo de horizontalidade a todo momento – e dessa maneira eu também aprendia.
CH: Considerando que o percurso do projeto foi definido sobretudo pelas instituições que se dispuseram a recebê-lo (universidades, museus, centros culturais, galerias; ainda que a Escuela tenha sido eventualmente montada em praças públicas, como em Calgary, Puebla, Tegucigalpa ou Assunção), como ele foi capaz de envolver o público de não iniciados?
PH: Antes de mais nada, embora o projeto tenha sido abrigado por vários espaços institucionais, esse não foi sempre o caso. Em alguns lugares como no Panamá, Nicarágua, Paraguai, Cartagena, entre outros, foi abrigado por artistas em suas casas e o projeto foi adiante graças a seus esforços. Depois, é preciso atentar ao que está sendo referido por “instituição”. Por exemplo, Mujeres en las Artes de Tegucigalpa é uma instituição bastante pequena, com uma equipe de três pessoas, que no entanto fez um esforço enorme para apoiar o projeto, ou seja, essa foi realmente uma tarefa de indivíduos e não de instituições governamentais. Em Vancouver, estive em um espaço tocado por dois artistas. De fato, na América Latina o projeto foi rechaçado pela maioria dos museus locais, que não consideravam como “arte” o que eu estava fazendo. Em El Salvador, onde esse foi o caso, fizemos o projeto em um pequeno colégio. Em Puebla, um artista organizou tudo, conseguiu apoios e licenças da cidade e de uma universidade, mas não tivemos um anfitrião institucional. Assim, em função de que o projeto tinha um caráter muito evidente de “happening” (isto é, a maioria das vezes eu não era visto como um artista, e sim como um louco cruzando pela Rodovia Panamericana), essa era já uma via de entrada para dialogar com outros públicos. Finalmente, os programas públicos que o projeto oferecia – mesa redonda, oficinas e cerimônias públicas – estavam abertos a qualquer um, e foi aí que se deu a possibilidade de incluir uma maior quantidade de públicos não vinculados à arte.
CH: Qual é seu “conteúdo”, para além de “gerar conexões entre diferentes partes das Américas” ou de permitir o intercâmbio de discursos, sobretudo, entre artistas e outros agentes culturais?
PH: Na página do projeto [www.panamericanismo.org], há uma lista extensa dos tipos de debates que se deram em cada cidade, que são o que eu chamaria da substância, ou do conteúdo, do projeto. Os temas variaram enormemente, desde a imigração até a culinária, mas sempre com o propósito de entender a localidade de cada um com esse tema, de se ver dentro dessa realidade e também fora dela.
CH: Para que não somente faça perguntas, qual é sua “hipótese” sobre o panamericanismo? Antes, qual é sua intenção: questionar o reconstruir essa noção?
PH: Da mesma maneira que não me interessava ditar aulas de arte dentro da escola, tampouco quis chegar a expor uma hipótese sobre o panamericanismo, uma vez que me parecia que fazer isso era criar uma imposição, que causaria um impacto negativo no diálogo. O que me interessava nesse momento era saber como cada país, cada cidade, cada comunidade, define-se em relação ao tema da nação, da região, do hemisfério. E isso sim buscava provocar uma reação quanto ao tema, porque eu chegava com uma ficção pan-nacionalista (o panamericanismo) e me interessava saber o que as pessoas pensavam a respeito. Pessoalmente, os constructos nacionais sempre me pareceram uma ficção, mas ao mesmo tempo são ficções que constróem realidades. O mesmo ocorre com o panamericanismo: é uma construção talvez caduca e falida, igualmente evocada por libertadores e ditadores, mas que bem ou mal exerceram algum tipo de impacto em nossa história coletiva, de modo que reviver essa noção e desfilá-la por aí se converteu em uma maneira de provocar respostas, de obrigar muitos a que se definissem a favor ou contra ela.
CH: De que maneira ele se previne de ser tomado como simples performance? De que maneira se afirma como arte? Por que, em vez de projeto artístico, não se propõe como um trabalho de formação política?
PH: O projeto se apresentou como projeto artístico sobretudo por necessidade – já que é o mundo de onde provenho, teria havido pouca probabilidade de realizá-lo a partir de outro âmbito. Dito isso, creio que nenhuma obra de arte possa escapar de ser descartada como simples exercício de arte. Mas posso dizer que, no decorrer de sua realização, a pergunta sobre o projeto ser ou não ser arte começou a perder importância – curiosamente, foi uma das perguntas que ninguém me fez no decorrer de todo o trajeto. Agora, quanto ao porquê de não ter se proposto como projeto estritamente ativista, não teria havido inconveniente que o fosse, mas se houvesse sido assim, suspeito que isso teria limitado o projeto.
A ambiguidade do âmbito da arte permite que se apresente propostas abertas a todo tipo de interpretações, e particularmente neste caso isso permitia que se pudesse ter uma discussão abertamente política, ou literária, ou absurda – como estávamos dentro de uma obra, tudo valia. Por exemplo, o simples exercício de se escrever um discurso panamericano de forma coletiva era uma ideia que tinha que ser introduzida como jogo, mas era um jogo que no seu transcurso terminava sendo levado completamente a sério, e por fim o texto resultante era completamente sério e unânime. Acredito que se o projeto tivesse estritamente sido um “stunt” ativista, teria sido difícil convencer os participantes a elaborar esses textos. Era a aparente e inofensiva insignificância da ficção artística o que às vezes podia funcionar como uma entrada à discussão de temas mais sérios.
CH: Que uso ele faz do método de Paulo Freire, sem mais mencionar sua perspectiva revolucionária (que era a sua nos inícios dos anos ’60)?
PH: Quando concebi esse projeto, em 2002, meu conhecimento da obra de Freire era muito limitado. Ainda que a Pedagogia do Oprimido tenha sido um dos primeiros textos que utilizei na primeira manifestação da Escuela em Zurique, em 2003, não havia estudado a metodologia de Freire. Construi o projeto de forma quase intuitiva, utilizando minha experiência como educador em museus e a maneira com que, através de exercícios de diálogo, constroi-se significado em grupos. Foi uma surpresa para mim descubrir, tempos depois, que várias coisas que eu vinha tentando fazer com as diferentes comunidades, em termos de gerar “conscientização”, era algo com que Freire há muito já havia lidado e resolvido. Embora tenha me sentido profundamente ignorante, ao mesmo tempo creio que, sem sabê-lo, havia seguido pessoalmente o processo mesmo da “conscientização” de que Freire nos fala, pois usando minha própria experiência cheguei às conclusões de que nos fala, e seus textos basicamente afirmaram minhas vagas intuições. Hoje, já consciente das contribuições da pedagogia crítica, para mim o desafio é saber como ela pode revitalizar a arte – não mais como a arte pode revitalizar a pedagogia. É um trabalho necessário, que creio valha a pena.