Ivo Mesquita
A revista Número inaugura com a SETE uma série de entrevistas com duplas de críticos, historiadores ou curadores, com o objetivo de refletir sobre e contrapor diferentes modos de atuação, posicionamentos e visões acerca da atividade da crítica, para além dos preconceitos e idéias feitas.
Número: Como foi a sua formação?
IvoMesquita: Tenho que dizer que eu fico incomodado quando sou apresentado como crítico. Eu tenho um certo entendimento do que seja um crítico, mas não é meu caso; até porque minha formação é de historiador. Eu fiz jornalismo, sou da 3ª turma da ECA... Tinha escolhido outra carreira que era a diplomacia, mas para isso eu tinha que fazer uma graduação, além de ter que ter 25 anos. Foi fundamental na minha formação ter crescido no interior; e como meu pai assinava muitas revistas, a minha formação de jovem foi muito através das revistas – Manchete, Cruzeiro, Life, Cinelândia...Não tinha televisão.
Um dia decidi me inscrever pra ser monitor da Bienal, e fui trabalhar na 10ª Bienal [1969]. Depois comecei a fazer um curso de arte, na Escola Brasil, onde fiquei por 3 anos. E lá eu me dei conta que passava mais tempo na biblioteca, portanto, alguma coisa estava errada, apesar de gostar tanto de pintura. Resolvi voltar pra ECA e o Zanini veio a ser meu orientador, fui até a qualificação - daí eu "puxei o carro"... Meu projeto era sobre a Bienal, algo como "A Bienal na imprensa brasileira". Era uma forma de conciliar o jornalismo com da história da arte, usando a imprensa como fonte primária. Fui então convidado para trabalhar na Bienal, como assessor do Villares, o presidente na época. Lá uma coisa ficou claríssima pra mim: o que é a instituição, como ela é vista e o que de fato ela é, e o que ela poderia ser, e porque não era. Tornei-me o responsável pelo arquivo da Bienal, que é um material maravilhoso e me fez refletir: o que é patrimônio para uma instituição que não tem acervo? É a memória dela, é a sua história. Com relação à Bienal, a história da arte que se escreve sobre ela é sempre reiterativa... Mas a Bienal é mesmo o lugar do que foi visto e de como foi percebido no Brasil. Por exemplo, como Oteiza [prêmio de escultura na 4ª Bienal] é um cara que vai influenciar o Amílcar de Castro, e o Serra... Ou entender por que - outro exemplo- vieram cinqüenta e quatro Pollocks, a sete mil dólares os mais caros e ninguém comprou. O viés tem que ser esse.
N: Quanto às diferenças entre crítica e história, como você vê essa relação entre elas, já que não se considera crítico e tem uma formação de historiador?
IM: Eu acho que a formação de historiador me deu método, critérios, parâmetros e também referências... Acredito que, ao fazer uma curadoria, conto uma história, apesar de que o que fica muitas vezes e a história do juízo de valor, claro, mas acho que faço isso a partir da minha experiência do objeto. A impressão que tenho do crítico é que ele sempre tem um corpo de idéias que trabalha a priori ao objeto. Não que ele vá aplicar aquilo sobre o objeto, mas ele já tem aquilo pré-concebido. Enquanto procuro fazer um esforço no sentido contrário, como afirmo no texto Cartografias, que é estar sempre descobrindo um outro.
N: Você foi estudar fora do Brasil? Porque ficamos curiosos em entender como você estabeleceu sua atuação internacional...
IM: Não, não estudei fora. Nesse período em que trabalhei na Bienal, que é algo realmente internacional, tinha uma rede. Os curadores em geral só queriam ir para Paris, Nova York, Londres e, quando chegava na hora de ir pra América Latina, ninguém queria ir, ou receber as pessoas vindas desse pedaço do continente, eu é que recebia. E foi aí que tudo começou...e foi muito bom, porque no final dos anos 80, quando perdi o emprego na Bienal, o que tinha era um "network" na América Latina... Quando saí da Bienal, me convidaram para ir para o Canadá. Havia um museu em Winnipeg que queria criar uma rede de trabalho com a América Latina. Assim, fizemos um projeto juntos, que durou cinco anos, chamado Cartografias. Era um projeto grande, a exposição foi ótima, fez uma boa carreira. Mas para mim a Bienal é o espaço, ela me trouxe a prática... pois nunca tive muita paciência de ler, nem de escrever, nunca fui disciplinado.
N: Como você aliou o seu interesse pela diplomacia no trabalho com a Bienal?
IM: A diplomacia era fundamental! Ela vinha de uma fantasia que eu tinha com jornalismo... Achava que ser diplomata era bom, porque viaja a cada três anos, muda de país...[risos] Sempre gostei de mapas, atlas, narrativas de viajantes... quando você mora no interior, cidade pequena, o cinema é a ponte, mas também as histórias que te contam... É nesse sentido que eu acho que o crítico tem algo de afirmativo que é estranho a mim. Minha estratégia é mais deixar as coisas falarem, juntar coisas, mas num grande esforço para que elas permaneçam à deriva.
N: Quais seriam os autores que te formaram, que foram importantes para você?
IM: Li muito Francastel e hoje em dia ninguém fala dele. Mas pessoas que foram importantíssimas pra mim: a figura do Zanini foi fundamental. Foi um mestre. A Aracy Amaral, ela é a pessoa que abriu esse caminho da América Latina... A Annateresa Fabris é uma professora muito estimulante, exige muito do aluno, traz o rigor. Fiz um curso em Ouro Preto, com a Miriam Ribeiro de Oliveira, sobre o barroco no Brasil, que foi uma revelação pra mim, uma oportunidade de ter um entendimento muito forte do que seja história da arte, que história da arte a gente pode ensinar, que história da arte a gente pode pensar. Esses foram os professores, dos que me lembro agora, que me marcaram. Assim como aqueles que estimulavam nosso lado da imaginação - porque eu acho fundamental, quando se trata de artes visuais, acreditar no que você está vendo, não apenas no que se diz sobre aquilo. E de autores que eu adorei, evidentemente alguns historiadores, como Georges Duby. Gostava também da história das grandes narrativas, não tão crítica... Outro foi Huizinga, principalmente o Homo ludens e o Outono da Idade Média. Panofsky também foi importante, pois o estudo da iconografia é fundamental... Gombrich... Os clássicos, Argan, seguramente... E Mário de Andrade, Oswald...que, acho, que só fui entender um pouco mais tarde.
N: E o Pedrosa?
IM: Também foi um que eu só fui entender mais tarde... não tinha uma história da arte brasileira, se falava pouco disso por aqui. A Aracy Amaral inicia isso de verdade...o Zanini também, com outro viés. A coisa estava começando a se sistematizar...O livro da semana de 22 Aracy é de 1972, entendeu?
N: Quando um curador escolhe os artistas para uma exposição, de certa maneira emite juízos sobre esses artistas. Você não coloca alguém que você não gosta...ou coloca? Tem sempre um juízo crítico, se é que podemos dizer isso, por trás, ali..
IM: Eticamente não é recomendável colocar alguém de quem não se gosta do trabalho. É, mas aí é que está. Para mim a questão é entre modernidade e pós-modernidade. Diria que trabalho com levantamento de sintomas, entendeu? Voltando a questão da “latino-americanidade”: do texto Cartografias, que é de 92, 93, mudaram algumas coisas. Lá há toda uma estratégia de texto, que parte de uma pergunta: "por que esses caras querem uma exposição de latino-americanos"? Deixar tudo aquilo flutuando, falar de cartografia, é não dar a eles a capacidade de dizer "ah, não, é latino-americano", de fazer com que as coisas entrem nas “categorias”. Cartografias é uma estratégia também, no sentido de deixar as coisas à deriva. Isso era importante, afirmar que cada um é regente de si próprio... Hoje em dia eu já defendo a existência, sim, do “latino-americano”, mas por uma outra razão... Por exemplo, faria uma outra exposição latino-americana, mas com outros artistas...
N: Tem um juízo crítico nisso?
IM: Não...é mais por uma estratégia do discurso curatorial...eles já não serviriam pra essas coisas. Mas o projeto foi muito importante. Eu fui parar no Bard College por causa do Cartografias.
N: Sobre a representação brasileira na Bienal de Veneza que você levou em 1999: como se deu a escolha por Iran do Espírito Santo e Nelson Leirner?
IM: Em 99, 2000, estava se consolidando uma coisa de que todo artista brasileiro era herdeiro de Lygia Clark e Hélio Oiticica. E de onde isso saiu? Você só pode ser herdeiro, ou algo parecido, se você conviveu muito com a obra...e a primeira exposição grande da obra deles foi em 1985... Eu achava que o Nelson Leirner é tão importante quanto, como acho a Regina Silveira tão importante quanto...nesse no sentido de terem formado artistas. Acho que a Carmela Gross e o Evandro Jardim também, são fundamentais na formação de outros artistas... Pois para mim o importante é ensinar a olhar. Mas voltando ao assunto, a idéia era um pouco mostrar que havia alternativas. Então, como o Iran do Espírito Santo tinha sido aluno do Nelson Leirner...
N: Mas pensando na questão dos estereótipos, que você pretende evitar, como fica apresentar a Procissão, do Leirner, sozinha? Não há o perigo de reforçar um certo estereótipo de brasilidade?
IM: Sim, mas eu achava que isso o trabalho do Iran corrigiria. Mostrar como que isso dá um salto ali na obra do Iran. O que aproxima os dois é a ironia, o humor...penso que não seja tão importante olhar para a forma das coisas, mas para o que os artistas estão falando, a que eles se referem. Quanto a essa "brasilidade", a idéia é um pouco pensar o contexto de Veneza. Veneza é uma disputa de nações, de nacionalidades. Isso, historicamente, esteve sempre presente. Há um dispositivo lá que é da origem da cidade, e que é porque os países que expõem investem tanto, que é uma coisa que eu falo no texto do catálogo: "tem que fechar Veneza e botar pavilhão pra todos os países do mundo". Todos. Uma "Disney de arte" [risos]... Isso não é ruim... O vexame é o Gilberto Gil passar cinco dias lá, dar dois shows e não aparecer no pavilhão que o ministério dele pagou. Ainda mais que ele é o relações-públicas no governo Lula... A exposição, em suma, era uma tentativa de mostrar outras linhagens possíveis no Brasil, num fórum internacional. Um pouco respondendo a essa questão Oiticica-Clark, essa idéia de que todo mundo é descendente deles na arte contemporânea brasileira.
Mas voltando à questão do latino-americano, depois de cinco anos eu já estava de saco cheio! Um dos meus filmes favoritos é o Casanova do Fellini, porque o Casanova escrevia para aqueles senhores vendendo as suas qualidades de conhecedor de armas, de bibliotecário, arquiteto etc e os caras só queriam pagar ele para trepar, para ver ele trepar. O Casanova contado pelo Fellini é uma metáfora dele, Fellini, e do artista. Você tem um monte de qualidades e só te pedem para fazer aquilo! Os Estados Unidos se deram conta, no final dos anos 80, pós Ronald Reagan, tardiamente em relação à Inglaterra que já sabia disso desde os anos 70, dessa questão do multi-culturalismo, do pós-colonialismo, das miscigenações, das migrações. E estava claro para mim que quando eles queriam que eu falasse sobre América Latina, estavam falando de latino-americanos nos Estados Unidos, para eles era uma tentativa de excluí-los da realidade, da cultura americana e remetê-los a seus ancestrais latino-americanos. Essa é a perversidade. Então quando o MoMA faz a exposição dos latino-americanos, não está preocupado com os latino-americanos, está preocupado com o eleitorado deles lá ns Estados Unidos, no fato de que a segunda língua que se fala no país é o espanhol, eles são não sei quantos milhões lá dentro, e que estão excluídos economicamente, então do ponto de vista do simbólico ele põe lá … mas eles não dizem a sua história é aqui, a sua história é "lá". É mesma questão da ambigüidade do "african-american", se você é "african" você não é "american" ou você é só meio daqui. E cadê o euro-american? [risos] É um pouco ingênuo hoje, mas na época era isso que precisava ser dito. Havia também a idéia do non-western, que ainda hoje existe mas era mais pesado. Se aqui é "non-western", onde é o western é que eu não sei! [risos] Olha no mapa, o hemisfério ocidental é a América, são as Américas, é o último limite. E aí essa coisa difícil que você tinha que dizer todas as vezes: América latina, católica, direito romano, Iluminismo, sei lá, a gente é até melhor do que vocês nisso!!! Achava que tinha que ir contra essas coisas, não preencher esse lugar, não assumir, não fazer, dizer: não vamos entregar!
N: Você já afirmou que hoje já não há mais lugar para o curador independente. Isso quer dizer que é o mercado que dá as cartas?
IM: E agora, daqui para frente, vai ser "curadores, tchau tchau", agora é "eles"... Curador, é bom achar um emprego e se amarrar em uma instituição e ficar porque curador independente dançou, agora é só para galeria...
N: Mas voltando a questão da América Latina, você afirma que existe uma ligação entre o Barroco e a “latino-americanidade”?
IM: Dei um curso uma vez que explorou essa idéia. Para mim Barroco é uma estratégia intelectual, é um modo de pensar, é um fundamento filosófico. É Padre Vieira. Os escritores da América espanhola, do sec. XVII, XVIII, são teólogos, são filósofos. Não é a forma, é essa pecha de não se entregar, de não se revelar, de estar sempre dando uma volta, procurando uma outra saída. Extremamente sofisticado, então, nesse desenho, essa coisa do desenho. Mas ao mesmo tempo extremamente racional, porque tem uma estrutura. Não há uma categoria Barroco, mas há sim uma sensibilidade. Existem diferenças culturais que são intraduzíveis, inexplicáveis, que é melhor deixar de lado, é melhor não entrar. Que é essa coisa do mundo hoje, árabes e xiitas e não-xiitas, católicos e não-católicos. É por isso que acho que a curadoria é uma atividade que tem que lidar com a alteridade e essa coisa da alteridade é que é o mais legal de tudo. Porque não é sobre o outro, é sobre você. A intolerância está em pensar que é sobre o outro. Você não sabe do outro, você só viu lá o que se espelhou de você lá, mas eu não sei o outro.
N: Você citou bastante a escola de curadoria do Bard College (nos Estados Unidos, onde Ivo leciona)... Como ela funciona?
IM: A Bard tem o primeiro programa acadêmico americano de pós-graduação em curadoria. A gente aceita "studio-program", artistas, mas só se a comunicação for muito boa. Tem gente de literatura, literatura-comparada, filosofia, museum studies… Como todo mestrado americano, é muito voltado para a profissionalização. Justamente eu que não tenho título nenhum dou aula lá porque sou um profissional que tem uma experiência na qual eles estavam interessados. Aqui [no Brasil] precisa que se faça mestrado e doutorado, já me fizeram ofertas indecorosas... a gente pega os pontos do teu mestrado, você traz um livro, a gente monta uma banca e você vira doutor. Mas eu não quero ser doutor!!!!!
Lá os alunos são muito bons, os que vêm da história da arte são muito bons em análise iconográfica. Pois o curso de história da arte nos EUA forma o expert. Tem que ter lido tudo, visto tudo e decorado. Ao passo que o nosso jeito de estudar história da arte e estudar os estilos, o pensamento, não tem essa coisa iconográfica. Tem um lado disso que é muito legal. Mas é curioso porque uma questão importante para a curadoria é a imaginação visual. O modelo nosso puxa mais para isso. O modelo deles vai para o rigor. Um grande confronto é esse. Os alunos latino-americanos têm umas teorias ótimas, escrevem, tudo com metáforas! Os americanos não conseguem nem ler aquilo, os professores ficam subindo nas paredes. Porque a gente fala com metáforas, são línguas metafóricas as latinas.
Um defeito desse curso é que na escola de curador, só curador fala. Eles são especialistas, não misturam gente, o que é um problema também. A maioria dos alunos vira diretor de galeria. Tem uns que vão trabalhar em instituições, em instituições grandes. Mas chega um momento, nos EUA, nos idos de 80 ou 90, que se você quisesse crescer tinha que fazer um PHD. Agora já não está tão assim, mas os museus também já não são tão bons como eles eram, não estão mais tão exigentes com essa coisa do scholar, da pesquisa. Agora é “vai vendo como dá para fazer render a coleção” e “20 dólares o ingresso”.
Tem um equívoco, o maior de todos, que é ter um raio de uma coisa que eles chamam de tese. O aluno é avaliado mais por ela do que pela exposição que tem que montar ao final do curso. Como a maioria dos avalistas são professores de história da arte, vão direto no texto. Para mim se aprende na prática. Talvez o lugar de formação dos curadores ainda seja os museus. É lá que isso deveria acontecer, nos centros culturais, nos museus, até nas galerias. Pois para fazer uma exposição precisa ficar no espaço, ficar horas olhando...
Agora, o mais chocante da comparação EUA/Brasil é ver, por exemplo, o estado da USP e saber que a elite do país sai de lá e não dão para ela nem cinqüenta centavos… entendeu? É um problema de ordem moral. As PUCs também. E todo mundo que está aí saiu dessas universidades... Mas esse é um problema de ordem moral e aí é outra discussão.
N: O museu seria o lugar para se aprender curadoria?
IM: Eu acho que sim, foi onde eu aprendi, eu aprendi no MAC-USP com o Zanini. Ele obrigava a gente a ir lá e ajudar a organizar os arquivos! A maioria dos alunos do Bard vai para galerias. Porque também ser diretor de galeria lá implica em muitas coisas, fazer press release, lidar com os artistas, saber conversar sobre o que é o trabalho, explicar para o colecionador o que ele está comprando e o colecionador pode querer que você escreva: "anota aí que eu vou levar para casa"! Acho até que tem algumas galerias em São Paulo que têm umas figuras que se aproximam disso. Não todas ainda. Mas é o mercado de arte que consome a maioria desses alunos.
Mas falo para eles também que é mais legal ir para o interior: vai para o interior, pega um museu que vai te valorizar, uma instituição onde você pode crescer… Porque os grandes trabalhos de Nova Iorque já são cartas marcadas, é um rodízio de cadeiras. O MoMA quer um curador, ele manda buscar, não põe anúncio no jornal. E mais, tem uma coisa que é indecente. O MoMA paga mal e diz que paga mal porque você é funcionário do MoMA, você vai ser convidado para fazer muitas coisas...
N: Lá também? Achávamos que era só aqui…
IM: Aqui também. Aqui eu conheço bem, tem lugar que adora esse discurso... No MAC quis fazer uma outra coisa e saiu pela culatra. Eu falei que era importante a filiação institucional, porque era o caso de uma pessoa que estava indo para fora e que era importante manter conosco quando voltasse. Então eu achava que era importante pagar, enquanto a pessoa estava fora, para manter o vínculo. É legal ter ela voltar aqui e é legal porque ela vai estar falando da gente lá. Foi aí que tudo começou...
N: Hoje em dia nem os que estão aqui são pagos...
IM: Aí é outra instância...
N: Mas talvez esteja relacionado com a relutância em profissionalizar... Por que que não temos um curso de curadoria aqui? Talvez não haja mercado.
IM: Tem uma história engraçada. O Júlio Neves [atual "diretor-presidente" do MASP], que é uma pessoa que eu conheço socialmente, na semana do CIMAM [evento que congrega a comunidade museológica internacional] a gente foi lá no MASP… Ele veio nos receber e falou assim: “O Ivo não trabalha com a gente mas vai vir trabalhar aqui”. Na frente de todo mundo. Aí no dia seguinte ele veio, bateu nas minhas costas e falou, "eu quero que você pense em alguma coisa assim". Aí eu disse, "olha, o negócio é o seguinte: eu sou curador, eu só sei chutar. O meu passe você discute com o Marcelo Araújo [atual diretor da Pinacoteca do Estado, onde Ivo trabalha]". É que como a gente não ganha nada, não dá para você só trabalhar em um lugar. Esse é um problema. Mas acho que deveria algum modo das instituições tornarem exclusivos profissionais que estão lá. O MAM decidiu trabalhar com aqueles três curadores, então aqueles três curadores só fazem exposição lá. Pode fazer exposição no Recife, mas não vão fazer aqui em São Paulo em todo lugar, senão todas as exposições têm a mesma cara, são sobre o mesmo assunto.
N: Se a figura do curador independente mudou, agora a instituição precisa valorizá-lo…
IM: E acho que acabou o status do crítico independente também. Porque na verdade, tudo isso começa quando ainda os museus não trabalhavam a arte contemporânea, nos idos de 80. Não havia essa curiosidade, esse boom da arte contemporânea. Então os curadores independentes eram os caras que sabiam dizer quem era quem. Mas hoje em dia é legal ter emprego! Você precisa ter, porque não tem mais esse espaço de independente. Nas bienais talvez, mas as bienais também estão tendendo a pegar de um museu, de outro… Não tem mais, os museus criaram os departamentos de arte contemporânea…
N: Não aqui, né?
IM: Aqui também! É uma tendência.
N: Mas em São Paulo os museus estão justamente esvaziando os seus departamentos de pesquisa e contratando free-lancers, independentes… no MAM mesmo não tem curador.
IM: Mas isso é aqui, porque está nesse equívoco do terceirizado. Isso é um problema de uma deformação da instituição que tem a idéia de que dá para terceirizar tudo, uma visão administrativa do museu, não tem uma visão conceitual ou ideológica do que seja um museu. O problema é que os dirigentes desses museus pagam 45.000 dólares por ano para serem membros do conselho internacional do MoMA. Todos os brasileiros que são membros desses conselhos internacionais de museus pagam. Aí neguinho acha ruim gastar 10.000 reais aqui! Ganham dinheiro aqui e não pagam aqui. Eu continuo insistindo: é um problema moral! Não é que lá fora eles sejam melhores do que aqui. São melhores em algumas coisas, mas eles também têm "pitis", só que dão 10 milhões de dólares para construir um museu novo. Como esses museus que têm banqueiros em suas diretorias podem ter problemas de orçamento? Tem alguma coisa errada mesmo. Seria tão mais simples se, por exemplo, o Itaú adotasse o MAM de uma vez, dos 19 milhões de reais que o Itaú Cultural tem todo ano, se ele desse 5 para o MAM e ficasse com 14… com 5 milhões dava para fazer um programação naquele espaço, porque o espaço é pequeno, não é grande. Não é difícil fazer isso, com um pouquinho de imaginação você faz. O que está errado é a lei aqui, a lei que estimula que instituições privadas trabalhem e que as instituições públicas fiquem à deriva.
Isso também é uma perda de qualidade no país. Porque quando você compara os mecenas de hoje com os mecenas dos anos 40, 50, Guiomar Diniz, Ciccilo, Chateaubriand, Yolanda Penteado, vê que tinham lá os defeitos deles, eram banqueiros do jeito deles, mas tinham um projeto de país. Chateaubriand no fundo acreditava que tinha que ter um museu aqui. E ele foi lá chantagear Deus e o mundo para conseguir fazer e fez. Botou lá um mafioso de diretor, fez todas aquelas coisas, mas ele acreditava. O Ciccilo acreditava naquilo. Hoje não tem projeto, é tão louco que acho que nem projeto pessoal tem. É uma crise, é um desamor ao pais que a gente vive. Acho que é o problema mais grave.
N: E sobre os artistas, como você avalia as suas apostas do passado hoje?
IM: Eu não sei, tem alguns artistas que eu gosto muito. Acho o [Robert] Gober também um grande artista, acho que nunca teve uma exposição dele aqui. É difícil. Ele ficou muito paranóico depois do 11 de setembro, mudou de Nova York… Todo trabalho que eu adoro tem muita coisa afetiva também, sou uma pessoa muito afetiva. Os meus projetos e relacionamentos e coisas passam muito por esse departamento. Eu só tento deixar isso transparente, entendeu? Mas voltando àquela coisa que vocês falaram, que a gente trabalha com o que não é tão interessante, eu acho que isso é muito importante. É um exercício profissional que você tem que fazer. Aconteceu uma coisa comigo, eu sou uma pessoa muito atenta, acho que é porque eu cresci no interior, você fica um pouco caipira, assim, mas tem uma sabedoria do caipira que é interessante.
Politicamente eu tenho umas antipatias na vida, por exemplo, eu sou antimalufista, pode estar tudo bom, mas ele está errado, entendeu? É um princípio. E tem uma artista aqui em São Paulo que é mulher de um desses políticos malufistas. E uma vez, num desses eventos, me tocou num jantar, sentar ao lado dessa artista. Foi uma das conversas mais interessantes da minha vida. Ela é uma pessoa incrível e a maneira como ela se colocou, porque ela sabia quem eu era, e evidentemente ela adoraria que eu fizesse um studio visit para ela, entendeu? Que eu não fiz, mas a conversa foi uma revelação. A gente ficou bons amigos, eu fiquei surpreso. Acho legal você estar aberto para esse tipo de coisa, a surpresa. Eu acho que o que é legal no mundo da gente é a surpresa...
Estive na Bienal de Dakar há dois anos, fui convidado para fazer uma exposição que foi um fracasso! Mas a experiência foi das mais ricas que eu tive, é um lugar que eu quero voltar para ver. De um lado era uma lição sobre o Brasil, porque de uma ilha em frente a Dakar saiam os navios que vinham trazendo os negros para o Brasil. Você anda na rua e você olha e diz "aquele é o seu José, lá do meu bairro, aquela é a Dona Fulana, aquela é a Maria…" As figuras são iguais às nossas. Eu estava com o Mario Cravo Neto e a gente olhava e ficava "aquele lá vai falar português agora, quer ver?”, e era bonito porque a gente identificava não era só a aparência, mas era a gestualidade, a maneira como se relacionam, como se olham. A gente vem de lá, um lado da gente vem de lá.
E foi muito interessante ver porque era uma bienal só para artistas africanos. Havia três artistas cujo trabalho era lamentável, faziam figuras fundidas em acrílico com uns raios, "O homem do futuro"... Mas os três carinhas eram tão animados de estarem lá em Dakar participando da bienal! Não falavam uma palavra de inglês, mal falavam francês, só um dialeto da tribo deles, entendeu? E estavam numa alegria! Foi maravilhoso participar daquilo. Vi trabalhos muito bonitos, alguns muito legais, trabalhos que eu mostraria, mas fiquei pensando que quero trazer esses caras para o Brasil. Porque tinha uma coisa tão linda de acreditar no que estavam fazendo. Era tão legal. E ao mesmo tempo é incrível por que lá também tinha uma mulher que ganhou bolsa Rockefeller e abriu um centro cultural na vila dela. Montou lá uma tenda enorme, um circo, onde os caras mostram os trabalhos. Essa oportunidade de ter esses trabalhos é que eu acho que é a grande revelação. Acho que isso é que é o ganho na arte de hoje, essa coisa da diversidade, das múltiplas possibilidades.