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Fernando Cocchiarale

Em outubro de 2005, durante viagem de estudos e intercâmbio cultural à Alemanha promovida pelo Goethe-Institut de São Paulo, Paulo Sérgio Duarte, Marcelo Araújo, Fernando Cocchiarale, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Rejane Cintrão falam ao Fórum Permanente sobre a possibilidade de termos instituições de arte sólidas no Brasil.

Fernando Cocchiarale examina obra do Kunstmuseum de Bonn

FP - Fernando, o que é o museu de arte hoje, no Brasil e no mundo?

Fernando - Como o Brasil é um país que por tradição tem como modelo o Ocidente, nós somos em uma certa medida invasores ocidentais; nós precisamos nos medir pelos padrões das instituições ocidentais, européias, norte-americanas, etc. Produzimos arte contemporânea, há mais de um século, baseada em padrões que vieram de fora, e, portanto, os modelos de arte brasileira foram feitos buscando os caminhos dos museus de arte internacional. Quanto aos museus do exterior, eu sinto que hoje eles estão interessados em um tipo de discussão que pode ser nova para eles, mas que está muito mais próxima dos nossos esforços, que é a idéia de um museu multi-cultural. O Brasil, por sua própria natureza, é multi-cultural. No entanto, acho que nós ainda não chegamos ao patamar de institucionalizar museus em um nível anterior a esse. Por outro lado, nos últimos 20 anos, houve uma sensível melhora na formação do status técnico dos museus, nas concepções de montagem, na manipulação das obras e na formação de técnicos especializados.

 

FP - E para quem fazemos os museus?

Fernando - Eu acho que há hoje uma discussão muito grande sobre o papel do museu como formador de cidadania e de consciência civil, mas eu discordo disso. Não podemos esquecer que qualquer instituição artística tem que atender, em primeiro lugar, as expectativas da comunidade; não a comunidade de moradores, mas a comunidade artística, de historiadores, daqueles que gostam de arte e querem encontrar instituições que atendam às suas expectativas num mundo de complexidades, sofisticação e profissionalismo de alto nível. Se você agrada ao usuário interessado, você fatalmente já criou condições para expandir essa instituição para o resto da comunidade. Eu não acredito em nivelamento por baixo. Em nome de conquistar o público, ficamos muitas vezes preocupados em fazer programas educacionais, investimos demais em explicações e afastamos os artistas, os estudantes de arte e os historiadores do museu. Se você os afasta, você corta o vínculo do museu com a seiva que o alimenta. Eu acho que temos que começar a pensar também nos principais interessados.

 

FP - Como você vê o museu de arte hoje no Brasil? Algo positivo? Algo que podemos falar bem, divulgar como sendo característico local ou brasileiro? Ou algo que aponte para um futuro mais promissor?

Fernando - Eu não sei. Hoje em dia, com essa explosão de construção de museus pelo mundo inteiro, o Brasil não consegue ficar longe disso. Mas aqueles que poderiam permitir a existência de bons museus, ou seja, o capital e o Estado, não entendem a complexidade da coisa e assinam o ponto criando um monte de museus pelo país, sem dotá-los de edifícios adequados, coleções pertinentes, staff especializado, etc. É como se com isso nós criássemos argumentos que justificassem a nossa sincronia com o mundo ocidental, sem que de fato essas coisas fossem implantadas, porque não há compreensão nem vontade política de investir seriamente, como fez, por exemplo, a Espanha. Eu não falo só do Guggenheim de Bilbao. Valença vai fazer um tremendo museu que é inacreditável. Ao invés de investir na proliferação pura e simples, talvez devêssemos nos concentrar em melhorar as instituições que já existem.

 

FP - Quando falamos de museu no Brasil, nós ressaltamos as crises; mas houve uma melhoria nos últimos anos? Quais as saídas para certas situações que nós sempre encontramos?

Fernando - Eu acho que melhorou. Se eu olhar para o Rio Grande do Sul, Pernambuco, mesmo a Bahia num dado momento, ou Fortaleza, com o Dragão do Mar. Mas existem problemas também. Um deles tem a ver com a precariedade institucional do Brasil, pois estamos em um país onde as pessoas e as relações que elas possuem, quando ocupam um cargo, podem fazer toda diferença ou podem colocar tudo a perder. Se você tem uma gestora casada com um governador de Estado, ela consegue toda a verba necessária; quando mudar o governo e nomearem um doutor em História da Arte para dirigir o mesmo museu, ele vai desabar, porque não tem acervo. E isso é um problema. Por outro lado, a comunidade e os profissionais da área têm hoje um grau elevado de proficiência, informação, exigência e know-how. Eu acho inclusive que se o Brasil tivesse dinheiro, saberia fazer museus bem bacanas. Não há falta de know-how.

 

FP - Que problemas podemos contornar? Há solução para os problemas crônicos como o financeiro, a relação entre o público e o privado? A apropriação de indivíduos de incorporações em nossas instituições?

Fernando - Existem problemas anteriores que até poderiam ser resolvidos. Por exemplo, o desenvolvimento de laços cooperativos sérios entre instituições do país todo, instituições que poderiam trabalhar em conjunto trazendo exposições internacionais, fazendo esforços verdadeiros de articular verbas para baratear custos, mas muitas vezes se comportam como rivais, porque existe essa história de vaidades pessoais ou desavenças afetivas prevalecerem sobre a lógica institucional. Outra questão é a discussão sobre a mudança das leis de incentivo. As grandes corporações, sobretudo os bancos, criaram suas próprias instituições, e como são centros culturais, que não têm coleção, eles acabam transformando os museus de fato existentes em bancos de obras para empréstimo de seus eventos. Talvez um dos mecanismos fosse um dispositivo que obrigasse que metade da renúncia fiscal, que hoje vai para essas instituições, fosse repassada para instituições que têm acervo, numa espécie de compensação. Outro ponto que eu acho importante, se dá na esfera do corpo a corpo; talvez pudesse ser um corpo a corpo mais cooperativo, que seria um pool de museus de uma cidade ou até de um país, por exemplo, o Museu de Arte Moderna do Brasil, que fizesse um trabalho sistemático junto a setores empresariais de várias cidades, no sentido de sensibilizá-los para a importância do investimento cultural. Eu acho que esse é um trabalho de médio e longo prazo, porque é um trabalho de conscientização. Existem vários níveis de possibilidades, e o primeiro deles, eu acho que seria articular instituições que tenham perfil semelhante, seja em cada cidade, seja pensando no país de uma maneira mais complexa. Porque as pessoas ainda tendem a se comportar como se estivessem competindo nas instituições, e isso nós já vimos muito e não ajuda ninguém. Eu sou otimista ainda, acredito no Brasil. Daqui a uns 20 anos as coisas vão estar melhores. Acho que mecanismos como associações de amigos, palestras e debates vão resultar num esforço coletivo de programação. Já essa coisa da apropriação, eu acho realmente absurdo. Você não tem o direito de fazer uma versão doméstica de uma coisa que transborda esse âmbito; apesar dos ocupantes de certos cargos não compreenderem isso. Num país onde não se tem muitas opções de aprendizado visual direto, de contato direto para a pesquisa de uma obra, não podemos nos dar ao luxo de ter um museu entregue às baratas simplesmente porque “virou a sua casa”. Isso é inconcebível. Tem a ver com a precariedade institucional e com a prevalência de vontade executiva, que se superpõe à maquina institucional que deveria quase andar sozinha.

 


FP - Mas como podemos mudar isso?

Fernando - Se houvesse uma articulação maior entre as instituições e troca de informações. Eu acho que quando pegamos um conjunto de instituições que sejam respeitadas na comunidade, na cidade, no Estado, no país, se empresta um peso diferente do que ações isoladas de indivíduos. De nada adianta fazer um discurso que pregue integração, se ele não faz autocrítica. Está na hora de fazermos isso. Por exemplo, porque não existe uma revista ou um jornal que traga a programação dos principais museus do Brasil? Poderíamos ter um mapa das artes, que são relatórios bi-língues feitos nos Estados Unidos. Já conversei com vários galeristas, e vários compradores estrangeiros pegaram aquele mapa no hall do hotel e foram à galeria. Teríamos informação reunida e esquematizada. É claro que divulgar a informação favorece. Mas, na verdade, não é uma ação, mas sim uma rede de ações que precisam estar muito bem articuladas para que essa coisa flua. Para que todos os museus tenham informação sobre todos os outros.

 

FP - Como você avalia a relação entre as bienais e os museus de arte no Brasil, em especial São Paulo e Porto Alegre? Sem esquecer Fortaleza, que apontou para uma Bienal lá, em relação com o Dragão do Mar, não é?

Fernando - Eu não sei se o Brasil, apesar de ser continental, agüenta mais bienais do que já tem, até porque há uma proliferação de bienais no mundo e nós sabemos perfeitamente que as mais importantes são as de Veneza e de São Paulo. A do Mercosul é importante. Eu não posso avaliar, porque nasci junto com a Bienal, no mesmo mês, mas pelo que li sobre isso, sei que a Bienal de São Paulo desempenhou um papel importantíssimo na transformação da cidade no pólo que é hoje em dia. Eu não tenho dúvida que nós também podemos observar isso no caso de Porto Alegre, que tem uma coisa surpreendente, o apoio do empresariado local. Isso é uma coisa digna de nota. E os resultados estão vindo: tem a Bienal (porque acho que a Bienal veio para ficar e a esta altura já está lá) e a Fundação Iberê Camargo. Eu não tenho dúvida de que se a relação é positiva e é costurada pelas elites locais, ela dá certo. A Bienal de São Paulo foi exatamente isso. Basta dizer que se você pegar São Paulo no final do pós-guerra, você tem a criação do MAM, do MASP e da Bienal mais ou menos brotando da mesma fonte. Havia um momento de orgulho empresarial, que empurrou essa coisa toda. No Rio Grande do Sul está dando certo por causa disso.


FP - E também porque na Bienal de São Paulo já tem mais de 50 anos, não é?

Fernando – Ela tem uma história de crises. Na década de 60 quando houve o boicote, a crítica ao modelo das Bienais, etc. Quando eu falei que acho que já está de bom tamanho para o Brasil ter duas Bienais, mesmo com a sua dimensão continental, penso que outros lugares podem ter outras modalidades de eventos que sejam complementares. Não é preciso que cada cidade tenha uma Bienal, porque a Bienal de São Paulo e a do Mercosul são complementares; uma tem a tradição, tem credibilidade universal, e a outra tem criado um papel importante, sobretudo no contexto Sul e latino-americano.


FP - Como você avalia esta iniciativa do Goethe, de organizar uma viagem a instituições de arte na Alemanha? E esta viagem à Alemanha é inspiradora? Há comparações possíveis ou exemplos a serem seguidos? Há pontos de partida para projetos de intercâmbio que fortaleçam a rede internacional?

Fernando – Eu acho importante. Ela resulta da iniciativa de um país que tem um projeto cultural planetário, que dimensiona muito bem a grandeza que o país tem, e que aspira continuar tendo. Quem não dá passos largos, não anda mais do que poucos centímetros. Acho que temos que ser pretensiosos mesmo. Do nosso ponto de vista, ao lado da “humilhação” de certas realidades que vemos aqui, isso é importante, porque acabamos vendo modelos alternativos, propostas de gestão que podem ser até muito avançadas ou polêmicas. Esse tipo de confronto de experiência do outro é muito importante para nós.

 

 

FP - É que geralmente, uma viagem como esta é organizada individualmente, mas é uma iniciativa que traz um grupo de profissionais que representam instituições de arte importantes no Brasil, e que viajam juntos.

Fernando - Tem também aquela coisa da articulação do intercâmbio, porque no Brasil, o Q.I. (Quem Indica) é fundamental, mas, por outro lado, as instituições só existem por meio das pessoas, através das pessoas, e o contato das pessoas, das pessoas de instituições. Seria bom para todos nós se elas soubessem disso. Esse contato facilita muito as coisas, por bem ou por mal. É o que acontece com os Salões nacionais brasileiros, onde o gaúcho encontra com o paulista lá no Ceará, o cearense que estava lá encontra com alguém do Mato Grosso, quer dizer, cria-se uma rede, porque não basta só a informação e a institucionalização. Tudo isso tem que estar numa rede de afetividade ou de desafetos, esse é o problema. Quando eu falo de afeto, estou supondo o inverso. Divergências também são “des-afetivas”, se é que existe essa palavra. Eu acho que foi proporcionada uma oportunidade de estreitar esses laços que são essenciais.

 

FP - A pergunta tinha relação com a oportunidade de compararmos iniciativas ou políticas de lá e de cá.

Fernando - Aprendendo também como certas soluções são apenas inteligentes, sem grandes gastos, sem grandes custos.

 

FP - Entre a utopia e o possível, que museu você imagina? Qual seu museu imaginário?

Fernando - Sendo realista, eu teria que imaginar um museu possível, e não um museu ideal, que tivesse um regime jurídico que permitisse exceção no pagamento de profissionais realmente especializados. Primeiro, teria que ser um museu que pudesse remunerar condignamente seus pares. Segundo, um museu que tivesse condições técnicas padrão, que justificassem a existência de um parceiro de porte que permitisse ter climatização por câmeras, manipulação com luvas, etc. Um museu que tivesse (e esse é um problema gravíssimo dos museus brasileiros) toda atenção voltada em montar maravilhosamente uma coleção permanente, com renovação periódica de seu acervo. Enfim, um museu que pudesse remunerar bem seu staff, um staff enxuto, que tivesse dinheiro para a atualização regular de sua coleção, que tivesse os padrões técnicos mínimos que o tornassem aceitável e desenvolver intercâmbios de outras exposições. Finalmente, uma verba, que permitisse um pool de exposições internacionais, e assim por diante. Não é muita coisa. Um bom staff técnico, uma boa gestão, mostra permanente do acervo. O resto, à medida que você vai crescendo, você vai exigindo um sapato de tamanho maior... Mas vamos começar assim, com três anos cabe um sapatinho, depois pede-se um sapato 4, depois 5, depois 6, não dá para querer atingir a estratosfera do zero em 60 segundos. É por isso que eu fico sempre com o possível.

 

Lenin, Paulo Sergio e Fernando Cocchiarale no Lenbachhaus de Munique

 

Entrevistador: Martin Grossmann em 22/10/2005
Edição: Vinicius Spricigo

"Existem problemas anteriores que até poderiam ser resolvidos. Por exemplo, o desenvolvimento de laços cooperativos sérios entre instituições do país todo, instituições que poderiam trabalhar em conjunto trazendo exposições internacionais, fazendo esforços verdadeiros de articular verbas para baratear custos, mas muitas vezes se comportam como rivais, porque existe essa história de vaidades pessoais ou desavenças afetivas prevalecerem sobre a lógica institucional." >>> entrevista com Silvia Antibas e Cristina Bruno