Antoni Abad
Fórum Permanente - Em primeiro lugar, fale-nos um pouco do seu percurso artístico até o início da colaboração com os “coletivos”.
Antoni Abad - Meu início foi como escultor. Eu trabalhei muitos anos com escultura, mas chegou um momento, quando eu estive no Banff Centre, no Canadá, que eu descobri que podia trabalhar com essa combinatória que eu usava nas esculturas, que podia transportar todas essas idéias para o território do vídeo projetado. Foi porque lá tive a oportunidade de acesso a essa tecnologia. Então, eu posso dizer que eu cheguei lá com ferramentas de escultor ou de relojoeiro e saí com fitas de vídeo e também com meu primeiro endereço de e-mail de Internet... Então, isso produziu uma mudança... Estive quase dez anos trabalhando nesses projetos de projeções no espaço e também com programas de informática, até que finalmente eu fiz um projeto com uma mosca virtual que morava no computador dos usuários, que escondia uma comunidade distribuída onde não se podia interceptar as comunicações desses usuários. Porque era uma comunidade preparada para poder conspirar e aí, depois disso, comecei já a trabalhar com os celulares, com a Internet e com todos esses coletivos.
FP - Como você entende esse abandono das obras de arte e a tentativa de reencontro com o real?
Abad - Eu acho que essa decisão parte de uma decepção que eu tive, e tenho ainda, sobre a função do artista na sociedade. Por que um artista é autorizado a comentar sua sociedade? Por qual motivo? A partir daí, o trabalho tinha de ir em outra direção... O trabalho tinha que fazer o possível para modelar essas redes, a Internet, a rede de celulares, para que fossem úteis a outros coletivos além do artístico, para que eles pudessem expressar-se. Foi essa direção que eu tentei dar ao meu trabalho nos últimos anos.
FP - Nesse sentido, qual seria o seu papel nesses projetos? Criar condições para que esses indivíduos tenham voz própria, mas também mediar a relação entre os coletivos e a esfera institucional?
Abad - O que estou fazendo é desviar fundos que estão destinados à arte e a cultura para outro território, mais social, no qual certos coletivos possam auto-representar-se. Eu tenho a possibilidade de fazer isso porque tenho uma trajetória como artista. Então, quando recebo convites para fazer projetos, proponho esses experimentos. O meu papel é esse: de um lado desviar esse financiamento que era dedicada à arte para um território que eu acho bem mais mais social e do outro lado a minha função nesses projetos é ser um facilitador. Ensinar esses coletivos como usar as ferramentas, modelar o dispositivo, e, uma vez que eles já conhecem o dispositivo, como usar, aí eu já posso ir para o próximo coletivo. Porque, ao final, o maior êxito, para mim, é quando termina esse patrocínio que vem do mundo da arte, do mundo das companhias, das operadoras, e o coletivo organiza-se para continuar o projeto.
FP - Após o momento da apresentação dos projetos no espaço expositivo, você mantém algum contato com os coletivos?
Abad - Em todos os projetos, que já são sete nesse esquema, você sempre encontra grupos de pessoas que são seres humanos. Então, como em uma classe de uma escola, tem 10 ou 15% que ficam bem interessados e envolvidos no projeto. Tem outros 30 ou 40% que estão mais ou menos interessados, que estão publicando. Depois tem alguns que não fazem nada ou que só chegaram para pegar um celular de graça. Dessas porcentagens, esses 10 ou 15% são aqueles que querem continuar. Desses, em cada projeto, existe uma parte que fizeram algumas coisas para dar continuidade, exceto em dois casos. Temos os dois grupos de ciganos que já participaram do projeto na Espanha e também as prostitutas de Madrid que consideraram que já tinham dito tudo aquilo que tinham para dizer. No entanto, no caso das pessoas com mobilidade reduzida de Barcelona, eles criaram um pequeno grupo e uma associação específica só para dar continuidade ao projeto. Os taxistas do México, que foi o primeiro projeto desse tipo, criaram a “Fundación Latinoamericana do Transporte Público” que pretende ter um âmbito latino-americano. A minha relação com esses grupos que continuam é esporádica porque eles já organizaram-se. Naturalmente, se eu vou ao México, encontrarei outra vez Facundo, o meu irmão, e em São Paulo, no Brasil, vai acontecer a mesma coisa com o Ronaldo e com o Luis. Mas isso é, como se diz, uma coisa de amizade.
FP - Parece-me que se por um lado temos o “desvio de fundos” das instituições para patrocínio desses projetos, por outro, temos também a reconversão de dinâmicas sociais existentes para a esfera institucional, na qual esteas ganham visibilidade em um espaço onde, normalmente, estariam excluídas. Como você entende esse processo de tradução ou apropriação dessas dinâmicas para o espaço institucional?
Abad - Nesses projetos, uma coisa é conseguir que esses coletivos, que aparecem nos meios de comunicação sempre por sua imagem negativa, representem-se eles mesmos, que sejam eles quem geram as suas notícias, quem falam de suas preocupações ou de seu dia-a-dia. Uma vez que você conseguiu que esse coletivo organize-se e comece a falar, é muito importante ter uma difusão. Nesse momento, é quando aparecem os meios de comunicação e fazem entrevistas com os participantes, neste caso, os motoboys. Então, quando se consegue que esses canais sejam vistos pelo maior número de pessoas, temos de um lado um projeto que critica os meios de comunicação, mas que, em outra direção, precisa dos meios de comunicação para ser difundido. O espaço onde esse projeto é mostrado, não é o espaço artístico, não é o Centro Cultural... aqui só temos uma mesa de reunião onde os motoboys se encontram uma vez por semana. Isso, da parte da instituição, é chamado “instalação”. Eles precisam de uma instalação, mas o projeto é na Internet. Hoje, vimos aqui, que tinhamos duas pessoas lá, então, a representação, vamos dizer, artística no espaço, praticamente não existe. O projeto acontece na Internet.
Você também falou de apropriação. Nesses convites, você tem uma frase que diz: projeto de Antoni Abad, mas também não está explicado que são os doze motoboys participantes. Isso você precisa fazer para ter o projeto viável. Porque o Centro Cultural São Paulo, por exemplo, eu acho que nunca convidaria doze motoboys para fazer um projeto. Então, às vezes, você tem que tem que ceder. Tem que fazer algumas concessões, mas eu acho que, no final, os autores são os motoboys, a minha autoria está no dispositivo, entende? Essa combinação dessa arquitetura entre os celulares e a Internet que permite... só essa é minha autoria. Se isso é uma autoria.
FP - Estou pensando aqui espaço institucional em um sentido mais amplo, que abarque também essa arquitetura da informação que você oferece já como algo pré-formatado. Vamos pensar nos trabalhos que ficaram estigmatizados pela estética relacional, nos quais alguns artistas propuseram uma arquitetura específica e um certo modelo de sociabilidade predefinido. Enfim, uma das críticas feitas a esses trabalhos versava sobre a criação exclusiva de espaços de consenso e nunca um espaço de disenso. Não havia espaço para “o outro”, uma vez que todos os participantes do trabalho pertenciam a comunidade artísitica. De alguma maneira, o espaço criado por essa arquitetura da informação, permite somente o acesso dos indivíduos que pertencem a essas comunidades, ou seja, o trabalho reafirma o lugar de exclusão desses sujeitos.
Abad - Eu acho que o importante é abrir esse espaço. Como dizia há alguns minutos, se você conseguir que os motoboys falem por si mesmos, você tem que divulgar isso. Quando é aberto ao resto da sociedade, eu acho que ali os motoboys começam a interagir com o resto da cidade, em um âmbito que não é só um corredor onde se encontram os motoboys.
FP - Vamos tomar um aspecto tecnológico para ampliar essa questão. Quando você diz que essas ferramentas de comunicação permitem que os motoboys tenham uma representação da sua própria comunidade que não passa pelo filtro das mídias de massa, isso, certamente, é um aspecto positivo. No entanto, a única coisa que eu questionaria, seria a estrutura do projeto, focada no broadcasting dos registros da realidade cotidiana dos coletivos, que não permite, outros segmentos da sociedade expressarem a sua percepção dessa representação.
Abad - Sim, permite. Você tem um fórum aberto no dispositivo onde tem a participação de todas essas pessoas que estão aí, escrevendo o que eles quiserem do projeto. Temos todos esses canais individuais, onde os motoboys estão broadcasting, ou webcasting, seria melhor, mais preciso. Mas, ao final de tudo, você tem aí um fórum que é aberto, onde as pessoas podem interagir. Nós já tivemos muitos comentários. Até agora, estranhamente, não há nenhum comentário negativo. Cabe dizer que, por exemplo, nos dois canais dos ciganos, tivemos muitas intervenções atacando a comunidade etc., Esses canais individuais dos motoboys podem ser abertos também, abertos para nós dentro da terminologia da zexe.net, lá dentro, um canal aberto quer dizer que você tem aí a possibilidade de abrir o seu canal para que outras pessoas possam intervir no seu canal. Quando você publica uma foto, você pode ali escrever o seu comentário. Só temos um desses canais... Eu ofereci essa possibilidade, naturalmente, a todos os motoboys, porém alguns disseram: “Agora, eu não quero o meu canal aberto”.
FP - A última pergunta, também voltada para o lado tecnológico é: o portal do projeto zexe.net integra todos os resultados desses diferentes projetos. Como que você vê essa tarefa para além do registro, de edição mesmo, desse conteúdo. A princípio, pelo que eu percebi, ela é feita pelas próprias comunidades. Você, como responsável pelo projeto, e os programadores, qual é o papel de vocês nesse processo de integração dos resultados, de edição do conteúdo? Por fim, eu percebo que, principalmente no projeto dos motoboys, houve uma preocupação com o design. Existe uma preocupação, digamos estética, no sentido de projetar uma forma de visibilidade aos coletivos?
Abad - Vejamos, de um lado, em todos os canais não teve edição diretamente. Eles publicam diretamente do celular nos seus canais, com alguma possibilidade de edição feita pelos próprios motoboys. As possibilidades de edição são muito simples: você só pode adicionar mais texto ou mudar a posição das mensagens. Da minha parte ou do Eugenio Tisselli, o programador do projeto, não temos a possibilidade de editar esses conteúdos, os conteúdos são publicados direto dos celulares. Da outra parte, temos canais de interpretação, que você assistiu agora quando estávamos aí com o Augusto Stiel Neto, que também é um colaborador do projeto, e aí, esses são alguns canais de interpretação onde outras pessoas poderiam ser convidadas a participar a participar de uma interpretação desses conteúdos.
Também tem outra possibilidade, porque, a partir do primeiro projeto no México, vimos que algumas das publicações dos taxistas da Cidade do México podiam ser podiam ser críticas, entende? Podia ser difícil de interpretar isso. Aí, achamos que seria interessante de alguma maneira classificar essas visões.. E achamos, eu digo achamos, porque isso foi conversado, principalmente, com o programador do projeto, Eugenio Tisselli, que seria importante descrever essas publicações, o que tem nessas imagens. Aí, chegamos à conclusão de um sistema que partia de certas classificações da sociologia ou da antropologia que era classificar a vida humana em um dicionário com quatro ramificações importantes, que seriam: seres, objetos, espaços e atividades. Isso permitiria aos usuários do dispositivo fazer a suas pesquisas de acordo com esse dicionário, mas achamos que isso era muito rígido. Porque, por exemplo, os ciganos, quando mostramos pela primeira vez essa possibilidade, um descritor era Camaron, um cantor que já morreu, que era bem conhecido no mundo inteiro. Então, esse descritor era alguém especial e bem específico dessa comunidade. Então, decidimos mudar totalmente o dispositivo e agora esses descritores, essas palavras-chave, esses tags são totalmente livres, vamos dizer, não é uma equipe que está depois aí, descrevendo as imagens, senão os próprios motoboys que pegam essas palavras-chave nas suas mensagens. É um dos experimentos que estamos testados no Canal Motoboy. Então, até agora, temos umas oitenta palavras-chave que ficam em cada mensagem enviada. Isso, por um lado, significa para eles um esforço intelectual, porque quando enviam uma imagem tem que pegar aí uma palavra que descreve essa imagem. Por outro lado, constrói um dicionário de termos que eu acho que gera conhecimento coletivo, afinal, porque esses termos que eles estão pegando, até agora, não são mais de oitenta e alguns estão bem altos no ranking, como “acidente”, “trânsito”, não sei... vamos ver o que acontece com isso, mas de qualquer maneira, são eles que estariam editando, eles mesmos, ou organizando essa informação a partir de palavras do dispositivo ou de suas publicações.
E para responder essa outra pergunta, em todos os canais tem mais ou menos um logo, o mais simples possível, que tenta representar um pouco o dispositivo, nesse caso, um capacete, um capacete bem simples, a primeira idéia que eu acho poderia ter do motoboy. Isso é uma representação também para a difusão... não sei como dizer, imagino que é uma coisa que vem da publicidade para a identificação das publicações em adesivos, em coisas assim que são um pouco para divulgar, afinal, é preciso divulgar isso... e tem aí algumas decisões estéticas, imagino, mas são bem simples também, o mais simples possível.
FP - Para encerrar, voltando à questão da instituição. Você acredita, então, que os indivíduos estão deixando cada vez mais de delegar à instituição e aos artistas o papel de sua representação, e estão, eles próprios, assumindo uma postura ativa de criar um sentido para si e uma apresentação de si para a comunidade?
Abad - Eu acho que sim, que o objetivo seria esse: que os próprios coletivos representem-se. Onde isso nos levará? Eu não sei, mas o exemplo poderia ser: quando eu chego em uma sala de exposições e vejo um Cibachrome perfeito de uma fotografia de uma construção em uma favela do Rio, eu penso: o que é isso? Do que fala? O artista teve a coragem de chegar lá, com uma câmera bem grande, fazer essa foto e depois produzir beleza, não? Se alguém tem a possibilidade de representar essa favela são os próprios moradores dessa favela. A coisa vai por aí...ou tenta ir por aí, vamos ver.
FP - Obrigado.
Abad - Obrigado você.